Isabela Albuquerque[1]
O protagonismo masculino dentro dos estudos históricos e nas narrativas trazidas para a sala de aula, seja por meio dos/as professores/as ou através de materiais didáticos, nos serve enquanto um questionamento a ser suscitado: onde estão as mulheres na história do medievo? Escrever uma história das mulheres é imperativo, pois isso significa não apenas levá-las a sério, mas ultrapassar o árduo problema de que “Não se sabe sobre as mulheres, porque não há relatos nas fontes” (Perrot, 1995, 9). Tal assertiva, apesar de parcialmente verdadeira, levou historiadoras e historiadores a uma atitude corajosa de transpor as barreiras dessa suposta escassez de fontes a respeito das mulheres, haja vista que, elas estão presentes nos documentos. Contudo, tendo em vista o caráter misógino e tipicamente masculino na maior parte da documentação, elas aparecem por vezes silenciadas, cabendo a nós no presente, portanto, sermos responsáveis por identificarmos, traduzirmos e servirmos de porta vozes para esses sujeitos.
Podemos afirmar que existe, portanto, um silêncio historiográfico a respeito das mulheres na historiografia do século XIX e que isso foi reproduzido no ensino de história nos anos subsequentes. As personagens femininas que aparecem nas narrativas oficiais, por exemplo, ocorrem em função de algum tipo de excepcionalidade (beleza, virtudes, heroísmo ou o contrário, intervenções nocivas e atitudes tenebrosas, vidas escandalosas), mas só reforça que “A noção de excepcionalidade indica que o estatuto vigente das mulheres é o do silêncio que consente com a ordem” (Perrot, 1995, p.13). As personagens femininas só se faziam presentes a ponto de merecerem destaque nas narrativas históricas, portanto, quando eram admiradas e exaltadas por suas virtudes ou identificadas como corrompidas por seus defeitos, numa espécie de modelo e contra-modelo e necessariamente julgadas a partir de olhos masculinos, através dos quais só poderiam ser classificadas como boas ou más.
Da perspectiva de uma história política, narrativa e oficial, na qual a memória da Nação foi forjada, o relato histórico gravita em torno dos acontecimentos públicos, do fazer político (interior e exterior), balizados sobretudo em documentos administrativos e, como as mulheres estavam em sua maior parte ausente desses lugares, desaparecem consequentemente do relato histórico. Contudo, será que apenas dar alguma visibilidade às mulheres já seria suficiente para fazermos uma história mais igualitária?
No que concerne ao período do medievo, tanto em obras historiográficas quanto didáticas voltadas para a Educação Básica, as narrativas ainda encontram-se centradas numa Idade Média tipicamente androcêntrica, na qual figuras masculinas encontram-se como os principais sujeitos e protagonistas dessas múltiplas histórias. Contudo, apenas a crítica a essa constatação não é suficiente para alterarmos esse quadro. Ela deve vir acompanhada de propostas factíveis e compatíveis para a realidade escolar e reduzir ou suprimir o período medieval dos currículos escolares da educação básica está longe de ser uma resposta para tal.
Com relação ao Ensino de História do 6o ano, uma das habilidades da Base Nacional Comum Curricular é justamente a respeito do papel das mulheres no mundo antigo e medieval: “Descrever e analisar os diferentes papéis sociais das mulheres no mundo antigo e nas sociedades medievais (EF06HI19)” (Brasil, 2020, p. 420-421).
Apesar do esforço em incluir mulheres enquanto objetos de conhecimento na educação escolar, a forma como a proposta foi estruturada vem marcada por alguns desafios para os/as professores/as. O primeiro deles consiste em contemplar um período de tempo tão abrangente (da Antiguidade ao Medievo), de sociedades tão distintas (Grécia e Roma, Ocidente Medieval, Bizâncio e mundo islâmico) e marcadas por tamanha diferença e diversidade – não apenas entre si, mas dentro de suas próprias especificidades também – como um bloco único. O segundo é uma das principais contradições no momento em que a história das mulheres emerge enquanto um campo de estudos: ao conferir voz e protagonismo às mulheres na história, corre-se o risco de apenas destacá-las dentro de uma “história universal”, subentendida como tipicamente masculina e androcêntrica, não articulando-as às sociedades em questão.
