Brasil urbano
Os anos 50 foram marcados por um intenso fluxo migratório no Brasil. O processo de industrialização do país durante o governo de Juscelino Kubitschek, junto a consequente mecanização do campo, a alta concentração fundiária (grande acúmulo de terras na mão de pouquíssimos proprietários que dura até o presente momento), a falta de oportunidades para pequenos produtores (subsídios do governo eram dados apenas à minoria de grandes e médios produtores que tinham terras para dar como garantia) e a baixa qualidade de vida no meio rural quando comparada ao meio urbano, fez com que o processo de migração da população das zonas rurais em direção aos centros urbanos fosse inevitável.
Na década de 1960 a população urbana já superava a rural e nos últimos 60 anos, enquanto a população rural aumentou em 12%, a população urbana aumentou em mais de 1000%, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.
No que se refere ao aspecto alimentar nas cidades, muitas pessoas ainda vivem em situação de insegurança alimentar e nutricional, e têm violado o seu Direito Humano à Alimentação Adequada – DHAA. Somam-se à fome e ao medo de faltar alimentos outros sérios problemas provocados pela má alimentação (obesidade, diabetes, alguns tipos de câncer, obesidade infantil) e que também são reflexos de como as sociedades ocidentais, incluindo a brasileira e o próprio meio urbano vêm se desenvolvendo.O crescimento da população urbana culminou em um desenvolvimento caótico das cidades, marcado por uma profunda desigualdade. O desemprego, a criminalidade, a fome, o trabalho informal, a falta de acesso a serviços básicos de saúde, saneamento, educação e transporte eram, e ainda são, realidade de várias famílias de emigrantes que cresciam e se formavam nas regiões periféricas das grandes cidades, vivendo em situação de vulnerabilidade. Muitos anos se passaram e apesar de uma maior atenção dada às políticas públicas e aos programas sociais na última década, ainda persiste um cenário de desigualdade, insegurança e condições indignas de vida por milhões de moradores e moradoras das cidades brasileiras.
Direito à Cidade e a SAN
Conseguem imaginar o que a favela da rocinha, uma parte remanescente do muro de Berlim e os chamados ‘desertos alimentares’ dos EUA têm em comum? Envolvem questões de Direito à Cidade – DC. Moradores da favela da rocinha sofrem constantemente com problemas de infraestrutura, mobilidade urbana, saneamento básico e segurança; berlinenses protestam contra a demolição da última parte do muro de Berlim para a construção de apartamentos luxuosos no local que é considerado por eles um símbolo de progresso na história recente da Alemanha; e crescem os chamados ‘desertos alimentares’ nos EUA, que são regiões onde é muito difícil ter acesso a alimentos saudáveis e frescos, deixando a população local mais vulnerável à má nutrição e a doenças relacionadas ao consumo de alimentos industrializados. Levando em consideração essa analogia, já dá pra imaginar do que se trata o DC? Definido na Carta Mundial pelo Direito à Cidade de 2006, “O Direito à Cidade implica em enfatizar uma nova maneira de promoção, respeito, defesa, realização dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais garantidos nos instrumentos regionais e internacionais de direitos humanos”, e assim o DC está fortemente ligado àqueles que são temas centrais de nossas discussões: a Segurança Alimentar e Nutricional – SAN e o Direito Humano à Alimentação Adequada – DHAA.
A questão dos ‘desertos alimentares’ dos EUA chama atenção por se tratar de uma nação que possui a maior produção de alimentos e o 4º maior território do planeta, e passa por um grave problema de abastecimento de alimentos (comida de verdade) refletido na saúde de sua população que está obesa e doente. Essa situação (que pode parecer meio absurda, até) é fruto de um sistema alimentar falido, que não tem como objetos centrais o alimento saudável, a produção sustentável e a saúde de cidadãs e cidadãos.
Nominalmente o termo ‘desertos alimentares’ teve origem nos EUA se referindo ao fenômeno lá ocorrido. Porém, esse fenômeno não se restringe apenas a essa região, podendo ser observado aqui e em vários outros lugares do mundo.
No Brasil é possível observarmos áreas onde o acesso a alimentos saudáveis é dificultado, tanto por uma questão de oferta, quanto por questões que envolvem o custo desses alimentos, o conhecimento da população, a massiva disponibilidade e publicidade de alimentos industrializados e a falta de um adequado desenvolvimento urbano nas cidades.
O DHAA e o DC caminham juntos de mãos dadas. A segregação socioterritorial (cidades divididas em periferias e centros urbanos, culminando também em uma segregação social, racial e cultural), a degradação do meio ambiente, as perdas de áreas cultiváveis, as alterações climáticas e a precarização de serviços de infraestrutura são questões centrais ao DC e ao DHAA, que afetam principalmente a moradores de regiões periféricas. A forma como se dá a produção e a distribuição dos espaços urbanos acaba por segregar e excluir milhares de pessoas no que diz respeito à função social das cidades, que em linhas muito gerais é o conjunto de direitos a serem acessados por toda a população que lhe permitam exercer sua cidadania e que lhe garantam uma condição básica de vida.
