Marcella Lopes Guimarães (UFPR/CNPq)[1]
O título “brinca” com uma duplicidade que tem me acompanhado nos últimos anos, pelo menos desde que comecei a estudar um tipo específico de documentos. A primeira acepção da palavra vida é mais imediata: a vida como existência empírica e histórica, que evolui do nascimento de um ser até a sua morte. Mas reconheço que dá para abrir essa compreensão e empregar a palavra para aquelas existências que lemos e que, de repente, fazem parte da nossa vida. Algum personagem amado de um bom livro, de uma série, de um mangá, anime…, que passa a ser uma referência e que tem – mesmo ficcional – uma existência para nós. Então, nos dois casos, parece que vida se cola com existência, quer uma existência de carne e osso, quer uma existência de papel ou das virtualidades de nossa vida hodierna. Voltando à duplicidade que me acompanha, vida é também o nome de alguns documentos históricos. Na minha pesquisa, recebe o nome de vida – e agora quando me referir a essa acepção, ela vai sempre em itálico no texto – aos textos biográficos que introduzem a obra dos poetas – homens e mulheres, troubadours e trobairitz – em reuniões muito especiais de poemas medievais: os cancioneiros. Até hoje, o sentido de cancioneiro não mudou. Se você abrir o dicionário, vai perceber que cancioneiro segue sendo uma reunião de canções e/ou poemas. No caso dos cancioneiros a que me refiro, são reuniões em livro, cujas páginas são pergaminho, que é um suporte de origem animal sobre o qual letrados medievais – sobretudo no ocidente latino – escreviam. Não é que não houvesse papel, e mesmo não é que não tenha havido cancioneiros em papel, mas o uso do papel era muitíssimo raro nesse perímetro cultural em que a poesia dos poetas foi concebida e, depois, compilada: entre o sul da França e a Península Itálica. Antecipo uma questão: – Vida, assim mesmo, escrito em português?! De fato, o substantivo vida em português também tem entre seus sentidos a biografia, mas no caso dos cancioneiros que eu estudo, a palavra vida, assim bem igual ao português, está mesmo em occitano.
Esses cancioneiros a que me refiro reuniram a obra poética das trobairitz e dos troubadours, concebidas no domínio linguístico occitano, no dialeto limousin. Então, na região que chamamos de França hoje, no momento em que essa poesia floresceu e se desenvolveu – entre os séculos XII e XIII –, o francês não era a única língua falada lá por todo mundo. O poeta florentino Dante Alighieri (1265-1321) escreveu um livro sobre os falares não latinos de sua época, bem importante para o reconhecimento da língua occitana (o livro se chama De Vulgari Eloquentia). Sua atitude não foi de reprimir a expressão desses falares, em relação a uma língua tão prestigiada para a comunicação elevada e mesmo para a comunicação internacional, como o latim. Sua intenção foi dizer que esses falares, filhos do latim, eram uma expressão autêntica, sincera e que já abrigavam as condições linguísticas para fazer nascer a poesia! Dante foi um incrível poeta e ele também “se exercitou” em uma língua jovem. Pois Dante, que era um grande fã dos trovadores do sul da França, batizou algumas línguas usando como critério a maneira de afirmar, ou seja, de dizer o sim. Então, o francês da época dele, falado mais ao norte do reino, era a língua d’oil e a língua dos trovadores, falada ao sul, a língua d’oc. Aliás, por causa da língua, toda uma região da França foi identificada: a Occitânia. Se você olhar um mapa da França atual, vai ver que existe até hoje uma região chamada Occitânia. É claro que os limites mudaram desde o século XII, XIII…
Então, já há alguns anos, eu estudo biografias de poetas, chamadas de vidas, escritas em uma língua que vem do latim, chamada occitano. Essas biografias encontram-se em cerca de vinte cancioneiros que também reúnem a poesia desses homens e mulheres. Entre os séculos XII e XIII floresceu, no sul da França, uma poesia original que teve na sua essência uma concepção de amor, chamada de fin’amor, que podemos traduzir como amor verdadeiro. Veja, não se trata de amor verdadeiro no sentido do sucedido. Estou falando aqui de poesia. O fin’amor é uma rede de conversações literárias que transcende os constrangimentos da vida empírica e histórica dos homens e mulheres que cultivaram a poesia. Por meio do fin’amor, eles e elas manifestaram o desejo, a espera e o “deleite” e isso foi extraordinário, pois, por meio dessa criação – destaco: original! – homens e mulheres falaram de igual para igual em uma sociedade misógina. Tenho um respeito reverente e um encantamento por essa poesia. A poesia desses homens e mulheres se difundiu muito. Dante os conheceu na sua Itália e eles e elas já estavam mortos há décadas. Muitas pessoas valorizaram essa poesia a ponto de financiar a confecção de cancioneiros para guardar a memória da obra e de quem esses poetas foram.