A pergunta expressa aqui permanece então: será que as mulheres do medievo estão realmente presentes nos livros didáticos? E, se sim, de que forma elas aparecem? Ao analisarmos algumas obras selecionadas no último Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) em 2024, pudemos observar como as obras didáticas dialogam os conteúdos sobre o medievo e de que maneira articular mulheres junto a essas sociedades.
Na obra didática Araribá conecta história (2022), podemos observar que as mulheres estão presentes em dois momentos apenas: ao abordar mundo islâmico e o papel da mulher na contemporaneidade (p. 202) e no tópico “As mulheres no mundo feudal” (p. 215). Sendo que, no caso específicos sobre mundo islâmico, a ênfase é na contemporaneidade, ao tratar a respeito dos hijabs. Já no tópico sobre mundo feudal, composto de apenas uma página, a ênfase reside nas representações a respeito das mulheres, na dicotomia Eva-Maria, no espaço privado e no trabalho feminino. Há também um box complementar falando sobre letramento e citando apenas Maria de França como uma autora do período.
Ambos os casos demonstram que, se por um lado a competência da BNCC foi contemplada – ao menos parcialmente – ao longo de todo restante da obra, as agências femininas não são sequer mencionadas. Podemos indagar até que ponto é fortuito iluminá-las como objetos de conhecimento e ficarmos buscando respaldo nas teorias sexistas dos pais da Igreja com o objetivo de inferiorizar a figura feminina ou quão frequentemente elas foram compiladas, nas representações que figuram entre a condenação e a idealização, mas que muito pouco ou nada falam de mulheres reais. O foco, portanto, deveria residir em suas agências, dentro da sociedade, na prática, seja em contextos laicos e religiosos, já que, apesar de observarmos discursos anti-mulheres em cartas e homilias, no caso da Inglaterra do Alto Medievo, por exemplo, isso parece não ter surtido efeito (Fell, 1987, p. 13). A presença de mulheres nobres em doações de terra, por exemplo, é uma amostra de como elas circulavam e participavam, inclusive ativamente, de tomadas de decisões, ao compor o Witan, a assembleia da aristocracia do período (Albuquerque, 2023, p. 91).
Já na obra História: sociedade e cidadania (2022) de Alfredo Boulos, por exemplo, todas as mulheres (gregas, romanas e “medievais”) aparecem no bloco “Para Refletir” entre as páginas 280-282. Tendo em vista a forma como o objeto de conhecimento foi abordado, não serão esmiuçados aqui os contextos a partir dos quais elas foram abordadas em míseros quatro parágrafos. A estrutura do livro em si já é um indicativo do valor concedido ao papel das mulheres no medievo e a atenção e o destaque que merecem.
Em linhas gerais, ao focar em um tópico específico sobre mulheres, ambas as obras didáticas analisadas acabam por praticamente descartá-las do restante dos outros conteúdos a respeito do período medieval, como se sua presença fosse inexistente ou irrelevante. Nossa proposta aqui é a de pensar alternativas para de fato incluir as mulheres no Ensino de História, na narrativa didático-escolar, trazê-las não apenas enquanto objetos contemplados, mas também como agentes e sujeitos, articuladas às sociedades em que viveram.
Cabe ressaltar que, para além de questões de representatividade para que meninas também possam se sentir contempladas, presentes nas aulas de História, as mulheres não podem vir apenas como mera curiosidade ou um conhecimento acessório, mas é preciso de fato vincular sua atuação ao processo histórico – embora cientes de que não existe uma categoria unificada e universalizada de “mulheres” (Soihet, 1997, p. 97). Primeiro, porque elas diferem enquanto integrantes de grupos sociais distintos, de acordo com tempo histórico no qual estão inseridas, dos grupos sociais dos quais fazem parte, das atividades econômicas às quais se destinam, e no período medieval isso não foi diferente.
