Rodolpho Alexandre Santos Melo Bastos[1]
Nos últimos anos, tem havido um debate crescente entre historiadores, historiadores e pesquisadores de diversas áreas sobre os usos contemporâneos da Idade Média, especialmente, em produções culturais, como filmes, séries, músicas, jogos, literatura, histórias em quadrinhos, animações, mangás, propagandas, entre outros. Contudo, ainda se observa uma lacuna significativa na análise de outro tipo de produção midiática: os memes da internet, particularmente aqueles veiculados no Brasil. Embora a apropriação do passado medieval para fortalecer posicionamentos políticos no presente não seja uma novidade, o uso de memes como mecanismo para essa finalidade é inédito e perigoso devido ao seu grande poder de difusão e reforço de determinadas ideias.
O historiador Paulo Pachá tem se destacado ao explorar essas preferências, especialmente em suas análises sobre “Memes, política, história, usos e abusos da Idade Média na Era Bolsonaro”[2] (2021) e “Por que a extrema direita brasileira ama a Idade Média europeia”[3] (2019). Segundo Pachá, a extrema direita cria memes que enaltecem Bolsonaro ao utilizar uma versão fictícia da Idade Média europeia, retratada como uniformemente branca, patriarcal e cristã, sugerindo uma continuidade histórica que posiciona os brasileiros brancos como herdeiros legítimos da Europa. Essa apropriação do passado medieval é utilizada para construir um imaginário que reforce valores conservadores e patriarcais, além de legitimar o discurso político da extrema direita no Brasil. Conforme aponta Pachá (2021), essa romantização da Idade Média para fins políticos distorce o entendimento histórico do período, promovendo uma visão simplista e anacrônica.
No entanto, ao contrário da abordagem de Pachá, analisamos os memes que utilizam referências medievais de forma negativa, compartilhados na rede social Twitter e por indivíduos e grupos contrários ao governo Bolsonaro e à extrema direita. Tais memes associam o governo Bolsonaro a um retrocesso civilizacional e lançando o país à “idade das trevas” e, por conseguinte, a Idade Média. Segundo esses memes, o medievo teria sido um lugar de obscurantismo, intolerância religiosa, atraso, pobreza e repressão e caça às bruxas.
Portanto, para essa reflexão, entendemos como memes as postagens do Twitter e a repetição da ideia de que o Brasil entrou numa Idade Média como sinônimo de “idade das trevas”, durante o governo Bolsonaro. É a repetição, reprodução, compartilhamento e, consequentemente a “viralização” dessa ideia, que se configura como memes para esta análise, como podemos observar nas figuras 1, 2 e 3.
Figura 1: Idade das trevas.
Figura 2: Caça às bruxas.
Tais referências negativas sobre o período medieval estão de acordo com os processos de produção e circulação de determinados imaginários na sociedade. Além disso, o conteúdo dos imaginários medievais presentes nos memes ainda pode ser considerado como o resultado de longa duração (com suas transformações e permanências), dos investimentos iluministas de uma Idade Média como “idade das trevas”.
Para Jérôme Baschet (2010), a Idade Média como conceito, sinônimo de obscurantismo e atraso, é uma construção social para legitimar a ideia de desenvolvimento, progresso técnico, científico e industrial do iluminismo como “período das luzes”, que projetou as “trevas” sobre o medievo. Portanto, a Idade Média, como qualquer período da história, deve ser considerada um período de transformações, trocas culturais e desenvolvimento que, nem de longe, justifica os estereótipos que são veiculados nestes memes.
Em um outro exemplo, quando Bolsonaro defendeu abertamente o funcionamento de manicômios, uso de eletrochoques e outras medida violentas para tratar de pacientes, indo na contramão da luta antimanicomial no Brasil. Esse posicionamento vai produzir reações diversas por parte da esquerda brasileira, como podemos observar na figura 3, em que um usuário do Twitter afirma que as ações do ex-presidente poderia levar o país para Idade Média.
Figura 3: Manicômio.
Na contramão da produção desses memes, existem inúmeros estudos de medievalistas, que demonstram uma realidade diferente dos imaginários veiculados por esses memes. Este é o caso da obra “O mito da Idade Média”, da historiadora francesa Régine Pernoud (2006), que procura desfazer uma série de mal entendidos, preconceitos, juízos apressados e lugares-comuns relativos aos mil anos de história europeia situados entre os séculos V e XV.
Para José Rivair Macedo (2007), a visão retrospectiva da Europa medieval como uma “idade das trevas” foi elaborada por eruditos renascentistas e iluministas. Essa visão foi condicionada por uma perspectiva racionalista, liberal, anticlerical, em que ser humanista significava contrapor pressupostos teocêntricos definidos pelos representantes da Igreja, defendendo os avanços das ‘luzes’ da razão e do progresso”.
Do mesmo modo, Aline Dias da Silveira (2009) busca, em seus estudos, desconstruir essa ideia de uma Idade Média como espaço homogêneo, cristão, atrasado sem produções intelectuais e artísticas relevante. Além disso, destaca as intensas interações culturais entre as três religiões monoteístas durante o período medieval na Península Ibérica, momento interessante para, inclusive, estudar a convivência, o respeito e as dinâmicas de tolerância e intolerância.