Tradução em português do que está em vermelho na imagem acima:Arnaut Daniel foi da mesma região do senhor Arnaut de Maroill, da diocese de Périgord, de um castelo chamado Ribérac, e foi um gentil homem. Aprendeu bem as letras e se deleitava em compor. E abandonou as letras e se fez jogral, e tomou uma maneira de compor em rimas ricas, por isso suas cantigas não são fáceis de compreender e de aprender.
E amou uma alta dama da Gasconha, mulher do monsenhor Guilherme de Bouvilla, mas não se imagina que a dama lhe tenha honrado no direito do amor, pelo que ele diz:
Eu sou Arnaut que amasso o ar
E caço a lebre com o boi
E nado contra a maré
(GUIMARÃES, 2021, p. 57).
Eu leio a poesia dos troubadours e das trobairitz há muitos anos… mas só conheci as biografias em 2014. Desde então, passei a estudá-las com todo interesse. Realizei alguns exercícios de tradução, mostrei para várias pessoas e apresentei em eventos. Meu objetivo, nesse primeiro momento, foi testar escolhas e métodos. Como comecei a trabalhar? Eu comecei a distinguir preposições, artigos, conjunções, verbos, comparando o texto em prosa das vidas à poesia que eu conhecia bem; também usei traduções em francês, em inglês e em castelhano, para construir um dicionário pessoal. Até o livro que publiquei em 2021, não havia uma tradução integral dessas 101 biografias de poetas em português.
Essas biografias podem ser mais ou menos próximas do sucedido aos poetas. Como assim? É que os biógrafos (conhecemos a identidade de apenas dois biógrafos) usaram como fontes principais a poesia dos troubadours e das trobairitz. Então, essas biografias são biografias literárias. Podemos encontrar muito do sucedido nelas, mas quando a gente lê tudo fica muito claro que o sucedido não foi o objetivo principal da escrita. Essa escrita tinha por objetivo animar a memória, no melhor sentido de insuflar o espírito novamente! Esses homens e essas mulheres poetas estavam mortos, sua existência tinha sido atravessada por eventos dramáticos, como a Cruzada Albigense, a expansão violenta da monarquia francesa (e da língua francesa…), mas sua obra tinha sido um sucesso, difundiu-se, influenciou outras obras e havia os fãs, como Dante! Então, quem pagou caro e mandou fazer esses livros lindos, todos coloridos, lá na Itália, onde parece que havia de fato muitos fãs dessa poesia, achou importante haver um texto introdutório que preparasse a apreciação da poesia. Esse texto são as vidas! Elas se separam da página porque foram escritas com tinta vermelha, enquanto os poemas, com tinta preta.
As vidas são textos tão “coloridos” quanto às páginas dos cancioneiros, no sentido da diversidade de acontecimentos que abrigam. Existem biografias mais sintéticas, que trazem informações sobre a origem do poeta, que mencionam os gêneros de sua obra, seus amores e que dão algumas informações sobre as redes de proteção do seu modo de viver, mas há outras, que chamei de biografias de enredo, que são quase como contos protagonizados pelas poetas e pelos poetas! Uma das mais cheias de eventos é sem dúvida a do trovador do coeur mangé, Guilherme de Cabestaing, que viveu no século XIII. Aliás, dele, não há só uma versão da vida, mas várias. Escolho uma delas, do cancioneiro K:
Guilherme de Cabestaing foi um cavaleiro da região de Roussillon, vizinha da Catalunha e de Narbona. Muito gracioso e prezado em armas, em servir e na cortesia.
