[ARTIGO] Histórico do Letramento Racial na UFPel

Histórico do Letramento Racial na UFPel

Neste momento de transição da gestão da Reitoria da UFPel e, consequentemente, de transição da gestão das Pró-Reitorias a partir das quais serão implementadas as propostas para o período de 2025 a 2028, este breve artigo tem o objetivo registrar as origens, as finalidades, e as primeiras ações direcionadas à institucionalização do Letramento Racial na UFPel. Trata-se de um relato de experiência que descreverá os acontecimentos que levaram à consolidação do Letramento Racial como estratégia interna de prática antirracista na Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE) e como essa estratégia se irradia e amplifica para se tornar parte de uma política institucional de permanência para estudantes negras e negros.

A Universidade Federal de Pelotas (UFPel) vem demonstrando um compromisso contínuo com a promoção da equidade racial e a implementação de políticas antirracistas ao longo dos anos. A instituição alcançou diversas conquistas nessa área, destacando avanços importantes como a implementação das Ações Afirmativas na Pós-Graduação (2017), a priorização de bolsas para estudantes contemplados por essas ações (2018) e a reserva de vagas para candidatos negros em concursos docentes, entre outras medidas significativas.

Neste contexto, os relatos das profissionais técnico-administrativas do Núcleo Psicopedagógico de Apoio ao Discente (Nupadi/CP/PRAE)  – que atuavam no acolhimento psicopedagógico dos estudantes em atendimentos individuais e grupos terapêuticos – trouxeram à tona reflexões sobre os inúmeros desafios de estudantes negros e negras para concluir o curso, o que  muitas vezes culmina com o abandono por não ter o apoio necessário. Além disso, trouxeram exemplos do impacto que as experiências de racismo vividas dentro da Universidade têm sobre a progressão acadêmica das(os) estudantes negras(os) e o quanto essas vivências dificultam a conclusão da primeira graduação. Nesses diálogos entre a equipe do setor, ficou evidente que o apoio psicopedagógico e outros atendimentos da PRAE também precisavam ser aperfeiçoados para contribuir com a permanência desses estudantes que chegaram na UFPel em maior número a partir de 2013 por meio de ações afirmativas (Lei de Cotas).

Nas Universidades, o racismo é um fator que contribui diretamente para o alijamento dos estudantes negros e negras do espaço acadêmico. Historicamente, a academia nunca recebeu esses estudantes de braços abertos e a falta de acolhimento voltado para esse público aumenta as desigualdades dentro do espaço acadêmico, contribuindo diretamente para a evasão universitária. A pesquisadora Rosana Heringer (2022), que desenvolve pesquisas sobre a permanência no Ensino Superior brasileiro e já publicou estudos comparados sobre o assunto com outros países da América Latina, afirma que 

(…) a universidade, principalmente a instituição pública, tem a responsabilidade de contribuir diretamente para o sucesso acadêmico dos estudantes, desenvolvendo os meios necessários e que estejam ao seu alcance para que os alunos concluam a graduação com sucesso, idealmente dentro do tempo previsto da integralização de cada curso. (…) Ainda que a grande maioria dos estudantes cotistas consigam ingressar, permanecer e realizar sua trajetória acadêmica com sucesso, é preciso admitir que sua presença no campus nem sempre é vista de forma positiva pelo conjunto da comunidade universitária. Muitas são as situações que expressam a persistência do racismo e do preconceito em nossas instituições universitárias (HERINGER, 2022, p. 64).

O racismo estrutural, ou seja, o racismo enquanto elemento que integra a organização econômica e política da sociedade (ALMEIDA, 2019), se manifesta em todas as instituições, inclusive nas Universidades públicas brasileiras. 

Assim como a instituição tem sua atuação condicionada a uma estrutura social previamente existente com todos os conflitos que lhe são inerentes –, o racismo que essa instituição venha a expressar é também parte dessa mesma estrutura. As instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos. Dito de modo mais direto: as instituições são racistas porque a sociedade é racista (ALMEIDA, 2019, p. 31).

Nesse contexto de ausência de uma política de permanência para estudantes negras(os) e de identificação da necessidade de aperfeiçoar os atendimentos da PRAE direcionados a este público, em 2023, a Pedagoga Josy Dias Anacleto propôs uma atividade de formação antirracista, começando o processo de Letramento Racial na PRAE,  inicialmente com os servidores do Nupadi.

