Roberta Bentes[1] (UFPR)
“Toss a coin to your Witcher, o’ Valley of Plenty” cantava Jaskier, enquanto seguia seu rumo para uma taverna ou para uma corte, brandando os feitos da última aventura que Gerald of Rivia teria vivenciado juntamente com o “bardo”[2], como ele mesmo se denominava na canção.
Jaskier – na série “The Witcher” ou Dandelion no jogo “The Witcher” – é a personagem que vem apresentar ao público leigo a figura dos agentes culturais que vagavam de cortes em cortes em busca de valorizar feitos de grandes senhores, homenagear damas e seus amores, ou então mesmo, tecer duras e ácidas críticas à sociedade que esses homens viviam. Eles poderiam ser conhecidos como trovadores ou jograis.
Os trovadores seriam homens e mulheres letrados[3] que tinham a capacidade de elaborar a poesia, bem como a sua musicalidade da lírica. Ou seja, eram homens e mulheres que tinham conhecimento da língua e de música. Enquanto jograis e jogralesas eram aqueles homens e mulheres que realizavam a performance do recitar e do entoar poesias.[4] Todos esses diferenciais poderiam ser vistos no Langue d’Oc, bem como na Península Ibérica, não se vendo essa diferenciação nos Minnesänger.
O primeiro contato que o estudante no Brasil tem com os trovadores é dado através da Literatura, e a temática do trovadorismo. Com o avançar dos interesses pela Idade Média, os pesquisadores encontram novamente estes performers em diferentes lugares do Ocidente Latino. O trovadorismo que nos é introduzido brevemente na época do colégio, traz os versos e rimas da lírica galego-portuguesa a partir do século XIII, contudo, historiadores apresentam através dos cancioneiros[5] que a lírica amorosa – e a não amorosa – já era cantada no século XI em occitano[6].
Através da figura de Guilherme IX, Duque d’Aquitânia e Conde de Poitiers (1071-1127) e de seus versos é que temos a materialização da poesia em occitano a partir do século XI. Juntamente com ele, outros homens e mulheres cantaram este modo de viver – lírico e cortês – ao longo do século XII até o século XIV no sul da França. Os homens elaboradores de poesia eram conhecidos como troubadours, enquanto as mulheres poetas eram conhecidas como trobairitz.
Guilherme IX, Duque d’Aquitânia | |
Farai chansoneta nueva | Farei uma pequena canção antes que chova |
Farai chansoneta nueva Ans que vent ni gel ni plueva ; Ma dona m’assai’e.m prueva Quossi de qual guiza l’am; E já per plag que me’n mueva No.m solverai de son liam. |
Farei uma pequena canção antes que chova, gele ou bata o vento; minha dama me experimenta a fim de ver a maneira como a amo; e por mais que entre em litígio comigo, jamais me desprenderei dos seus elos. |
Fonte: SPINA, 1991, p. 99
Imagem 1 – Guilherme d’Aquitânia no Cancioneiro I
O fin’amors também conhecido como amor cortês foi um divisor de águas para a etiqueta, a poesia e até para as batalhas[7]. O occitano se tornou a língua de prestígio perante os próprios tratados elaborados no século XIII sobre a lírica[8]. O impacto dessa língua pôde ser visto através das cortes italianas que replicavam e produziam o fin’amors em occitano até o século XIV[9]. Tamanha admiração é registrada na vida – pequena biografia – do trovador Ferrarino de Ferrara:
Mestre Ferrarino foi de Ferrara. Foi jogral e era capaz de trovar em provençal melhor que qualquer outro na Lombardia e compreender a língua provençal. (…) Depressa e voluntariamente seria aos barões e cavaleiros. Todo tempo esteve na Casa da Família Este. E quando vinha às festas e à corte dos marqueses, os jograis chegavam a ele e o compreendiam expressar-se em provençal e todos eles o chamavam de seu mestre. (GUIMARÃES, 2021, p.40)
Devido às necessidades da sobrevivência e do prestígio, esses agentes culturais também eram responsáveis pela circulação de informações e do nascimento de uma “mistura” de culturas. Assim como o fin’amors chegou às cortes italianas, no século XII encontramos produções literárias semelhantes no Sacro Império Romano. Diferentemente do que acontece nas cortes italianas, em solo germânico a produção lírica se dá na língua vernacular – semelhante ao ocorrido na Península Ibérica -, ou seja, a poesia é registrada e cantada em médio – alto – alemão. Assim, como aconteceu com os admiradores do fin’amors occitano, o Minnesang – canto do amor – foi registrado, mostrando que tanto sua poesia quanto sua melodia eram responsáveis pela conservação de uma identidade e modo de viver, bem como pela mobilidade cultural trovadoresca.
