Imagine a seguinte situação: você é filha de sírios, seu pai é cristão e sua mãe muçulmana. Na Síria, não é permitido o casamento entre duas religiões, e se o matrimônio não é legal, o filho não é reconhecido como nacional. Cientes de que o casamento não seria legal, seus pais decidem fugir para o Líbano e se casar. Você acaba nascendo no Líbano, onde você só é libanesa se o seu pai for libanês. O que acontece? sem cidadania síria e tampouco libanesa, você acaba nascendo sem uma pátria. Essa é uma história real, e quem se encontra nessa situação – não ter sua nacionalidade reconhecida por nenhum país – é chamado de “apátrida”. Importante destacar que as pessoas podem vir a se tornar apátridas, elas nem sempre nascem assim. São milhões de pessoas que vivem sem direitos legais e serviços essenciais.
De acordo com o Artigo 15 da Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) “todo o indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade”, entretanto, há uma lacuna, pois não é especificado a qual nacionalidade este indivíduo tem direito. Sendo assim, os Estados reconheceram que normas adicionais eram necessárias para prevenir e reduzir a apatridia. Em 1954 a ONU adotou a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas e, em 1961, a Convenção para Redução dos Casos de Apatridia. Cada ano que passa aumenta o número de Estados que recorrem à Convenção de 1961 para orientação sobre como cumprir com a obrigação internacional de prevenir a apatridia. Os Estados utilizam elementos dela nas suas legislações sobre nacionalidade.
Causas da Apatridia
A apatridia ocorre por diversos motivos, como por exemplo lacunas nas leis de nacionalidade, falha em reconhecer todos os residentes do país como cidadãos quando este país torna-se independente, conflitos de leis entre países, discriminação contra grupos étnicos ou religiosos específicos, ou com base no gênero, perda de nacionalidade (em alguns países, os cidadãos podem perder sua nacionalidade apenas por viverem no exterior por um longo período de tempo), entre outros.
Campanha #IBelong
Em 2014, o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) lançou a campanha #IBelong (#EuPertenço) para erradicar a apatridia no mundo até 2024. Por meio de defesa legal e aumento da conscientização, e com o apoio de Estados, grupos da sociedade civil, organizações internacionais, instituições nacionais de direitos humanos e outros parceiros, o ACNUR busca alcançar os objetivos da campanha.
Desde o início do #IBelong, em 2014, houveram diversas conquistas. Quase 350 mil apátridas adquiriram nacionalidade em países como Quênia, Quirguistão, Vietña, Tailândia e Filipinas; aumentou o número de adesões às duas Convenções da ONU que dizem respeito aos apátridas; dois países (Madagascar e Serra Leoa) passaram a permitir que as mulheres transmitam sua nacionalidade aos filhos; 16 países estabeleceram ou melhoraram procedimentos, alguns oferecendo um caminho facilitado para a cidadania, entre outras conquistas. Embora os avanços sejam notáveis, o número de apátridas no mundo segue sendo muito alto (a maioria se concentra em regiões da Ásia e África).
A história de Maha Mamo no Brasil
Lembram da história do início do texto? Então, essa era a vida de Maha Mamo, pelo menos até 2018. Maha viveu 30 anos de sua vida como apátrida, e há 2 anos o Brasil concedeu a ela a nacionalidade brasileira. Depois de anos lutando pelo direito de pertencer a algum lugar, Maha conseguiu ser reconhecida. Para ela, a lição é de que nunca se deve perder a esperança.
O processo para conseguir a cidadania brasileira não foi fácil. Durante uma década Maha entrou em contato com embaixadas de inúmeros países, ela contava sua história e apenas recebia respostas negativas. O único país que a acolheu foi o Brasil, não por ela ser apátrida, mas sim porque em 2014 o nosso país abriu as portas para refugiados sírios (obs: nem todo apátrida é refugiado). Quando Maha chegou no Brasil, ao lado de seus irmãos, todos ganharam carteira de trabalho e CPF, porém eles seguiram sendo apátridas.
No ano de 2017, a nova Lei de Migração passou a incluir a apatridia, o que foi um avanço significativo do direito interno. Com essa Lei, há uma facilitação de aquisição de nacionalidade, ainda que o processo seja longo e a pessoa tenha que cumprir uma série de requisitos. De qualquer forma, com a ajuda do ACNUR, ela e sua irmã conseguiram nacionalidade brasileira em outubro de 2018. Infelizmente, o irmão de Maha morreu alguns anos antes, como apátrida.
Se interessou por essa história? Vem dar uma olhada nesse vídeo: https://twitter.com/Refugees/status/1326423453327630338?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1326423453327630338%7Ctwgr%5E&ref_url=https%3A%2F%2Fnews.un.org%2Fpt%2Fstory%2F2020%2F11%2F1732532
Conclusão
Com a pandemia, a situação de milhões de apátridas em todo o mundo apenas piora. Segundo o alto comissário da ONU para Refugiados, Filippo Grandi, “a comunidade internacional deve redobrar os esforços para resolver esta afronta à humanidade no século 21”. Pessoas que se encontram nessa situação não tem culpa por terem nascido ou por virem a se tornar apátridas, como bem diz Maha Mamo. E se há leis internas de determinados países que apenas dificultam o processo de erradicação da apatridia, é papel da comunidade internacional resolver essa questão. Com a campanha #IBelong, espera-se que até 2024 essa situação já tenha sido resolvida. Devemos celebrar as conquistas, porém não podemos esquecer que ainda há muito a ser feito. Milhões de pessoas seguem vivendo suas vidas sem uma pátria para chamar de sua.
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Paola Meine
Amo assistir o amanhecer, comer panqueca doce, rir com os meus amigos e escutar música (the kooks e zimbra, principalmente). Sou um pouco braba, fofa (é o que dizem) e tuiteira (não que eu me orgulhe disso). Gosto de dançar just dance, ler livros que falam sobre história e aprender sobre diferentes países. Quem gosta de festa pode me chamar que topo tudo. Mas também topo ver Friends e comer pizza em casa.