ENTREVISTA COM FÁBIO VERGARA CEQUEIRA
Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) das tradições doceiras de Pelotas e região.
Nessa entrevista o Professor Dr. Fábio Vergara Cerqueira relata sua experiência de participação na realização do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) das tradições doceiras de Pelotas e região. Cerqueira relata várias das experiências vividas em pesquisa de campo, assim como nos fornece elementos para entendermos as dinâmicas pelas quais passam os bens culturais em processo de registro e quais instrumentos são requisitados para esse trabalho. O relato nos apresenta as interseções sociais, culturais, históricas e institucionais das tradições doceiras de Pelotas e região, bem como aponta alguns novos caminhos que o trabalho em torno dessas tradições pode vir a desenvolver. O pesquisador nos leva também a refletir sobre os impactos que a patrimonialização das tradições doceiras pode vir a proporcionar sobre suas dinâmicas. A leitura da entrevista trará elementos para pensarmos aquilo que configura as tradições doceiras da Pelotas e da antiga Pelotas uma expressão com singularidades tais que garantiram sua inscrição no Livro de Registro dos Saberes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Por Roberto Heiden
Como se deu a sua vinculação na equipe de pesquisa para a elaboração do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) sobre as Tradições Doceiras da Região de Pelotas e Antiga Pelotas (Arroio do Padre, Capão do Leão, Morro Redondo, Turuçu)?
Em 2000 criamos o LEPAARQ, que contemplava duas áreas de pesquisa, até então não desenvolvidas na UFPel: a arqueologia e a antropologia, eu estava à frente da primeira, a Flávia Rieth da segunda. Desde 2001 iniciamos cooperação com a Secretaria de Cultura, na época com a Renata Requião à frente, e com o IPHAN, inicialmente com a Débora Magalhães na superintendência, e depois, com a mudança do Governo Federal, com a Ana Meira.
Logo de início desenvolvemos dois projetos-piloto na pesquisa arqueológica, o salvamento arqueológico do centro histórico, nas áreas afetadas pelo Programa BID-Monumenta, e o Mapeamento Arqueológico de Pelotas e Região. O desenvolvimento destes projetos, que implicava a aprovação de portaria de autorização das pesquisas, levou a termos uma agenda em comum, envolvendo diferentes frentes, com a Secretaria Municipal de Cultura e com o IPHAN. Ao mesmo tempo, a área de Antropologia mantinha uma aproximação com a Secretaria Municipal de Cultura, com os projetos de mapeamento cultural de Pelotas e com o carnaval.
Apresentei esta introdução, para contextualizar as razões de termos nos tornado a equipe responsável pela pesquisa: o LEPAARQ, possuía quatro anos de agenda cooperativa com os dois órgãos, quando, em 2004, surge um edital financiado pela UNESCO, via IPHAN, direcionado às cidades contempladas pelo programa MONUMENTA, visto na origem o Monumenta ter financiamento do BID. Nesta ocasião, recebi então uma ligação telefônica da Ana Meira, consultando se poderíamos desenvolver o projeto para o INRC do Doce, submetendo-o a este edital. Na sequência, poucos dias depois, fui procurado também pela secretária de Cultura, neste momento, sob a direção da Beatriz Araújo. A partir daí, levei o assunto ao LEPAARQ, e eu e Flávia tivemos reuniões com a SECULT, quando convidamos a Maria Letícia Mazzucchi Ferreira a se somar a equipe, que deste o início pensamos que devia necessariamente ser interdisciplinar, apesar do foco central, pela metodologia de campo, na Antropologia, motivo pelo qual entendemos que a coordenação devia caber à Flávia. Logo em seguida o professor Rogério Rosa, recém ingresso na UFPel, somou-se à equipe, colaborando na fase inicial, ainda pré-campo.