Não se pode negar o predomínio do pensamento masculino e religioso na construção intelectual da época, porém, as mulheres no período medieval gozaram de oportunidades e direitos e realizaram importantes atividades em diversas áreas da sociedade (Dabat, 2002, p. 27). Ao incluir mais autoras mulheres do período medieval no Ensino de História, por exemplo, observamos de que forma elas se articularam com o saber. Mais do que pessoas oprimidas, ou em outros casos exceções “pessoas à frente do seu tempo”, encontramos sujeitos históricos produtos de sua própria época, que encontraram estratégias para se fazerem ser ouvidas. Dessa forma, podemos ir além de apenas encontrar um certo sentimento de pertencimento na história, mas avançamos também na compreensão de como as relações de gênero e poder foram construídas e como estão ramificadas até hoje (Brochado & Deplagne, 2018). Mulheres abadessas, escritoras, médicas, rainhas e viajantes são alguns dos exemplos que podem ser trabalhados em sala de aula de maneira articulada com a sociedade e não apenas como conteúdos pontuais e soltos.
Outra proposta é a partir do trabalho feminino na Baixa Idade Média, para o qual a condição física feminina não pareceu ter sido um limitador quanto às atividades exercidas e que as mulheres de classes mais baixas atuaram em diferentes frentes como na agricultura, na produção de cerveja e de têxteis mas do qual o trabalho artístico também fez parte, já que as mulheres também se dedicaram às artes, embora não consideremos muitas de suas obras como tais (Rocha, 2022). Essa reflexão poderia ter sido incluída, por exemplo, na reflexão sobre o trabalho no Ocidente Medieval, no lugar de enfocar apenas a sociedade feudal e suas categorias tripartidas, por exemplo, ao invés de apenas como um conteúdo a parte sobre o Ocidente Medieval.
Já a respeito dos estudos sobre rainhas, a partir do conceito de queenship ou o ofício da rainha, compreendemos que o poder não representa apenas uma perspectiva vertical e patriarcal – como se emanasse “dos céus para o rei” -, pois o monarca não era o único governante, mas que a família era o alicerce da monarquia (Earenfight, 2017, p. 3). Nas próprias fontes cronísticas referentes ao período medieval, o fato de a escrita da história apresentar frequentemente como vinculada à genealogia dos reis auxilia na compreensão do reforço de uma perspectiva androcêntrica a respeito da sociedade do Ocidente Medieval, algo que as narrativas didáticas acabam por reproduzir como se fossem o rei o único participante desse fenômeno.
Da mesma forma, trazermos mulheres como Rosvita de Gandersheim (935-1002), cuja autoria é atribuída a Gesta Ottonis Imperatoris (968) ou Ana Comnena (1083-1153), cuja análise minuciosa a respeito do governo de seu pai Aleixo I foi tecida na sua obra Alexíada, reforça o letramento de mulheres laicas e religiosas e sua importância na própria escrita da história (Miatello, 2020). Somando-se ao conjunto das “historiadoras” como ofício, os Annales Quedlinburgenses (966-999), um conjunto de narrativas escritas pelas monjas no mosteiro feminino de Quedlinburg, na região da Saxônia.
A autoria feminina pode ser reforçada ainda, nas figuras de Marguerite Porete (1250-1310), Mechthild de Magdeburgo (1207 – 1282/1294), Juliana de Norwich (1342-1416) e Margery Kempe (1373-1438), apenas para citar algumas autoras místicas – um fenômeno composto majoritariamente por mulheres intelectuais que escreveram em vernacular e que valorizava a experiência religiosa em detrimento de uma conhecimento teológico. Seus escritos e suas experiências não apenas expressam que mulheres estiveram presentes, como também nos auxiliam na compreensão da espiritualidade no ocidente medieval (Troch, 2012).
