Grupo de Pesquisa

PRODUÇÃO E POLÍTICAS CULTURAIS: FORMULAÇÃO E ACOMPANHAMENTO DO PLANO DE CULTURA DE PELOTAS

Resumo: O presente projeto de pesquisa busca investigar a arte e a produção cultural como profissão, mercado cultural, cadeia produtiva e economia da Cultura. Através da atuação como observatório, busca-se subsidiar a elaboração e gestão de projetos culturais e formulação de políticas públicas, através do planejamento cultural e estudos para captação e financiamento de projetos, ações, iniciativas e agentes culturais. Com enfoque especial nas políticas decorrentes da Lei Aldir Blanc, em seu feito histórico de colocar a Cultura no centro do debate e da vida nacional em plena crise sanitária e política, investiga-se questões sobre o campo da produção cultural, seus agentes culturais, suas finalidades e mecanismos de política pública. Além disso, o projeto visa observar o protagonismo da comunidade cultural e sua articulação nas instâncias políticas e decisórias, envolvendo conselhos de cultura, conferências e fóruns de discussão do setor. Almeja-se contribuir para a elaboração do Plano de Cultura de Pelotas, assim como os demais municípios parceiros da UFPEL via AZONASUL – Associação dos Municípios da Zona Sul.


O Campo da Produção Cultural e a Classe Artística constituem um braço significativo da Indústria Criativa. Segundo dados levantados pelo pesquisador Társon Núñez, do Departamento de Economia e Estatística da Secretaria de Planejamento do Rio Grande do Sul, a Economia Criativa gera mais empregos do que o setor calçadista e automobilístico, ficando atrás somente da Construção Civil (Portal G1 RS, 10/12/2019). É possível identificar a centralidade e a transversalidade que a produção artística (publicações, espetáculos, gravação, edição e mixagem de som, criação e interpretação) exerce no Fluxograma da Cadeia Criativa no Brasil, a partir dos estudos realizados pela Federação das Indústrias do Estado Rio de Janeiro (Firjan), conforme seu relatório de mapeamento da indústria criativa (https://www.firjan.com.br/EconomiaCriativa/downloads/MapeamentoIndustriaCriativa.pdf?fbclid=IwAR2WQKrnoV1CHRpnxe2W__y9eUUS6EwFKnZ4IPSutqRwIqFyGSkXN_nhWlw).

Em pesquisa anterior, intitulada “Poetics of Song: Songwriting Habitus in the Creative Process of Brazilian Music” (Maia, 2019), Doutorado/Bath Spa University, abordou os conceitos de Habitus, Campo e Capital (Bourdieu, 1977, 1993), no âmbito da produção musical, em especial de cancionistas. O trabalho abordou, entre outros aspectos, os mecanismos de posicionamento, legitimação, valoração e consagração, identificando que os capitais culturais se articulam de forma dinâmica e autônoma neste campo específico, numa economia, por vezes, “reversa”, onde mecanismos simbólicos e econômicos correm em paralelo.

Tais estudos constatam que trajetórias culturais se dão de forma multifacetada, difusa e de acordo com dinâmicas específicas de cada subcampo. Ou seja, o que conta como relevante numa determinada subárea da cultura pode ser irrelevante para outra, sendo difícil estabelecer mensurações genéricas sem compreender as dinâmicas de cada subcampo em si. Nisto, segmentos de atuação são essenciais e precisam ser ouvidos em suas especificidades. Na música do RS, por exemplo, dada a ausência de uma indústria criativa organizada e sistematizada, percebe-se que estamos “longe demais dos capitais”, pensando num contexto que conte não somente com grandes gravadoras, mas sobretudo pequenos circuitos culturais sólidos e permanentes, vida noturna movimentada, espaços culturais abertos e equipados, bilheterias aquecidas e sobretudo, veículos de comunicação e meios de difusão. Existe uma grande crise de referenciais, mecanismos de legitimação e consagração. Quem é artista e quem não é? Quais são as referências do campo? Quem dá as cartas no jogo? Como se joga esse jogo? Como os jogadores entram em campo? Em português, foi publicada uma uma breve descrição destas categorias de capital cultural no texto “A TVE e a FM Cultura na formação do habitus musical: questões pessoais, implicações coletivas”, no livro “Comunicação Pública no Brasil: desafios e perspectivas; memórias e depoimentos” (Santos e Silva, 2019). Dentre os casos mencionados, o radialista Luiz Henrique Fontoura, do Programa “Conversa de Botequim” (FM Cultura de Porto Alegre), servidor da cultura em sua trajetória de mais de trinta anos revelando novos talentos e consolidando carreiras, referências e formando público no campo específico da música brasileira, neste caso, criando vasos comunicantes entre cenas locais e nacionais.

Por que é importante conhecer o campo de produção cultural e sua dinâmica de atuação? Porque, simplesmente, tudo é cultura: vestuário, gastronomia, alimentação, língua. Não se trata da cultura como uma tentativa de adjetivação para descrever “algo de qualidade”. Não estamos falando de “alta cultura”, paradigma superado tanto produção teórica quanto pelas políticas públicas.

Quando falamos de política cultural, no âmbito do Setor Público, estamos definindo questões bastante específicas ligadas à nossa identidade, nossas práticas e relações humanas aqui e agora, mas também no âmbito histórico e patrimonial. Paulo Freire, cujo centenário celebramos em 2021, dizia que “cultura é a ação humana sobre o mundo”.

