ENTREVISTA COM JOAO FERNANDO IGANSI NUNES

Indústria gráfica no contexto das tradições doceiras locais.

Nessa entrevista, o Professor João Fernando Igansi Nunes relata sua atuação como pesquisador no campo da Memória Gráfica e suas contribuições na investigação a respeito da indústria gráfica de rotulagem de Pelotas-RS, com foco no setor conserveiro. Igansi nos fornece elementos importantes para compreendermos aspectos culturais, industriais e comerciais que participam da constituição da cultura visual que abrange o gênero da rotulagem. A leitura da entrevista trará elementos para que possamos identificar múltiplas influências na concepção visual desse material, bem como aponta aspectos que o configuram como elemento da expressão cultural e sua importância no contexto das tradições doceiras locais.

Por Daniella Mano

 

 

Como se dá a inserção do campo da memória gráfica na sua atuação? 

A memória gráfica como campo interdisciplinar, enquanto expressão de uma cultura visual (patrimônio material e imaterial), está inserida na minha atuação profissional como docente responsável pela disciplina de Tipografia (Cursos de Design, Centro de Artes), no que tange às abordagens trabalhadas acerca da transcrição da cultura oral à cultura escrita, refletindo sobre as referências adotadas para a construção dos signos alfabéticos, códigos verbais bem como pela decorrente relação entre os pares escrita e leitura na cultura visual.

Como objeto de investigação, o que chamamos de memória gráfica se insere no meu campo de atuação a partir do projeto de pesquisa “Memória Gráfica de Pelotas: um século de design”, do qual participei, sob a condição de coordenador, no período de 2008 a 2017, investigando sujeitos autores (artistas gráficos/designers) e seus processos criativos; organizando acervos de periódicos e identificando espaços de trabalho (ateliês de gravura, oficinas e indústrias gráficas, de pequeno e médio porte); e, por integrar a “rede" de investigação que se gerou durante a trajetória do seminário internacional Design, Tradição e Sociedade, ativo desde 2009, que reúne pesquisadores nacionais e internacionais (especialmente da América Latina) para refletir o Design Gráfico na esteira conceitual da memória social, sua sistemática preservação e, consequentemente, auxiliar na promoção dos valores culturais plasmados em artefatos gráficos, os quais exploro na minha prática docente como método interdisciplinar para o ensino e pesquisa: orientações de dissertações e teses no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural.

A cidade de Pelotas está no centro de uma região doceira que surgiu entrelaçada ao desenvolvimento da sociedade local. A fabricação de doces na região, proporcionou ao longo dos anos a produção de uma variedade de material gráfico, que se verifica no acervo de rótulos da indústria conserveira de Pelotas. Qual a relevância para o estudo da memória gráfica local, pensando-se nas particularidades da elaboração e produção desses rótulos do setor conserveiro da cidade? 

A origem da prática de rotulagem remonta a meados de 1880, no continente europeu, Pós-Revolução Industrial. Somente na década de 1930, a partir dos esforços do empresário norte americano Ray Stanton Avery, é que os rótulos passaram a ter características técnicas industriais, como etiquetas autoadesivas que conhecemos. Muitas foram as transformações sociais e técnicas que consolidaram seus usos e funções.

A utilização dessas “etiquetas”, que atravessaram gerações, tornou-se indispensável na sociedade contemporânea em virtude da produção em larga escala de produtos que necessitam de uma devida e eficaz identificação e, assim, diferenciação. Como registrou o filósofo e semioticista Charles Sanders Peirce (1839-1914), o significado está na diferença.

O rótulo é um elemento fundamental na comunicação de massa, existe num contexto intrinsicamente relacionado às atividades comerciais. Quanto maior o valor agregado, maior o consumo, maior a produção e aquisição de renda. Os conteúdos visuais gráficos dos rótulos são signos do contexto cultural - industrial - comercial do produto que ele representa, identifica e informa. Pelotas viveu e beneficiou-se amplamente desse contexto até, aproximadamente, segunda metade do séc. XX.

Como resultado de uma produção gráfica, os rótulos são artefatos classificados por muitos profissionais da área como impressos efêmeros (assim como as embalagens, cardápios, filipetas, santinhos, papel timbrado, cartões de visita etc.). São matrizes [documentos] de pesquisa com narrativas visuais de uma época, de estilos de vida retratados, de temporalidades representadas por meio de um sistema lógico de linguagem.