Logo, ao lançarmos mão e luz a essas personagens, sujeitos de seu próprio tempo e agentes que trilharam seus próprios caminhos a partir também de suas escolhas, estamos contribuindo não apenas para confirmar que mulheres existiram, mas para compreendê-las enquanto agentes articuladas ao tempo em que viveram. Esse tipo de abordagem escapa de uma História escolar que simplesmente aborda como as mulheres eram representadas nas fontes pelos homens ou celebra sua existência, mas transformam-nas, de fato, em agentes e sujeitos de seu próprio tempo.
Documentos e obras didáticas
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: versão aprovada. Brasília: MEC, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf
ANTONELLI, Maria Clara. Araribá conecta história : 6o ano: manual do professor. São Paulo: Editora Moderna, 2022.
BOULOS JÚNIOR, Alfredo. História sociedade & cidadania : 6o ano : ensino fundamental : anos finais. São Paulo : FTD, 2022.
Bibliografia
Albuquerque, Isabela. “Uma análise das rainhas ao sul do Humber na Inglaterra Anglo-Saxônica a partir do conceito de queenship (séculos VIII-X)”. In: Medievalis, v.12, n.2, 2023. p. 80-94.
Costa, Marcos Roberto N. e Costa, Rafael F. Mulheres intelectuais na Idade Média: Entre a medicina, a história, a poesia, a dramaturgia, a filosofia, a teologia e a mística. – Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2019.
Brochado, Cláudia Costa; Deplagne,Luciana Calado (org.). Vozes de mulheres na Idade Média. João Pessoa: Editora Ufpb, 2018.
Dabat, Christine. “Mas, onde estão as neves de outrora?” Notas bibliográficas sobre a condição das mulheres no tempo das catedrais. Cadernos de História. UFPE, v. 1, n. 1, p. 21- 57, 2002.
Earenfight, Theresa. “Medieval queenship”.In: History Compass, 2017. p. 1-9.
Fell, Christine E. Women in Anglo-Saxon England. Cowley: Basil Blackwell, 1987.
Miatello, André Luis Pereira. “A literatura mística feminina e a escrita da História na Baixa Idade Média ocidental: entre biografia, memória e relato social”. In: Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 13, n. 33, p. 163-195, maio-ago. 2020 – DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
Perrot, Michelle. “Escrever uma história das mulheres: relato de uma experiência”. In: cadernos pagu (4) 1995: p. 9-28.
Rocha, Cinthia. Reflexões sobre o trabalho artístico feminino na Idade Média. In: Revista Signum, v. 23, n. 2, 2022.p. 206-228.
Soihet, Rachel. “História,mulheres, gênero: contribuições para um debate”. In: Aguiar, Neuma (org.). Gênero e Ciências Humanas: desafio às ciências desde a perspectiva das mulheres. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997. p. 95-114.
Tilly, Louise A. “Gênero, História das Mulheres e História Social”. In: cadernos pagu (3) 1994. p. 29-62.
Troch, Lieve. “Mística feminina na Idade Média: historiografia feminista e descolonização das paisagens medievais”. In.: Anais do II Seminário de Estudos Medievais da Paraíba. João Pessoa: Editora Universitária, 2012. p. 27-39.
[1] Doutora em História Comparada pela UFRJ e Professora de História Medieval e Ensino de História Medieval da Universidade de Pernambuco (UPE/Garanhuns)
Publicado em 01 de Abril de 2025.
Como citar: Albuquerque, Isabela. Por uma História mais igualitária: Mulheres no Ensino de História Medieval na Educação Básica. Blog do POIEMA. Pelotas: 01 abr. 2025. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/por-uma-historia-mais-igualitaria-mulheres-no-ensino-de-historia-medieval-na-educacao-basica/. Acesso em: data em que você acessou o artigo.