Esta fase inicial foi decisiva quanto ao conceito do que entenderíamos como “doce” a ser inventariado. Logo ficou definido que a base institucional se sustentaria numa triangulação entre Secretaria Municipal de Cultura, UFPel, via LEPAARQ, e CDL, visto ser necessário que o projeto fosse gerido por um ente não público. Nesta fase, ocorreu uma reunião com uma equipe do SEBRAE, que estava envolvida com um processo de identificação geográfica do doce, e precisamos externar que do ponto de vista patrimonial operávamos com outros parâmetros. Neste contexto, nossa primeira “vira de mesa” foi convencer de que os doces a serem patrimonializados não se limitavam a um número “x” de “doces finos” (nos foi apresentada uma lista com menos de dez doces, que seriam os doces a serem patrimonializados), pois se tratava outrossim de uma “cultura doceira”, e que esta cultura combinava duas grandes tradições doceiras, a tradição de origem lusitana, dos “doces finos”, mais urbana e associada à história das charqueadas, e a tradição vinculada em grande parte à região da “colônia de Pelotas”, marcada pela produção dos doces de fruta, conhecidos como “doces de tacho” ou “doces de estação”.
Pelo fato de eu ter iniciado em 2000 minha atuação na Vila Maciel, que veio a resultar na criação do Museu Etnográfico da Colônia Maciel, eu tinha já naquele momento um determinado grau de compreensão – e compromisso – relativamente às tradições culturais que comporiam o patrimônio da imigração da Serra dos Tapes. Por esse motivo, coloquei para a nossa equipe que este era um dos pontos a defendermos, no que obtivemos êxito. Incluiu-se a tradição de doces coloniais no projeto submetido ao edital – assim foi aprovado e assim deveria então ser executado.
Como foi a sua experiência de participação nas atividades de elaboração do referido inventário? Você concentrou suas atividades em algum aspecto em especial das tradições? Em caso afirmativo, que aspecto foi esse e o que você consideraria importante destacar?
A elaboração do inventário se constituiu de diferentes fases. Após a aprovação do nosso projeto no edital em 2004, ocorreu uma longa fase preparatória, que ocupou praticamente todo o ano de 2005, em que foi estabelecido todo o modelo de custeio das atividades da equipe, que envolvia, por exemplo, o pagamento de bolsistas. A execução da parte administrativa passava pela CDL e pela Fundação Simon Bolívar, sempre com a intermediação da SECULT. Na fase de campo, de coleta de dados, que transcorreu entre 2006 e 2007, a equipe foi dividida em duas: uma trabalharia a tradição dos doces finos, mais concentrada na zona urbana, mas também algumas fábricas situadas no perímetro urbano, e outra equipe dedicada ao espaço rural, em que se concentram os produtores de doces de fruta, da tradição ligada à colônia.
Coube a mim coordenar a frente de trabalho dedicada à doçaria colonial, contando com a participação, na equipe, do hoje antropólogo Tiago Lemões, à época graduando em História pela UFPel. É preciso fazer o registro de que no ponto de partida para o trabalho na zona rural, sobretudo na região em que se produzem os doces cristalizados e os doces em passas, contamos com a colaboração imprescindível do professor Leonardo Recuero, à época meu orientando de mestrado em Ciências Sociais, o qual, em decorrência de uma experiência profissional anterior, conhecia com detalhe toda a região rural em que se situavam esses produtores, aos quais nos levou e aos quais nos apresentou, o que foi uma condição de viabilidade para o andamento da pesquisa.
Gostaria de destacar dois aspectos que me chamaram mais a atenção. O primeiro é a integração destas tradições doceiras rurais à paisagem, seja porque estão conectadas à atividade agrária, à tradição fruticultora desenvolvida desde o século XIX, aos pomares, seja porque em muitos casos os doces passam por etapas produtivas que podem ser feitas ao ar livre, seja na secagem ao sol ou no cozimento da fruta no tacho. Isto em minha memória me remete à beleza estética, na paisagem, resultante do dourado refletido do sol sobre as passas de pêssego ou pêssegos em passa, secando ao sol sobre tabuleiros, alternando-se com outros doces, como a marmelada branca e o origone.