O Letramento Racial dos servidores do Nupadi consistia na leitura e discussão de temas que tratavam das práticas antirracistas, bem como na discussão sobre vídeos com a mesma temática e, mais à frente, na produção de material expositivo sobre o combate ao racismo dentro da universidade. Com o objetivo de oportunizar a formação em educação antirracista para outros servidores, foram promovidos, ainda em 2023, dois encontros: O I Encontro de Formação Antirracista na Prae e um encontro na mesma modalidade com a equipe da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura. 

A partir da reflexão coletiva da equipe do Nupad durante o formação de Letramento Racial, foi elaborada a exposição intitulada Quem é você no rolê da branquitude? Nessa criação, foram utilizados memes, que são presença constante nas redes sociais e se utilizam de uma linguagem imagética e lúdica capazes de  chamar a atenção e prender os usuários das redes por horas na frente das telas. As imagens, selecionadas da internet, receberam textos explicativos criados pela equipe para guiar os espectadores da exposição para algumas reflexões como: Sob quais formas a branquitude se manifesta no meu comportamento? Será que as minhas atitudes podem estar reforçando o racismo e provocando o sofrimento das pessoas pretas? Afinal, quem sou eu no rolê da branquitude? E o que posso fazer para melhorar?

O cerne da exposição, como já está evidente na sua descrição, foi a branquitude – conceito que passou a ter destaque nos debates sobre racismo a partir da repercussão da obra de Cida Bento, na qual a autora explica o conceito do pacto da branquitude:

É evidente que os brancos não promovem reuniões secretas às cinco dea manhã para definir como vão manter seus privilégios e excluir os negros. Mas é como se assim fosse: as formas de exclusão e de manutenção de privilégios nos mais diferentes tipos de instituições são similares e sistematicamente negadas ou silenciadas. Esse pacto da branquitude possui um componente narcísico, de autopreservação, como se o “diferente” ameaçasse o “normal”, o “universal”. Esse sentimento de ameaça e medo está na essência do preconceito, da representação que é feita do outro e da forma como reagimos a ele (BENTO, 2022, p. 18).

Por sua vez, a professora Bárbara Carine Soares Pinheiro, em seu livro “Como ser um educador Antirracista?”, também nos elucida o conceito de Cida Bento:

Branquitude não é necessariamente sobre a cor da pele, mas sobre os acessos sociais que a cor da pele garante. É sobre a boa aparência para todos os empregos, é sobre ocupar todos os espaços de poder, é sobre possuir a estética da beleza e da credibilidade. Nesse intuito, a branquitude é um conceito dialético que articula o lugar do sujeito universal branco com os privilégios que beneficiam todos os integrantes deste coletivo (PINHEIRO, 2023, p.55).

Quando pensamos em pautar o fim do sistema de privilégios para as pessoas brancas e a manutenção dos direitos de TODAS as pessoas, estamos fazendo valer os ideais democráticos que colaboram para uma sociedade mais justa e igualitária. Na exposição citada buscamos, através da utilização de memes, retratar alguns arquétipos da branquitude que são carregados de conceitos racistas sem perder de vista a reflexão que Bárbara Carine faz em seu livro:

Por mais antirracista que a pessoa branca seja, ela se beneficia do racismo, mesmo sem querer. E é disso que todo/a branco/a precisa se conscientizar, no mínimo. Nesse sentido, pautamos o fim da branquitude e, reforço, isso não versa sobre o extermínio de pessoas brancas, mas sobre o fim do sistema social que as privilegia!  (PINHEIRO, 2023, p.56).

Outro aspecto sobre o qual refletimos, para além de combater o racismo dentro dos muros da instituição, é sobre o papel da Universidade Pública na formação de profissionais da educação que atuarão nas redes pública e privada de ensino. Um exemplo dessa implicação é: Com a promulgação da Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, tornou-se obrigatório  o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas brasileiras e, vinte e dois anos depois, essa lei ainda não é cumprida na maioria das escolas de ensino fundamental no Brasil. Ao que se deve esse fato? 

Para interpretar essa questão do descumprimento da Lei 10.639/2003, podemos fazer uma correlação com alguns dos “Episódios de Racismo Cotidiano” do livro homônimo de Grada Kilomba, que em seu capítulo “Performando a Negritude” relata:

O racismo não é um problema pessoal, mas um problema branco estrutural e institucional que pessoas negras experienciam. Esse é um acontecimento comum para negras e negros quando abordamos a questão do racismo: intimidação por um lado, patololgização individual por outro. Ambas controlam mecanismos que impedem que o sujeito branco ouça verdades desconfortáveis, que, se levadas a sério, arruinariam seu poder (KILOMBA, 2019, p.204).