Como artefatos de um patrimônio cultural material e imaterial, os rótulos da indústria doceira em Pelotas permitem identificar modos de fazer (processos criativos), técnicas e linguagens operadas de um cenário típico de desenvolvimento industrial. Além do ensino institucionalizado, a memória gráfica abrange e interage com o “comum”, com o ordinário,  que apresenta [em potência] um valor estético singular, muitas vezes identificado nas soluções visuais que se registram com seus padrões formais, cromáticos, tipográficos: exemplo dos recorrentes usos de tons de rosa, verde e azul nas publicidades no periódico “Almanach de Pelotas” (de 1913 a 1935) conforme observa-se nos exemplares publicados pelo grupo de pesquisa Memória Gráfica: Design, Tradição e Sociedade, hiperlink https://wp.ufpel.edu.br/memoriagraficadepelotas/almanaques/.

A produção de rótulos no setor conserveiro de Pelotas se estende desde o final do século XIX até os dias de hoje. O que as modificações visuais que podem ser percebidas nesses rótulos, durante esse período, podem nos informar sobre as transformações na sociedade local?

A sociedade industrializada transformou sua maneira de “escrever", o resultado disso trouxe soluções singulares em virtude das intrínsecas transformações no seu modo de “ler” e vice-versa.

O desenvolvimento técnico, os estilos estéticos oriundos da linotipia e da gravura e os resultados visuais das artes gráficas sofreram impacto com essas novas formas de escrever e ver/ler o mundo. Por exemplo, o aumento da presença da fotografia substituindo as ilustrações nas peças gráficas ou, na educação, pela valorização da imagem para o processo do aprendizado (método didático), resultaram em soluções de formas e composições completamente distintas do pré-fotográfico. Essas transformações técnicas de produção também implicaram na alteração significativa da figura do sujeito artesão/impressor/trabalhador/autor do projeto.

Necessário compreender que, geralmente, as soluções estéticas estão condicionadas aos materiais e ferramentas disponíveis (clichês, tintas, papeis, tipografias etc.) e não são resultados dados por uma decisão apenas do autor, do “designer”. Conforme o parque gráfico em Pelotas se desenvolvia com a disponibilidade de materiais e técnicas, seus processos de criação se adequavam gerando outros resultados.

Essas transformações estão diretamente associadas à cultura gráfica que se constrói a partir de três dimensões complementares: processo criativo (memória e imaginação, cultura do saber [estilo] fazer), o técnico (ferramentas e equipamentos) e o social (principalmente no que tange as diretrizes da economia e da política). Por algumas das vezes, essas dimensões estão atravessadas por valores externos (importados) e, noutras, por referências internas, pela vontade de buscar uma relação mais identitária com o local.

Ainda nessa esteira, pode-se observar que, mesmo com a vasta e rica trajetória da indústria gráfica em Pelotas, através da qualidade dos rótulos das indústrias conserveiras, o valor atribuído a esse material é ainda o de mero artefato de identificação, sem um significativo valor cultural agregado como de fato é. O rótulo, em potência, é uma expressão cultural que identifica não só seu produto, mas sua origem, com um sentido próprio de lugar a partir das narrativas visuais que veiculam e, dessa maneira, comunicam e funcionam como substrato de memória [gráfica], memória do seu patrimônio alimentar e memória dos seus sujeitos: agentes autores, produtores e consumidores.

Considerando os conceitos da antropologia simbólica do antropólogo norte-americano Clifford Geertz, influenciado pela hermenêutica de Paul Ricoeur, devemos tratar os rótulos como uma ferramenta de compreensão coletiva das ações, dos discursos, dos símbolos de uma paisagem industrial, das instituições e da própria comunidade, constituindo sua cultura visual a partir do seu próprio sistema de sinais para a sua consequente interpretação, estabelecendo uma comunicação que extrai, divulga e consolida o objeto como verdadeiro extrato de memória e reconhecimento de um bem, no caso em pauta, patrimonial.

Em fins do século XIX começam a se constituir diferentes movimentos da arte moderna após o advento do Impressionismo. Em relação aos rótulos de doce produzidos em Pelotas, compreendendo o final do século XIX até os dias de hoje, é possível identificar a influência de correntes estéticas da arte moderna ou de outros períodos na concepção visual desse material?  

Especificamente, o modernismo na indústria gráfica em Pelotas foi muito tardio. Mesmo quando se identifica o uso de tipografias sem serifa, sem contraste e ditas mecanizadas, suas ocorrências são atribuídas pelas suas disponibilidades e não como uma real influência ou tomada de decisão pautada por um objetivo de resultado esperado. Oportuno ampliar estudos aprofundados sobre essas possíveis influências.

De outra maneira, os criadores gráficos em Pelotas, com suas soluções, consolidaram um perfil específico e capacitado ao ofício, atribuindo-lhe tratamento conceitual condicionado ao seu estado de desenvolvimento processual e técnico, com usos de ferramentas e materiais próprios.