O segundo aspecto, é a tensão entre tradição e inovação, a qual chega nem sempre como um desejo espontâneo de melhoria, mas por regulações impostas por órgãos oficiais, que na maior parte dos casos desconsideram a lógica cultural e impõe normativas burocráticas que desconsideram possibilidades de mediação entre aspectos sanitários, econômicos e patrimoniais. Neste sentido, vale ressaltar que ao longo de nossa pesquisa, assistimos a este processo em fluxo. Os varais sobre os quais secavam os doces desidratados ao sol, acomodados sobre tabuleiros e cobertos por tules, que marcaram por muitas décadas e gerações a rotina da produção da passa de pêssego e da marmelada branca, que no passado fizeram a fama dos doces de Pelotas, repentinamente desapareceram da paisagem, pois o olhar burocrático impôs a substituição destas pelas estufas – e a secagem em estufa nunca proporciona a mesma textura na casquinha destes doces. Ao mesmo tempo, uma incrível beleza foi subtraída ao nosso olhar. Mas este choque entre tradição e tecnologia se deu também na interdição do uso dos tachos de cobre, apesar de que em outras regiões do país não se verifica esta mesma ação dos órgãos oficiais na proibição do uso deste recipiente, que é, contudo, indispensável para se alcançar o ponto correto para alguns doces, como a marmelada branca.
Os produtores sempre relatam suas dificuldades de adaptação constante, que dificulta a regularização de suas atividades, pelo alto custo financeiro, e que prejudica a preservação de modos tradicionais de saber fazer. Salta aos olhos a inexistência de um diálogo proativo entre os diferentes entes estatais, responsáveis uns pela cultura, turismo e tradições, outros pela regularização econômica, questões sanitárias e ambientais. Resultado disso, alguns produtores são lançados em uma indesejável clandestinidade ou abandonam sua produção herdada de gerações anteriores.
O INRC como metodologia possibilitou uma abordagem mais ampla do fenômeno cultural? Como foi inventariar vários bens culturais no mesmo INRC?
O INRC, cujos formulários preenchemos ao longo do ano de 2008, não impede que haja um equilíbrio entre a visão de conjunto e a descrição de um bem em específico. Há uma parte referente ao histórico e geografia da região, levantamento de fontes e documentação, assim como de registro dos depoentes, ou seja, daqueles responsáveis por portarem as tradições imateriais, que geram uma visão muito abrangente. No caso, se fez um registro bastante amplo de vários produtores de doce, da zona urbana e rural, dos doces portugueses e da doçaria colonial, que permitiu traçar uma visão de conjunto destas trajetórias.
Vale ressaltar que o inventário resultou exatamente na ruptura com a visão de doces isolados a serem preservados em sua individualidade; outrossim vingou o conceito de uma região doceira, de uma paisagem doceira, atravessada por múltiplas tradições, em que pesam por exemplo as tradições étnicas, e se entendeu que o conjunto destas tradições doceiras é bastante dinâmico e interdependente. Mas não descuidamos de caracterizar, pormenorizadamente, cada um dos doces “urbanos” e “rurais” que foram arrolados no INRC, o que envolve vários aspectos.
No nosso caso, que trabalhamos a área rural, os “doces de tacho”, foram preenchidos com atenção aos campos atinentes por exemplo à produção das frutas, suas variedades e sazonalidade, o manuseio das frutas nas manufaturas familiares ou fábricas de médio ou grande porte, o saber fazer tradicional ou industrial em suas várias etapas, bem como o maquinário, artesanal ou industrial, embalagens e comercialização. A gestão do tempo, as etapas de produção, a organização do espaço, os objetos utilizados, as pessoas que atuam, o papel das diferentes gerações nesta produção, as mudanças ontem e hoje, impostas ou volitivas. Os odores, as sensações, as trocas intergeracionais e de gênero, na atribuição de diferentes funções na produção do doce. Exemplos: a mão de obra feminina nos pomares e na indústria conserveira ou o papel consagrado ao homem na tradição pomerana para identificar o ponto do doce em seu cozimento no tacho. Todos esses aspectos foram contemplados, com o objetivo de se caracterizar detalhadamente estes bens culturais.