Se a figura feminina ganhava a possibilidade de não ser somente almejada e desejada, mas também de ter sua voz ecoada e sua lírica reconhecida, no contexto do Minnesang as mulheres não tiveram autoria ou então, seu reconhecimento. O que é encontrado com semelhança são algumas classificações, como se pode ver abaixo:
Fin’amors | Minnesang |
Alba – poesia amorosa que tem seu cenário no alvorecer. Cansó – poesia amorosa de maior prestígio occitano. Pastorela – poema que tem como cenário o campo. Planh – poesia de lamento e pranto. Retroencha – poesia de origem francesa, mas que chegou a produção occitana que segue um padrão de rimas, lembrando um refrão. Sirvantês – poemas de temáticas políticas, satíricas e polêmicas. Tensó – disputa poética entre poetas. |
Minneklage – poesia de lamento. Minnepreis – poesia amorosa de louvor à dama Minneabsage – poesia de recusa à dama. Dialoglied – poesia amorosa dialogada entre o minnesänger e a dama. Kreuzlieder – poesia com a temática das Cruzadas. Mädchenlieder – cantiga da donzela; são cantadas “jovens de baixo estamento, das quais, também, são exigidas lealdade e mesura” Dörperlieder – paródias ao Minnesang tradicional Pastourellen – poesia amorosa com pastoras. Tagelieder – poesia amorosa que tem seu cenário no alvorecer |
Fonte: Adaptação realizada pela autora.
Os Minnesänger poderiam gozar de quaisquer status social, sabemos de duques, príncipes, condes, grandes senhores, burgueses e religiosos. O maior e mais prestigioso marco do lirismo podia ser rastreado da alta nobreza, aristocracia e dos cavaleiros, enquanto sobre a produção das classes mais inferiores era esperado uma produção gnômica [10].
O Minnesang contém um arco temporal entre 1170 até 1340, enquanto o fin’amors do século XI até o início do século XIV. Do mesmo jeito que Guilherme d’Aquitânia foi considerado um dos grandes marcos na lírica occitânica, Walther von der Vogelweide (1170-1230) se tornou aclamado por muitos, sendo considerado o maior dos trovadores. Sendo um dos responsáveis por mostrar a resiliência do poeta como um talento, pois ele suportava com uma certa elevação, o sofrimento amoroso, pela mulher que tanto almejava.
Walther von der Vogelweide | |
Herzeliebez frouwelin | Jovem querida (do meu coração) |
Herzeliebez frouwelin, Got gebe dir hiute und iemer guot. Kund ich baz gedenren din, Des hete ich willeclichen muot. Waz sol ich dir sagen me, Wan daz dir nieman holder ist? Da von ist mir vil we. |
Jovem querida (do meu coração), Deus te dê sempre uma felicidade eterna. Se eu pudesse dizer-te melhor meu pensamento, com que contentamento então diria. Mas para que dizer-te mais? Ninguém mais do que te ama, e para dano meu! |
Fonte: SPINA, 1991, p.217
Figura 2 – Walther von der Vogelweide no Codex Manesse
Para além do lirismo, o gênero que traduzia e materializava o gosto pela mêlée[11] e pelas grandes batalhas – valorizando a cultura cavaleiresca – podiam ser conhecidos como épicos corteses[12]. Esse gênero também bebia dos ideais do amor cortês, e estava presente com mais frequência nos versos produzidos pelos trouvères[13], sendo um dos mais famosos representantes Chrétien de Troyes (c.1160-1191), atuante da corte de Marie de France, condessa de Champagne, e bisneta de Guilherme d’Aquitânia e filha de Leonor d’Aquitânia. Ele foi amplamente conhecido por ter produzido esses versos de temática da matière de bretagne, ou seja, falando sobre a temática da origem da Bretanha, mais especificamente sobre o reinado e as aventuras do Rei Arthur e de demais cavaleiros[14]. Enquanto na produção do médio – alto -alemão era conhecido como Höfische Epik. Um dos grandes representantes dessa produção foi Wolfram von Eschenbach (c. 1170-1220), sendo um dos primeiros a trazer o Santo Graal como temática em vernacular da região com o seu épico Parzival (1200-1210). A temática do Rei Arthur não marcou apenas a poesia e a prosa, servindo também como individuo importante na genealogia inglesa, como uma fonte de importante legitimação de poder.