Portanto, a melhoria na qualidade e nas condições de vida da população urbana, assim como a efetivação dos direitos sociais à moradia, à mobilidade, à saúde, à educação e à alimentação adequada também devem fazer parte do processo de desenvolvimento urbano das cidades, marcado historicamente por ser restritamente fundamentado no desenvolvimento industrial e econômico.
SAN no Desenvolvimento Urbano
Com a crescente oferta e consumo de alimentos insalubres (ultra-processados, transgênicos e contaminados por agrotóxicos) nas cidades, se alimentar de forma saudável parece ser um desafio. Apesar de nosso sistema alimentar não ser tão desconexo com a ideia de soberania alimentar, como é o norte-americano, ainda enfrentamos muitos problemas como os mecanismos de produção e abastecimento de alimentos saudáveis nas cidades além da frágil (quando não nula) regulação de alimentos industrializados, transgênicos e que utilizam agrotóxicos.
Para melhorar esse cenário são necessários esforços públicos, coletivos e individuais que propiciem um desenvolvimento urbano compatível à realização da alimentação adequada e saudável por todos e todas, fruto de um sistema alimentar saudável e sustentável.
Desta forma, a agricultura urbana (ou agricultura intra-urbana) e periurbana aparecem como boas alternativas, para um começo de conversa. Tratam-se de práticas que já vêm sendo adotadas em vários lugares do mundo e referem-se à utilização de espaços situados dentro das cidades (centro e periferia) para a produção agrícola e criação de pequenos animais, destinados ao consumo próprio ou à venda em mercados locais. Podem ser aproveitados espaços domésticos, privados, coletivos, públicos, enfim, qualquer espaço mal utilizado ou subutilizado e potencialmente produtivo.
A agricultura urbana pode trazer uma série de benefícios além de oferecer alimentos de melhor qualidade nutricional. De início: um melhor aproveitamento de áreas baldias e destinadas a acúmulo de lixo e entulho; melhor utilização do lixo orgânico para parte do processo de cultivo; e um acesso mais democrático à cidade. Além do mais a agricultura urbana através de hortas comunitárias, por exemplo, podem se transformar em espaços de bem-estar e convivência dentro do ambiente caótico que formam as cidades. É uma forma de interação onde as pessoas se encontram para cuidar de algo coletivamente; conversam, sentem cheiros mais naturais, pegam na terra e tiram proveito daquilo que produzem, pois, melhor do que poder preparar seu próprio alimento é você também poder cultivá-lo.
Além de todos esses benefícios, para muitas famílias e grupos, a agricultura urbana é meio de vida e sustento. O apoio por parte do poder público, via políticas públicas adequadas, seria importante para esses seguirem produzindo e vendendo seus alimentos, contribuindo para um sistema alimentar local mais justo, sustentável e saudável.
É importante também reconhecer e valorizar espaços como o Conselho de Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – Consea e o Conselho Nacional das Cidades – ConCida como importantes formas de diálogo entre o governo e a sociedade. Nessa agenda, a participação da população é necessária, pois, se o DC diz que a cidade deve ser para todos e todas, logo, também é responsabilidade de todos e todas participarem da construção desse espaço. E você, o que acha que é necessário para que a população da sua cidade se alimente e viva melhor?Além da esfera produtiva, o abastecimento e a regulação de alimentos nas cidades também precisam ser considerados. Nesse aspecto são fundamentais as ações governamentais, seja através do incentivo fiscal ou de políticas públicas, que aumentem a disponibilidade de alimentos saudáveis em estabelecimentos comerciais comuns. A tarifação de alimentos açucarados e a redução de impostos sobre frutas, legumes e verduras pode ser uma alternativa para incentivar a venda de alimentos saudáveis. Ações de Educação Alimentar e Nutricional como campanhas publicitárias em locais de grande circulação de pessoas (paradas de ônibus, estações de metrô, galerias) incentivandoo consumo destes alimentos também não seriam uma boa? Uma outra e não menos importante ação é a regulação da propaganda de alimentos industrializados, já que ela acontece de forma abusiva, principalmente para o público infantil, e impacta diretamente nas escolhas alimentares da população.
“O subdesenvolvimento não é, como muitos pensam equivocadamente, insuficiência ou ausência de desenvolvimento. O subdesenvolvimento é um produto ou um subproduto do desenvolvimento, uma derivação inevitável da exploração econômica colonial ou neocolonial, que continua se exercendo sobre diversas regiões do planeta”.
– Josué de Castro
Fonte: https://raisco.wordpress.com/2016/06/16/a-san-nas-cidades/