Existe uma lacuna entre os resultados de pesquisas acadêmicas sobre a Idade Média e o que é reproduzido e veiculado sobre o medievo na sociedade brasileira. Seriam os memes uma espécie de “termômetro” para indicar a qualidade do ensino de história medieval no país? A Idade Média, enquanto período histórico estaria sofrendo usos (e abusos) políticos ao servir de instrumento para deslegitimar a força da extrema direita que insiste em se estabelecer no Brasil?
De toda forma, esses memes partilham de um imaginário medieval distorcido sobre o medievo, tributários dos discursos iluministas que associava o período medieval a idade das trevas. Ao resistir até a atualidade e, com grande força, percebe-se como esses discursos, que alimentam esse imaginário sobre o medievo, são constantemente reatualizados por diversas imagens, interpretações e apropriações equivocadas por parte das produções sociais do presente.
Os memes, ao associarem o Brasil a Idade Média e/ou “idade das trevas”, operam como um produto da conjuntura política que envolve o país, presentificando (Gumbrecht, 2010) a indignação e o medo da população brasileira, ao presentificarem um horizonte de expectativas (Koselleck, 2006) que os brasileiros têm em relação ao país. Este medo estaria ligado a perda de direitos conquistados nas décadas anteriores. Os memes atuam como um objeto cultural capaz de canalizar essas expectativas, que materializam “sentimentos” sociais ao expressarem uma determinada realidade.
Neste sentido, os memes do Twitter são fontes importantes que permitem compreender como essas produções midiáticas são utilizados para construir narrativas que perpetuam estereótipos sobre a Idade Média. Por outro lado, ao divulgar um determinado imaginário medieval, revela-se fundamental para o desenvolvimento de estratégias de combate à desinformação e a perpetuação de estereótipos.
Portanto, enquanto a extrema direita e apoiadores do governo Bolsonaro utiliza um imaginário romantizado da Idade Média para fortalecer uma narrativa de uma população hegemonicamente branca, patriarcal e cristã, os críticos do governo empregaram o mesmo período como símbolo de retrocesso e decadência, evocando um determinado imaginário estereotipado da Idade Média como sinônimo de obscurantismo e atraso.
Essa dualidade no uso do imaginário medieval revela uma disputa simbólica em torno do passado, no qual ambos os lados utilizam como referências o período medieval para diferentes fins políticos. Essa disputa, por sua vez, evidencia os diferentes modos de apropriação do passado, ora para romantizá-lo, ora para criticá-lo, em conformidade com os debates políticos contemporâneos.
Em suma, a análise destes memes compartilhados no Twitter, permite compreender como essas representações medievais, mesmo estereotipadas, funcionam como ferramentas simbólicas e culturais que influenciaram o imaginário popular (ou de um público não especialista) sobre o passado e que podem ser amplamente divulgadas e reforçadas. Tais memes e as informações que veiculam são o resultado de diferentes narrativas, sistemas de comunicações e canais culturais que (re)significam o Medievo, atravessando a Modernidade e o mundo Contemporâneo em contextos interconectados por fenômenos transculturais.
Links:
Figura 1: Disponível em: < https://twitter.com/rafael_pires013/status/1125103757799432192 > Acessado em 24/10/2024
Figura 2: Disponível em: < https://twitter.com/JulianoPolawski/status/1157096197317943299 > Acessado em 24/10/2024.
Figura 3: Disponível em: < https://twitter.com/GuilhermeBoulos/status/1551728192435650563 > Acessado em 24/10/2024.
Referências Bibliográficas
BASCHET, Jérôme. Uma civilização feudal: do ano mil à colonização da América. Tradução de Maria das Graças de Souza. São Paulo: Editora Globo, 2010.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
MACEDO, José Rivair. Repensando o ensino da Idade Média no ensino de História. In: KARNAL, Leandro. História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2007.
PERNOUD, Régine. O mito da Idade Média . Tradução de Marcela Diniz. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2006
SILVEIRA, Aline Dias da. Europeização e/ou Africanização da Espanha Medieval: Diversidade e unidade cultural europeia em debate. História, Franca, v. 28, n. 2. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/his/v28n2/22.pdf>. Acesso em 27 ago. 2024.
[1] Pós-Doutorado, em andamento, pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFCS). E-mail: rodoxbastos@gmail.com. Lattes: CV: http://lattes.cnpq.br/5676372308120967
[2] PACHÁ, Paulo. “Entre memes, política e história: usos e abusos da Idade Média na Era Bolsonaro”. Canal do Youtube: Foro Medieval, 25 de junho de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=naMUhc70Huw&ab_channel=Foromedieval Acessado em: 03/03/2022.
[3] PACHÁ, Paulo. “Por que a extrema direita brasileira ama a Idade Média europeia”. VIOMUNDO: Diario de Resistência. 05 de abril de 2019. Disponível em: https://www.viomundo.com.br/politica/paulo-pacha-por-que-a-extrema-direita-brasileira-ama-a-idade-media-europeia.html Acessado em 23/08/2022
Publicado em 19 de Novembro de 2024.
Como citar: BASTOS, Rodolpho Alexandre Santos Melo. Os usos e abusos da Idade Média nos memes produzidos durante o governo Bolsonaro. Blog do POIEMA. Pelotas: 19 nov. 2024. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/os-usos-e-abusos-da-idade-media-nos-memes-produzidos-durante-o-governo-bolsonaro-2019-2022.Acesso em: data em que você acessou o artigo.