Do mesmo jeito que a cultura cortesã e a identidade cavaleiresca permearam a produção literária medieval, elas retornaram com uma forte presença no imaginário do contemporâneo. Jeskier e Gerald retomaram uma imagem heroica que bebeu dos ideais, das “morais” e virtudes que inicialmente foram pensados em um recorte histórico que lembra o que seria o medieval europeu, tanto no livro, quanto no jogo e até mesmo na série da plataforma online. Um cavaleiro que tinha ao seu lado, um trovador que poderia cantar suas façanhas e glórias – ainda que nem sempre fosse assim.
A transposição multimidiática ocorrida com esses personagens trouxe consigo ideologias e discussões adequadas aos contextos da época de sua produção, gerando então, o “nascimento” de um herói com vestimenta medieval para enfrentar novas situações. Antes mesmo de iniciar uma discussão sobre a recepção do medievo – o que não ocorrerá neste texto –, deve-se lembrar do grande papel que essas personagens detêm: elas despertam a curiosidade de muitos para o recorte histórico, iniciando-os em um mergulho profundo no que foi de fato a história, a sociedade e os mitos medievais. Ou seja, por mais que Jeskier possa ser em determinados momentos um bufão e um companheiro de encrencas, ele exerce o papel social do jogral e do trovador, reforçando a cultura e identidade móvel cortês medieval.
BIBLIOGRAFIA
BENTES, Roberta. O Fin’amors Occitano e a sua não-idealização. In: NASCIMENTO, Renata Cristina. (Org.) Sacralidades Medievais. Textos e temas. Goiânia: Tempestiva, 2021, pp. 33-36.
BENTES, Roberta. Textos e imagens nos Cancioneiros Occitanos Mss. BnF, Fr. 854 e 12.473. 2019. 117f. Dissertação (Mestrado em História). UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ – Paraná, 2019.
GUIMARÃES, Marcella. As vidas dos trovadores medievais: quem foram esses homens e mulheres que cantam o amor. Curitiba: Máquina de Escrever, 2021
MORET, André. Les débuts du lyrisme em Allemagne. Lille, Bibliothèque Universitaire, 1951.
SALVAT, Joseph. Provençal ou occitan ?. Annales du Midi, v. 66, n.27, 1954, pp. 229-241. Disponível em : < https://www.persee.fr/doc/anami_0003-4398_1954_num_66_27_5998>. Acesso em 18 de Abril de 2022.
SILVA, Daniele Gallindo Gonçalves. QUINTANA, Tiago. Entre Deuses e heróis: a ressignificação do universo nórdico em Odd e os Gigantes de Gelo de Neil Gaiman. Revista Signum, vol. 16, n. 3, 2015, pp. 8-23.
SILVA, Daniele Gallindo Gonçalves; SOBRAL, Adail. Para Uma Poética Do Amanhecer; A Recepção Da Tagelied Na Lírica De Amor Moderna. Boitatá Revista, v. 10, n. 19, 2015, pp. 82-95.
SILVA, Daniele Gallindo Gonçalves. WOLFRAM VON ESCHENBACH. In: SOUZA, Guilherme Queiroz de; NASCIMENTO, Renata Cristina (Org.). Dicionário: cem fragmentos biográficos. A idade média em trajetórias. Goiânia: Tempestiva, 2020, pp. 337-342.
SPINA, Segismundo. A lírica trovadoresca. São Paulo: Edunesp, 1991.
ZINK, Michel. Les troubadours – une histoire poétique. Paris: Perrin, 2017.
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[1] Docente I pela Prefeitura de Curitiba. Doutoranda e mestra em História pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em História da Arte pelo Centro Universitário Claretiano. NEMED/UFPR; Grupo Insulae e Arturus Insularum.
[2] Termo emprestado das línguas célticas que tinha como significado uma antiga ordem profissional de poeta e cantor, que tinha como função primária compor e cantar versos celebrando as conquistas de chefes e guerreiros, em sua produção poderia abranger inúmeros tópicos como linhagens, fatos poéticos ou históricos, costumes, etc.
