Início do conteúdo

Artigo: “Lavadeiras e Normalistas nos clubes negros em uma região de fronteira”- Dra. Fernanda Oliveira

Lavadeiras e Normalistas nos clubes negros em uma região de fronteira

O último dia do ano costuma ser nostálgico e envolto em algumas organizações festivas. O 31 de dezembro de 1956 não foi muito diferente, especialmente para a mocidade ficaiana, ou seja, as muito bem-quistas associadas do clube cultural Fica Aí Pra Ir Dizendo, da cidade de Pelotas. A referência às jovens estampou uma folha inteira do jornal A Alvorada – representante da imprensa negra gaúcha – no referido dia, em honra de suas formaturas no curso normal, que as habilitava a serem professoras dos anos iniciais do hoje ensino fundamental.

“As novas professorandas da Escola Normal Assis Brasil”. Era esse o título da matéria que trazia ainda a fotografia das jovens e seus nomes: Glaci, Irene Alves Pires, Celestina, Izabel da Silva Pinto, Nizah de Freitas Machado, Eunice Modesto da Silva e Loeci Farias Machado. Eunice não se formou na escola Assis Brasil, que era pública, e sim no Colégio São José, tradicional escola particular da cidade. Isso nos ajuda a compreender que não se trata de um simples anúncio da escola, mas de uma ação de valorização da formação dessas jovens mulheres, todas negras e associadas do clube Fica Aí. O que nos permite adentrar em aspectos bem importantes dessa história, como as profissões das associadas dos clubes negros no pós-abolição.

Mas antes disso faz-se fundamental compreender os espaços que valorizavam tanto as profissões de suas associadas. Afinal, felizmente já sabemos um pouco mais sobre clubes negros em outros estados como Minas Gerais e Santa Catarina, mas o que associações como essas nos permitem compreender acerca da história de uma região de fronteira, mais especificamente sobre o sul do Brasil?

Clubes negros em uma região de fronteira: o que isso tem a ver com história?

Tudo! A conexão é tamanha que é difícil definir como começar a contar essa história. Então é sempre melhor recorrer ao começo. Os clubes negros são associações criadas por e para pessoas negras a partir da década de 1870, mantidos por sócios e sócias em uma sede, podendo ser própria ou não, na qual desenvolviam/desenvolvem atividades com diferentes fins, principalmente social, cultural, beneficente, bailante, recreativo e carnavalesco. No entanto, não necessariamente todos os espaços que apresentaram/apresentam essas características se denominaram/denominam “clube”, podendo chamar-se centro, associação, sociedade e variações na língua de origem como é o caso do Uruguai.

No Brasil, o clube negro mais antigo de que se tem conhecimento foi criado em 1872, também em um 31 de dezembro e no sul do Brasil, mas na cidade de Porto Alegre, a Sociedade Floresta Aurora. Naquele mesmo ano, só que em 25 de agosto na cidade de Montevidéu, capital do Uruguai, um grupo de homens negros criou o ClubIgualdad. Estes dois clubes explicitam não apenas o contexto e espaço de surgimento desses clubes, como as diferenças no seu formato. O Floresta Aurora é um clube social, criado aos moldes de uma sociedade beneficente e cultural, ou seja, tinha por objetivo auxiliar seus associados e associadas em caso de necessidade, bem como promover atividades culturais. O Igualdad tinha caráter explicitamente político institucional, com objetivo de indicar um candidato ao parlamento nacional. O Floresta está em atividade até hoje, em vias de completar 150 anos. O Igualdad deixou de existir ainda nos anos 1870.

Para além dessas diferenças, eles aproximam-se em dois pontos muito comuns à maior parte dos clubes negros, pelo menos até meados dos anos 1950: 1) foram criados pois seus membros estavam impedidos de adentrar nos clubes existentes por força do preconceito de cor existente. Ainda que no Uruguai a escravidão não existisse mais, o jornal La Conservaión, porta voz do La Igualdad trazia esse conteúdo. No Brasil, mesmo depois de extinta a escravidão, em tempos de pós-abolição o racismo se manteve e se intensificou, fazendo com que os clubes fossem ainda mais necessários para a população negra, como não apenas as páginas do jornal A Alvorada, que começou a circular em 1907, denuncia, mas tantos outros jornais da imprensa negra gaúcha; 2) os cargos diretivos estavam restritos aos homens. A questão que nos mobiliza aqui é: isso era capaz de afastar as mulheres desses espaços ou mesmo de mantê-las como meras frequentadoras? É tempo de nos voltarmos para a fronteira entre a década de 1920 e 1950. Mais especificamente para Pelotas, no lado brasileiro, e fazer alguns apontamentos sobre Melo, no lado uruguaio.

Pelotas já tinha dois clubes negros, Depois da Chuva Chove Não Molha, quando os jovens Osvaldo Guimarães da Silva, Renato Monteiro de Souza e João Francisco Ferreira resolveram criar o cordão carnavalesco Fica Aí Pra Ir Dizendo em 27 de janeiro de 1921. A ideia logo alcançou novos adeptos, cresceu e na década seguinte já era referida nas páginas dos jornais locais como “clube”, principalmente porque desenvolviam atividades durante o ano inteiro e não apenas no carnaval.