Quais não foi possível inserir na descrição das tuas fichas?
À época, talvez pelo olhar do arqueólogo, preocupou-me que o INRC não dispusesse de campos mais aprimorados para a caracterização da “cultura material” associada ao saber-fazer doceiro. Espero que o instrumento de pesquisa tenha se aprimorado a este respeito, pois esta falha foi por nós apontada, em consonância com todo o debate que vem sendo feito, no tocante à indissociabilidade entre a dimensão material e imaterial do patrimônio.
Uma falha de nosso INRC, na medida em que vislumbrou uma cultura doceira composta pela associação de múltiplas tradições, estas por sua vez ligadas a múltiplos legados étnicos, foi não ter dado a devida atenção aos doces de farinha, tais como biscoitos e cucas, que têm uma forte presença na região colonial, sobretudo na área em que a influência cultural de origem alemã e pomerana é mais pronunciada, como os municípios de Arroio do Padre, Turuçu e São Lourenço, integrantes do que denominamos no projeto como “Pelotas Antiga”, bem como os distritos de Santa Silvana e Triunfo, em que a presença dessa “etnia” é preponderante. Há todo um saber-fazer, assim como “cultura material” associada à produção destes doces de farinha, como formas conservadas nas famílias há muitas gerações. Um exemplo muito singelo são as Seerosen (“rosas do mar”), biscoito pomerano em forma de roda de carreta, que merecia ser valorizado do ponto de vista patrimonial. Penso que em uma revisão do INRC, as quais estariam previstas para acontecer a cada dez anos, seria importante ter um olhar mais inclusivo com relação a este aspecto.
Penso igualmente que o arroz com pêssego merecia ter sido inventariado, tendo em vista ser uma particularidade da região sul do estado, daquilo que chamo a “Grande Pelotas”, que tem como marca linguística ser a região onde se diz “merece”. O arroz com pêssego pode ser lido economicamente como uma síntese entre a economia latifundiária arrozeira, que substituiu o ciclo estancieiro-charqueador, e a economia minifundiária fruticultora, que se desenvolveu como desdobramento do ciclo de instalações de colônias agrícolas de imigrantes na Serra dos Tapes. É considerado algo tão corriqueiro em Pelotas, ao ponto de não se dar a perceber sua singularidade. Apesar de um doce muito especial, dificilmente se encontra em restaurantes, sendo de produção e consumo mais doméstico. É um doce com suas variedades (o pêssego pode ser usado fresco, congelado, desidratado ou em conserva!), que aguarda por uma atenção maior numa futura revisão do inventário.
Em relação ao universo pesquisado, como se deu esse contato entre pesquisadores e atores sociais?
Referindo-me ao espaço rural em que atuei, que corresponde à Serra dos Tapes, poderia fazer uma divisão espacial arbitrária em duas regiões: a leste e a oeste da BR-392, que liga Pelotas a Santa Maria. Na porção leste, onde se situam por exemplo a Vila Maciel, o Gruppelli, o Bacchini e a Vila Nova, eu já atuava, por meio dos projetos dos museus (Museu Etnográfico da Vila Maciel, Museu da Colônia Francesa, Museu Gruppelli), tendo já à época contatos com famílias, lideranças e produtores em diferentes áreas do sétimo e oitavo distritos de Pelotas (respectivamente, distrito do Quilombo e Rincão da Cruz). Na mesma medida, eu já possuía um certo volume de informações prévias, que me ajudaram a me orientar nesta área, em que se situam por exemplo as duas fábricas de doce da família Crochemore, na Vila Nova, bem como os pomares e vinhedos de famílias que já cooperavam nos projetos museográficos, como os Camelatto, na Vila Maciel, os quais inclusive produzem bebidas, como vinhos e licores, e costumam receber turistas, tendo como atrativo também uma certa musealização de seu espaço de comercialização. Isto tudo nos facilitou o acesso aos portadores dos conhecimentos tradicionais e das memórias relativas à produção doceira. Assim, o caminho já estava iniciado (e em se tratando da colônia, são caminhos nos quais podemos facilmente nos perder...).