Vejamos que o problema “branco estrutural” citado por Grada Kilomba nos remete a manutenção do poder da “branquitude” que Cida Bento nos fala e que é exemplificado pelo fato de existir uma lei que obriga professores que nunca tiveram contato em sua formação com a cultura negra a ministrarem aula sobre a cultura africana! Como é possível que um professor formado em uma universidade que não é balizada pelas práticas antirracistas venha a ser um professor antirracista em um sistema estruturalmente racista? A quem isso interessa?

Para Albernaz e Carvalho (2022), a luta antirracista, no contexto acadêmico, corresponde à intervenção em todos os espaços da universidade, não apenas no corpo discente, mas também no corpo docente, nos currículos dos cursos de graduação e de pós-graduação, e na própria constituição da instituição universitária. 

Diante destes questionamentos sobre o papel da universidade como espaço acadêmico e político de formação de educadores antirracistas, foi concebido um Projeto de Extensão com o  objetivo de alicerçar, em nossa comunidade acadêmica e entorno, os fundamentos das Práticas Antirracistas. O projeto intitulado Círculo de Estudos das Práticas Antirracistas  (Cepranti) foi aprovado no início do ano de 2024 e foi o primeiro projeto da UFPel voltado para a discussão e implementação de Práticas Antirracistas na educação, desenvolvendo ao longo do ano diversas ações de combate ao racismo e promoção da Cultura Negra, sendo elas:

  1. Sala das Pretas: É um grupo de leitura e um espaço de acolhimento e escuta às mulheres pretas, especialmente, beneficiárias dos Programas de Auxílios Estudantis da PRAE UFPel. O objetivo dessa ação é conversar sobre ancestralidade, antirracismo na universidade, amor, saúde, afetividade e educação, replicando nossos aprendizados, tecendo novas histórias e resgatando a autoestima. Através da leitura de pensadoras negras, da música, poesia e toda a arte que permeia o universo de vivência das mulheres pretas, procura-se ampliar o conhecimento da cultura negra. Entre o ano de 2023 e 2024 foram realizados mais de 12 encontros com 16 mulheres pretas dos diversos cursos de graduação e pós-graduação, fortalecendo uma rede de acolhimento com trocas de experiências e motivações para a permanência das mesmas na UFPel.
  2. Exposição interativa intitulada Mulheres pretas que fizeram, fazem e farão história.  A exposição interativa fez parte de uma iniciativa da equipe Nupad/CP/PRAE e visava oportunizar aos espectadores a possibilidade de ter o contato com a biografia e obra dessas mulheres, bem como estimular novas pesquisas, a partir das informações disponíveis em QR CODE. Com a proposta de interação, a exposição continuou na página do Instagram da PRAE (@prae.ufpel) a partir da publicação das fotos das estudantes e das mulheres pretas que participarem do evento. Disponível em: https://www.instagram.com/reel/C_Aq4XCJEwV/?igsh=azVrazU2bjJxY3Rk
  3. Evento Julho das Pretas: O “Julho das Pretas” é uma agenda coletiva que traz atividades voltadas para “o fortalecimento da ação política coletiva e autônoma das mulheres negras nas diversas esferas da sociedade”. Em 25 de julho se comemora o Dia de Tereza de Benguela e da Mulher Negra: a data que celebra a líder que comandou o quilombo de Quariterê, no século 18, é o ponto alto desse calendário. Em 2024, o evento realizado na PRAE integrou o calendário nacional e contou com o apoio da profa. Ursula Rosa da Silva, vice-reitora, e do prof. Eraldo Pinheiro, Pró-Reitor de Extensão e Cultura . Este evento contou  com 78 participantes entre servidores e estudantes da UFPel e a programação do evento local também pode ser vista no endereço: https://wp.ufpel.edu.br/prae/2024/07/19/venha-participar-da-primeira-edicao-do-julho-das-pretas/
  4. Ações integradas à programação do 2º Ciclo de Atividades de Educação Antirracista: Foram realizadas três rodas de conversas com os temas sobre a temática de mulheres negras: “Cabelo, identidade e memória”, “Solidão da mullher negra”, “Importância das feministas negras no processo de de empoderamento das mulheres negras”. Além disso, organizamos o primeiro encontro de Coletivos Negros da UFPel e a reapresentação da exposição “Quem é você no Rolê  da branquitude?”