Na década seguinte o Fica, como era – e é – carinhosamente referido na cidade, junto dos demais clubes negros apadrinhou a Frente Negra Pelotense, criada em 1933, e filiada a Frente Negra Brasileira. Ali estavam as gentis senhorinhas ficaianas a engrandecer o projeto da coletividade negra pelotense em prol da educação – traço distintivo daquela associação na cidade. E não parava por aí: as senhoras, uma referência ao estado civil de casadas, formavam blocos carnavalescos femininos e compunham a comissão de controle do comportamento das jovens solteiras, as senhorinhas, nas dependências do clube na década de 30. Quando da instituição da campanha financeira pró sede própria, em 1939, de pronto somaram-se ao projeto, mantendo suas atividades de arrecadação financeira que, até aquele momento, eram destinadas para o pagamento do aluguel. O objetivo de ver a tão sonhada sede própria pronta se concretizou em 1954 e é ela que segue abrigando o clube em seus 101 anos de existência.

Então, de volta à pergunta, os clubes têm tudo a ver com história. Basta olhar para eles, suas gentes, suas fontes orais e escritas, ler os jornais e se deparar com experiências cotidianas de vivências a despeito do racismo reinante em terras de fronteira. Lugares em que muita organização se deu e se dá! E onde as mulheres tiveram que construir seu espaço, pois o racismo os unia, mas o gênero ainda separava.

Os mundos do trabalho dentro dos clubes: das lavadeiras às normalistas

Ainda que em um primeiro momento possa se imaginar que essas associadas fossem na sua maior parte mulheres de muitas posses, essa informação é equivocada. As sedes foram efetivamente construídas pelos associados, em seus momentos de folga. As mulheres contribuíram financeiramente pois trabalhavam de forma remunerada, principalmente nas lides domésticas.

Nos anos 20, 30 e 40 no Fica Aí temos uma experiência marcada pelo trabalho de lavadeira e empregadas domésticas. Essas profissões não deixam de existir, mas há um investimento na geração de suas filhas, para que elas venham a ser as “professorandas” nos anos 50. E é isso que nos ajuda a entender a saudação feita às jovens ficaianas no jornal A Alvorada no último dia do ano de 1956, referida ao início desse texto.

     “As novas professorandas da Escola Normal Assis Brasil”. A Alvorada, 31 de dezembro de 1956, p. 9. Fonte: Biblioteca Pública Pelotense.

Elementos muito semelhantes aparecem nos relatos de antigas associadas e associados do clube Fica , cujas mães ou avós foram lavadeiras. Destaco a contribuição fundamental do livro As filhas das lavadeiras, organizado por Maria Helena Vargas da Silveira, no qual a pedagoga compila entrevistas com 21 mulheres negras do sul e do sudeste do Brasil, evidenciando que a experiência de lavadeira foi algo compartilhado por mulheres negras no pós-abolição, especialmente no fim do século XIX e nas três primeiras décadas do século XX. A própria vivência da autora que frequentou os salões do clube Fica Aí, fora marcada por esse elemento. Sua avó materna, Joaninha Vieira Vargas, era lavadeira, quituteira e passadeira, casada com Armando Vargas, tipógrafo do A Alvorada e associado do clube.

No Centro Uruguay, criado em Melo no ano de 1923, foi central a presença de lavadeiras e empregadas domésticas, as quais se mantinham ligadas ao clube mesmo quando se deslocavam de Melo para trabalhar em outros lugares, fosse na campaña (no meio rural) ou em Montevidéu. O Comité de Damas Melense Pro Benefício ao Centro Uruguay, criado em fins de 1934, é um exemplo da presença feminina e do vínculo mantido mesmo quando não estavam morando em Melo. Neste comitê estavam mulheres que se deslocaram a Montevidéu para trabalhar em tarefas domésticas.

No Fica Aí a instrução proporcionava uma profissão às mulheres negras aliada a uma noção de feminilidade respeitável. Estava também relacionada com as transformações sociais, sobretudo o aumento das cidades, dado que as trajetórias de mulheres que acessei eram do meio urbano e desfrutavam de algumas de suas melhorias, como as escolas.

As formas como as mulheres negras se colocaram e foram colocadas não permitem observá-las como à margem no próprio clube ou mesmo na sociedade de uma forma geral. Os condicionamentos existiam, afinal, é nítido que elas criaram suas sub-organizações, como o vocábulo já adverte, em decorrência de não poderem fazer-se presentes nos órgãos deliberativos dos clubes. Ora, em não podendo lá estar nada mais plausível que compor os seus próprios órgãos e por meio deles dialogar com aqueles que elas consideravam seus iguais. O que estava em questão neste projeto político eram formas de combater a discriminação com base na raça e no gênero, fazer-se representar politicamente e assegurar autonomia e participação.

Assista ao vídeo da historiadora Fernanda Oliveira no Acervo Cultne sobre este artigo: 

https://www.youtube.com/watch?v=AWqNfpx1u4U

 

Confira o artigo no site: https://www.geledes.org.br/lavadeiras-e-normalistas-nos-clubes-negros-em-uma-regiao-de-fronteira/

Publicado em 02/07/2022, na categoria Notícias.