Tipografias e arranjos gráficos assimétricos nos rótulos de conservas de doces em Pelotas, entre o final do séc. XIX e a primeira metade séc. XX, em sua maioria, apresentam um estilo decorativo em plena “idade de ouro” de uma chamada Belle Époque, com composição e tratamento visual influenciados pelo art nouveau que, gradativamente, vai fortalecendo os princípios irrevogáveis do modernismo.

Ainda no sentido do que orientou a produção desse material, é possível identificar aspectos singulares na produção local, ou ainda, é possível dizer que os rótulos seguem tendências nacionais?

Não sei se nacionais ou internacionais. Pelotas está muito mais próxima do Uruguai e da Argentina do que de São Paulo/SP ou do Rio de Janeiro/ RJ. Penso que, pela prática e pelos recursos e usos dados a esse tipo de comunicação de massa, acaba por resultar como singular conforme verifica-se nas recorrências compositivas que apresentam: repetidos enquadramentos, variedade de tipografias, diferenças nas qualidades de impressão e/ou demais recursos gráficos (planilha cromática e/ou layout, por exemplo) reconhecíveis.

A proximidade com o Porto Internacional de Rio Grande contribuiu significativamente ao desenvolvimento da indústria gráfica em Pelotas. Através dele, o acesso a Europa era, talvez, muito maior do que a SP ou RJ. Nesse sentido, além das referências estéticas que se tinha e se praticava (Artes Plásticas, Literatura, Cinema, Fotografia), muitos insumos (tintas e/ou papeis especiais) e materiais (clichês, ferramentas e/ou maquinários) tinham como principal origem os países de Portugal, França, Inglaterra e Alemanha graças a esse facilitado acesso [importação] marítimo.

O uso estabelecido de padrões gera uma permanência dos mesmos e os fortalece. Como no caso da typeface Helvética: quanto mais é utilizada, mais funciona, mais é utilizada, mais funciona… no mais puro estado de um ritornello. Alicerçado pelo marco teórico pós-estruturalista de Felix Guattari, considero esse processo como uma metáfora de máquina. Seu funcionamento é o estado de fluxo dessa repetição de valores, de modelos, permanência de uma cultura visual que surge, sempre, num contexto cultural, técnico e econômico específico e permanece enquanto não surge uma ruptura nesse continuum. A pandemia da covid-19 configura uma ruptura real e atual, impactando diretamente na gramática visual: novos signos para novos comportamentos.

Verificando-se a relevância do entorno material como resultado da produção de embalagens, jornais, cartazes e bilhetes, de que forma os rótulos seguem tendências que se conectam com a produção de outros meios de veiculação de concepções visuais? 

Sim, em virtude das técnicas de impressão (desenvolvimento e aprimoramentos do parque gráfico), dos materiais utilizados e da cultura visual praticada, própria de uma tradição doceira, conserveira, étnica e socialmente situada, as concepções visuais foram geradas em outras especialidades da cultura da página impressa, a exemplo dos periódicos.

Mantendo a integridade das relações entre os símbolos contidos na visualidade plasmada nos rótulos de doce e as representações características da paisagem cultural do território de Pelotas e entorno, podemos considerar a memória gráfica um campo sistêmico, constituído também pelas suas extensões políticas, sociais e econômicas. Os intercâmbios de experiências advindos de métodos de produção em meios diversos, de fato, veiculam concepções visuais interconectadas.

Como exemplo de uma linguagem pictórica voltada à memória e identidade de um território, com uma indústria gráfica com características próprias, pode-se observar os  rótulos do patrimonializado vinho de Jerez, Andaluzia - Espanha, de certificação de origem controlada desde 1933, que apresentam exemplares de representação significativa do desenvolvimento de seu território, conforme verifica-se na exposição de etiquetas de vinhos (1870-1930) (http://www.losvinosdecadiz.es/2014/02/exposicion-de-etiquetas-de-vinos-1870.html), organizada e coordenada pela professora e pesquisadora Carmen Borrego Plá. Ou ainda, pelo trabalho investigativo de Alberto Ramos Santana apresentado, parcialmente, no robusto artigo intitulado Iconografía de etiquetas antiguas del vino del Marco del Jerez, Xérès, Sherry  (https://www.redalyc.org/journal/4695/469554838024/html/).

Muitos marcos históricos proporcionaram uma transformação nos métodos de impressão, que no século XV se resumiam a impressão tipográfica. De que forma os métodos tradicionais ou contemporâneos de impressão se relacionam às concepções visuais referentes a cada período? 