Em setembro de 2024, uma importante repercussão das ações iniciais de formação antirracista e das ações do projeto, foi a decisão do gabinete da Pró-Reitora de Assuntos Estudantis, conduzido pela servidora técnico-administrativa Rosane Brandão, de que todos os servidores da PRAE deveriam incluir  a atividade “Letramento Racial” em seus Planos de Progressão por Mérito de 2024 e que o servidores em Programa de Gestão de Desempenho deveriam incluir em seus planos mensais, no mínimo, a reserva de carga horária de quatro horas para realização dessa mesma atividade. A orientação emitida pelo  Memorando nº 33/2024/PRAE/REITORIA indicava ainda que cada Coordenação deveria se organizar para integrar o letramento racial em suas atividades e dedicar um período para o estudo dessa temática.

Outro desdobramento foi a aproximação da coordenadora do projeto, Josy Anacleto, e de outros colaboradores como a Coordenadora de Permanência/PRAE, Morgana Riva, e a Coordenadora de Políticas Estudantis, Angélica Leitzke, na construção das propostas para a permanência estudantil do programa de gestão para da Reitoria da UFPel 2025-2028, proposta liderada pela profa. Ursula Rosa da Silva e pelo prof. Eraldo Pinheiro. 

Na relatoria do GT Política acadêmica e permanência que contribuiu para a construção do programa de gestão, ficou registrado que, para além da questão de vulnerabilidade econômica dos estudantes que pode ser minimizada com o apoio dos auxílios estudantis, há aspectos acadêmicos e aspectos simbólicos que impactam significativamente a permanência dos estudantes na Universidade. Enfrentar todas essas questões exige, de um modo geral, que as ações já existentes e novas que venham a ser implementadas comecem a acontecer de forma articulada para que ganhem corpo e resultem em um maior impacto. O grupo indicou que entendia como necessário que a permanência viesse a se tornar uma política institucional central na próxima gestão da UFPEL para enfrentar o problema de alta evasão que põe em risco o próprio sentido da existência da Universidade. 

Fundamentadas teoricamente: a) no resultado das pesquisas de Heringer (2022) que constata, ao observar o caso brasileiro de modo comparado com outros países, que é preciso considerar diferentes dimensões relacionadas à permanência estudantil, entre elas a dimensão simbólica que engloba as questões de pertencimento, não discriminação, acolhimento e respeito à diversidade; e b) no projeto Encontro de Saberes desenvolvido pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI), quanto  uma ação de continuidade à política de cotas étnico-raciais, ao mesmo tempo que de ruptura com relação ao racismo institucional da academia brasileira (ALBERNAZ; CARVALHO, 2022); foram debatidas e apresentadas, entre outras, as seguintes propostas de ações incorporadas ao programa de gestão que disputou e venceu a Consulta Informal para a Reitoria da UFPel 2025-2028 (Programa de Gestão):

  • Ofertar disciplinas ministradas por Mestres do Saber reconhecidos por seu notório saber.
  • Oferecer capacitações de Letramento Racial para servidores técnicos e docentes.
  • Realizar salas de apoio pedagógico com mestres de saberes populares para estudantes indígenas e quilombolas.
  • Institucionalizar políticas de práticas antirracistas na universidade.
  • Elaborar e implementar políticas institucionais de permanência para estudantes negros, com deficiência, e LGBTQIAPN+, evitando evasão.

Desta forma, a demanda pela implementação do Letramento Racial em nossa Universidade se configura como uma ferramenta essencial que visa a promoção da equidade, do respeito à diversidade e da desconstrução de preconceitos estruturais em nossa sociedade. Sua efetivação busca conscientizar a comunidade acadêmica  e também o seu entorno sobre as implicações do racismo e fomentar uma convivência mais inclusiva e justa. Nesse contexto, a nova gestão da PRAE reafirma seu compromisso em dar continuidade às ações de Letramento Racial dentro da PRAE, fortalecendo iniciativas que ampliem o diálogo com as outras instâncias universitárias, promovam mudanças culturais e garantam um ambiente universitário onde todos possam se sentir valorizados e respeitados em sua diversidade.

Pelotas, 13 de janeiro de 2025.

Josy Dias Anacleto

Morgana Riva

REFERÊNCIAS

ALBERNAZ, Pablo; CARVALHO, José Jorge. Encontro de Saberes: por uma universidade antirracista e pluriepistêmica. Horizontes Antropológicos [Online], 63, 2022. URL: http://journals.openedition.org/horizontes/6465

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019. 264 p.

BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

HERINGER, Rosana. Permanência estudantil no Ensino Superior público brasileiro: Reflexões a partir de dez anos de pesquisas. Cadernos de Estudos Sociais, vol. 37, n. 22, 2022. https://doi.org/10.33148/CES(2143)

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019.

PINHEIRO, Bárbara Carine Soares. Como ser um educador antirracista. Editora Planeta, 2023.

 

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