[3] Sabe-se da discussão sobre os litteratus e os illitteratus. Em que o primeiro seria aquele que teria uma formação formal – podendo ser entre o Trivium e Quadrivium – , enquanto o segundo seria aquele que não teria conhecimento formal, mas que seria capaz de produzir nas línguas vulgares. Exemplos sobre essa possibilidade de produção (não) estar ligada a uma educação formal: Bernard de Ventadorn era filho de uma padeira do castelo de Ventadorn em Corrèze, e no entando é conhecido como um dos maiores troubadours; o Minnesänger Wolfram von Eschenbach em Parzival afirma não conhecer qualquer “letra”, se colocando como um “iletrado”.
[4] Na produção galego-portuguesa encontramos as demais categorias de segrel e menestrel, classes sociais que ainda que tivessem certo conhecimento cultural, estavam em uma escala inferior. Sabe-se também da presença das soldadeiras, que eram mulheres que realizavam danças e tocavam instrumentos musicais, sendo remuneradas com um soldo. A sua autonomia financeira fez com que ficassem conhecidas como soldadeiras.
[5] Plataforma de registro das poesias, podendo ou não conter as notações musicais das poesias.
[6] Também pode ser conhecido como Langue d’Oc, diferentemente do Langue d’Oïl falado ao norte da França, que seria equivalente a um francês antigo.
[7] Esperava que os homens agissem de maneira cortês na presença de senhores, nobres e reis, bem como, seguisse a mesma etiqueta de respeito às questões sociais em âmbitos de batalhas campais, evitando execuções de grandes nobres, dando-lhe um cativeiro confortável a espera de um resgate.
[8] Na citação da vida de Ferrarino de Ferrara o occitano será apresentado como provençal, como era conhecido no século XIII pelos tratados da língua como Donat Proensal de Uc Faidit. Muito se discutiu sobre o uso do termo occitano ou provençal para falar sobre o registro dos troubadours. Cf. SALVAT, Joseph. Provençal ou occitan ?. Annales du Midi, v. 66, n.27, 1954, pp. 229-241. Disponível em : < https://www.persee.fr/doc/anami_0003-4398_1954_num_66_27_5998>. Acesso em 18 de Abril de 2022. Utiliza-se o termo occitano para delimitar a região, mas grande parte da produção registrada nos cancioneiros occitanos presentes na Bibliothèque National de France estão no dialeto occitano do Limousin.
[9] Tanto a queda do Langue d’Oc, assim como, a expansão dos trovadores para península itálica são marcados por dois grandes marcos históricos: a Cruzada Albigense (1209-1244) e a Batalha de Muret (1213). É na última batalha – extremamente decisiva para a Cruzada Albigense – que o rei de Aragão, Pedro II, morre. Pedro II foi reconhecido – em poesia e em crônicas – como um dos maiores protetores de trovadores e amante da cultura. Ele foi um importante aliado e protetor dos Condados constantemente atacados durante a Cruzada, cabendo destaque para os Condados de Toulouse, Foix e Cominges, vassalos do Rei aragonês.
[10] A poesia gnômica detinha ditos significativos inseridos em versos que poderiam auxiliar na memória da narrativa. Normalmente trazendo verdades generalistas do mundo. Cf. MORET, André. Les débuts du lyrisme em Allemagne. Lille, Bibliothèque Universitaire, 1951, p. 30.
[11] A expressão de origem francesa normalmente se refere a conflitos que podem ser de curta distância com vários combatentes, com a possibilidade de se tornar desorganizados.
[12] Também podem ser conhecidos como romances corteses.
[13] Eram os trovadores e autores que produziam no Langue d’Oïl.
[14] Chrétien traz em sua produção Erec e Enide, Lancelot, Perceval e Yvain.
Publicado em 23 de Maio de 2022.
Como citar: BENTES, Roberta. Do balançar de penas ao entoar cantigas: os prestígios dos troubadours e dos Minnesänger. Blog do POIEMA. Pelotas: 23 mai. 2022. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/texto-do-balancar-de-penas-ao-entoar-cantigas-os-prestigios-dos-troubadours-e-dos-minnesanger/. Acesso em: data em que você acessou o artigo.
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