A indústria gráfica em Pelotas passou por diversas técnicas de impressão: tipografia, artes gráficas (ateliês de gravura), offset… constituindo seu legado conforme as especificidades de cada uma delas. Estou de acordo com a sentença de que a técnica sempre influenciará o resultado estético/formal.

O pensamento gráfico está diretamente associado ao método/ferramenta/técnica de criação e de produção que, consequentemente, interage no processo criativo. Desenhar à mão livre impõe um raciocínio diferente de desenhar no illustrator, de algum modo a ferramenta coopera no processo criativo, como cocriação; produzir em gravura, serigrafia e/ou offset altera, significativamente, o processo de criação e, dessa maneira, interfere nos seus resultados.

A criação com linguagens computacionais opera tecnicas que Lev Manovich chama de meta-ferramentas: simulação da página impressa, da máquina de escrever, da fotografia, do rádio, televisão… simulação de fresa, de retícula, de carvão, de afresco, aquarela etc. Identifica-se, em muitos períodos da história, uma recorrência de soluções visuais oriundas das estéticas resultantes de técnicas que lhes antecederam. Ou seja, em tese, o contexto cultural, técnico e estético operado define a cultura visual que se instaura porque é praticado.

Assim, podemos assumir que Pelotas possui, plasmada em seus rótulos de doce, uma cultura visual gráfica própria do seu histórico: "Do todo a parte, da coleção ao exemplar, da série ao modelo.”

Ao longo dos anos que sucederam a produção, houve um enorme desenvolvimento na área alimentícia que despertou a necessidade de determinar legislações que estabelecem critérios de qualidade, compreendendo todas as etapas de produção. Qual impacto a regulamentação do setor no âmbito da rotulagem tem sobre a linguagem gráfica na produção dos rótulos doceiros?

O impacto é apenas aos rótulos/etiquetas/materiais que estão em contato com o alimento. As informações regulamentativas para a confecção de um rótulo segue as recomendações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA - https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/alimentos/rotulagem/arquivos/4701json-file-1). O rótulos deixaram de apresentar apenas as marcas das empresas e identificação [visual] dos produtos. Atualmente, informações sobre os ingredientes, lote e prazo de validade, quantidade/peso, produtores e origem são alguns dos itens obrigatórios. A partir de 2015, a ANVISA passou a exigir a inclusão de informações destacadas para alimentos que contêm alergênicos. Essas regulamentações, ao alterarem o conteúdo necessário para apresentar o produto no rótulo (tudo que está gravado, seja descritivamente ou graficamente, sobre a embalagem), interferem no campo compositivo alterando o layout da peça e, assim, sua visualidade.

Qual a importância da identificação desses aspectos históricos de rotulagem no setor conserveiro, em relação as possibilidades projetuais a partir da utilização de métodos tradicionais em projetos contemporâneos?

A cultura visual é ferramenta para compreender os valores sociais. O desenvolvimento projetual de rótulos está diretamente relacionado à cultura visual, seja ela tradicional ou contemporânea, local e/ou global.

Identificar os aspectos históricos da indústria de rotulagem de conservas [doces, principalmente] permite compreender minimamente a sociedade no seu passado e, assim, possibilita pensá-la no presente e impulsioná-la à um futuro, mais promissor, desenvolvido e sustentável a partir de soluções apropriadas ao seu contexto cultural - industrial - comercial.

 

 

João Fernando Igansi Nunes

Doutor em Comunicação e Semiótica, PUC/SP com a Tese Design Computacional: comunicação do in-visível, 2008. Membro do Grupo de Pesquisa NetArt perspectivas críticas e criativas (FAPESP) e do grupo de pesquisas Software Studies do Brasil (FILE Lab SP / UCSD - EuA), 2008. Pesquisador, bolsista CNPq, no Laboratoire Paragraphe da Universidade Paris 8, França, 2007. Mestre em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2002. Pesquisador na Biblioteca Nacional de Madri, através de bolsa de estudos da Universidade Complutense de Madri - Espanha, 1999. Graduado em Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal de Pelotas, 1997. Professor do Magistério Superior Associado. Docente permanente nos Cursos de Bacharelado em Design, Centro de Artes, UFPel e do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural, ICH/UFPEL. Coordenador Adjunto do Projeto para implantação do Polo Morro Redondo da Cátedra UNESCO-IPT. Dedica-se ao desenvolvimento de pesquisas em Design e Desenvolvimento Territorial. Áreas de interesse e atuação em Comunicação, Semiótica, Artes, Design, Interfaces Computacionais, Memória Social e Patrimônio Cultural.