Imagem de Paulo Freire sentado, ao fundo encontra-se uma estante de madeira com diversos livros. Paulo Freire é um homem idoso, careca, de barba grande branca, usa óculos e terno preto listrado com preto; usa gravata preta e camisa social branca.

“Cultura é a ação humana sobre o mundo” – Paulo Freire

Elemento intrínseco do universo da cultura, a arte é central como ação humana sobre o mundo, em sua grande complexidade de linguagens, dizeres, lugares de fala e manifestações. Exemplificando através da Música – na verdade Músicas: essa área representa uma parte significativa deste universo que abrange desde o professor de instrumento, o artesão, o DJ, o colecionador, passando por infinitos estilos, circuitos e modos de produção. Cada segmento artístico possui uma infinidade de profissionais para além dos artistas: a chamada cadeia produtiva.

Eis um fato importante: as artes encontram somente nas pastas da Cultura a chance de interlocução mais efetiva com o Setor Público, enquanto outras áreas culturais, também importantíssimas, encontram abrigo institucional também na Assistência Social, nos Direitos Humanos, nos Meio Ambiente, na Agricultura, assim como Indústria e Comércio, Turismo, entre outras. Faz parte, inclusive, de uma política cultural sólida fazer a intersecção de todas estas outras áreas com a pasta da Cultura. Uma Diretoria de Economia da Cultura faria talvez mais sentido, e maior diferença, numa pasta de Economia, Fazenda ou Emprego. A Lei Aldir Blanc, em sua generosidade e potência, deixa claro que comunidades tradicionais, pescadores, indígenas, quilombolas, dentre outras categorias e setores, são agentes de cultura a serem contemplados pela lei. Não compreender isso é não compreender a própria lei e talvez uma grande contribuição sua seja alargar o escopo da compreensão sobre agentes culturais em sua relação com a sociedade.

No entanto, existe uma categoria profissional específica, a da classe artística. Ela é formada de músicos, escritoras, bailarinos, atuadoras, iluminadores, figurinistas, técnicos de som, produtores, trapezistas, contadores de história, pintores, agentes da literatura oral e escrita, técnicos, artesãos e outras infinitas formas e variações. Esta categoria profissional que, em muitos casos, é marcada pela informalidade, pela intermitência, precisa de políticas públicas específicas. Essas políticas, quando existem, são formuladas e implementadas somente no âmbito da pasta da Cultura (extinta e rebaixada no âmbito federal, extinta durante o Governo Sartori e retomada no Governo Leite). É evidente que cultura não é feita apenas pela classe artística. Assim como artistas, no sentido de fazedores de arte, não são necessariamente membros da classe artística, no sentido profissional do termo, ao viver principalmente disso ou compor sua renda familiar com o valor recebido pela sua produção artística. Aqui um recorte importante, que é onde os conceitos de campo da produção cultural e de classe artística se encontram. De um lado, temos a abrangência da Lei Aldir Blanc, expandindo o conceito de “fazedores da cultura” e contemplando comunidades e populações específicas ligadas a este universo. De outro, o conceito de “classe artística”, enquanto categoria profissional que tem seu sustento primordial advindo de sua atuação artística. É o campo dos trabalhadores da cultura, onde a classe artística ocupa uma posição significativa. Este campo profissional sofre da falta de regulamentação e profissionalização, com a falta de indicadores que possibilitem compreender esse nó entre arte e sociedade, emprego e manifestação cultural.


Perspectivas Culturais Glocais

O termo glocal articula os entrecruzamentos entre contextos globais e interesses locais (OJALA e VÄKEVÄ, 2015, p. 90), característicos da contemporaneidade, sobretudo na ambiguidade de termos como “autencidade” e “reprodução” no campo da música popular. Não cabe aqui promover exaustiva reflexão, mas salientar que o cenário de produção cultural apresenta esta ambiguidade em seu cerne: mesmo apresentando uma pujante produção local (Pelotas, em 2019, lançou mais de 20 Cds e EPs, Ian Ramil já conquistou o Grammy Latino com álbum lançado pelo selo pelotense Escápula Records), artistas seguem fora dos meios de comunicação num contexto onde a indústria musical gera bilhões, mas concentra 90% de seu mercado em três grandes conglomerados: a Warner, a Sony e a Universal (SUMAN, 2016, p. 331). Em grande parte, tal hegemonia não é apenas fruto de mera popularidade ou empreendedorismo, mas de uma agressiva campanha de ocupação econômica e simbólica dos meios de comunicação de massa e plataformas digitais pelos conglomerados.

Estudo recente indica a importância da comunicação pública na formação do habitus musical e indicadores da construção de capital cultural no âmbito da música popular (Maia, 2019), chamando a atenção para a importância de estabelecer mecanismos de consagração e produção para além daqueles restritos aos Top Hits, as mais tocadas, as mais “pedidas”, financiadas pelo mecanismo conhecido como ‘Jabá’ (SUMAN, 2016).

Desta forma, é cada vez mais imperativa a atuação das universidades no campo da cultura, contribuindo na construção de imaginários e de subjetividades. Neste contexto, a produção musical é parte fundamental de uma indústria criativa que possibilita desenvolver alternativas ao discurso hegemônico que desconsidera os aspectos e vocações locais. Apesar de seu significativa impacto econômico, a cultura representa um campo em crescimento, que contribui para o desenvolvimento sustentável e saudável, envolvendo identidades, manifestações e formas de vida.


Universidade Federal de Pelotas