Na sua região, havia uma dama de nome Saurimonde, mulher do senhor Raimundo de Castelo-Roussillon, que era muito rico e nobre e mau e bruto e cruel e orgulhoso. E Guilherme de Cabestaing amava a dama por amor e cantava e fazia suas cantigas sobre ela. E a dama, que era jovem, gentil, bela e cativante, queria-lhe bem mais que a qualquer coisa no mundo. E [isto] foi dito a Raimundo de Castelo-Roussillon; e ele, como homem irado e ciumento, inquiriu o fato, soube que era verdadeiro e fez guardar fortemente a mulher.
E um dia, Raimundo de Castelo-Roussillon encontrou Guilherme passando sem grande companhia e o assassinou, tirando-lhe o coração do corpo e fazendo um escudeiro portá-lo à sua morada, e o fez assar apimentado, dando-o para a sua mulher comer. E quando a dama comeu o coração do senhor Guilherme de Cabestaing, o senhor Raimundo lhe disse o que fez. E ela, quando ouviu, perdeu a vista e a audição. Quando tomou novo alento, ela disse: “Senhor, vós me haveis dado uma tão boa refeição que jamais comerei outra” . E quando ele ouviu isso, correu até a sua espada, querendo atingi-la na cabeça, mas ela se foi até a sacada e se deixou cair e morreu.(GUIMARÃES, 2021, p. 101)
O tema do coeur mangé é um dos mais longevos do cancioneiro occitano. Há verdade nessa história macabra? Muito pouca e não sabemos por que essa história, que remonta a outras culturas, veio encarnar na biografia do Cabestaing… O que sabemos é que, diferente da forma como a longevidade da história vai acabar por transformá-la, é no cancioneiro occitano que o tema está ligado ao fin’amor. Escrevi a respeito em um excelente livro organizado por amigos meus e intitulado: Crises, Epidemias e Fomes: Memórias da Idade Média (2021).
Depois de ter publicado As vidas dos trovadores: quem foram esses homens e mulheres que cantaram o amor, em 2021, eu continuei a explorar as biografias, propondo a esse conjunto documental novas perguntas historiográficas. Essas vidas se relacionam de forma muito original com a poesia das trobairitz e dos troubadours. Elas são um capítulo da história da leitura e da apreciação da poesia occitana, pois o biógrafo aproveita a obra poética deles e delas para criar a sua narrativa, mas elas também entregam um conjunto de escolhas que naquela altura definiram como a pessoa e o indivíduo poderiam ser escritos. Também escrevi sobre isso, na segunda parte da obra, quando me propus a realizar uma primeira incursão crítica pelas vidas, depois de tê-las traduzido. Essa incursão me levou a uma compreensão mais alargada das biografias, sem saciar – nem chegou perto! – a minha curiosidade sobre elas e eles.
Referências:
FERNANDES, Fabiano; SCHMITT, Juliana; NASCIMENTO, Renata Cristina de Sousa (Orgs.) Crises, Epidemias e Fomes: Memórias da Idade Média [recurso eletrônico] / Fabiano Fernandes; Juliana Schmitt; Renata Cristina de Sousa Nascimento (Orgs.) — Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021.
GUIMARÃES, Marcella Lopes. As vidas dos trovadores medievais: quem foram esses homens e mulheres que cantaram o amor. Curitiba: Ed. Máquina de escrever, 2021.
[1] Doutorado em História pela UFPR (marcella974@gmail.com). Link do lattes: http://lattes.cnpq.br/6266619466834133
Publicado em 08 de Dezembro de 2022.
Como citar: GUIMARÃES, Marcella Lopes. Uma Curiosidade por Vidas Alheias? Minha incursão pelas biografias dos Troubadours e das Trobairitz. Blog do POIEMA. Pelotas: 08 dez. 2022. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/texto-uma-curiosidade-por-vidas-alheias-minha-incursao-pelas-biografias-dos-troubadours-e-das-trobairitz/. Acesso em: data em que você acessou o artigo.
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