Diferentemente, eu não tinha experiências prévias na área a oeste da BR-392, limitada entre esta estrada e a BR-293, que liga Pelotas a Bagé. A entrevista inicial do projeto, feita ainda em 2005 com o senhor Nelson Crochemore, indicava, entretanto, que é nesta região que se enraizava a tradição dos doces cristalizados e doces secados ao sol, como as passas de pêssego e marmelada branca. A fala dele dava uma ideia de distância, que para mim, que ainda não conhecia aqueles lados, soava como lugares bastante remotos. Trata-se de áreas pertencentes ao município de Pelotas, situadas no distrito da Cascata, com alguns produtores na localidade da Micaela, e ao município de Morro Redondo, principalmente na Colônia Santo Amor, na divisa entre as duas cidades, e no Açoita Cavalo, já quase no Capão do Leão.
De fato, conseguimos deslindar as rotas que levavam aos produtores tradicionais, pelos meandros da colônia, graças à ajuda do professor Leonardo Recuero. Assim, “descobrimos” sedes de fábricas de doce de conserva de médio e grande porte, hoje desativadas, que outrora empregaram grande quantidade de pessoas, ajudando a fixar a população rural na região. Descobrimos pequenos e médios produtores, todos atuando em escala familiar, que, de modo mais ou menos formal, são responsáveis hoje (ou eram na década passada) pela preservação de antigas tradições doceiras. Regiões antes desconhecidas para nós, agora tornavam-se familiares.
Encontramos nestes produtores pessoas que se mostraram interessadas em colaborar com o INRC, pois ao seu modo tinham um entendimento de que a divulgação de seus doces ajudaria a preservar a sustentabilidade econômica de sua atividade, herdada dos antepassados. Alguns um pouco mais sestrosos, em razão de que alguma instância de informalidade é preciso ser preservada, para não abandonar de todo o caráter tradicional e artesanal. Descobrimos nesta região um rico patrimônio imaterial mais esquecido, tendo em vista que os tipos de doces aí produzidos já desfrutaram no passado de uma popularidade maior do que hoje. É comum ouvirmos reclamações com relação à FENADOCE, que no começo relegou esses produtores a um segundo plano, assim contribuindo para não valorizar suas tradições, trazendo-lhes prejuízos comerciais.
Acredito que aquela “virada de mesa”, que mencionei anteriormente, quando conseguimos incluir a doçaria colonial no INRC, contribuiu para um cenário atual, quando percebemos, nas últimas edições da FENADOCE, uma intenção de ser mais inclusiva com relação a esses produtores. Com eles aprendemos, também, que alguns doces da modalidade dos desidratados, que se secavam ao ar livre em varais, não eram passíveis de industrialização, diferentemente dos doces em conserva ou dos doces em pasta. Este é o caso da passa de pêssego, que só pode ser produzida de modo artesanal, com nível menor de maquinificação (relatam tentativas mal sucedidas, de algumas fábricas!). Acredito que este é um dos fatores que contribuiu para o alijamento econômico destes doces, fazendo caírem em certo esquecimento e invisibilidade, mas de outro lado reforçou a pequenos produtores familiares a missão de conservação do precioso – e saboroso – saber-fazer.
Considerando o exemplo do INRC sobre as Tradições Doceiras como ponto de partida para uma reflexão, como você vê os resultados dos vinte anos de publicação do Decreto nº 3551 ocorridos no ano de 2020?
Penso que trouxe resultados variados, com alcances variados, conforme o bem e a região. O caso das Paneleiras de Goiabeiras, em Vitória, é um dos exemplos clássicos, tendo em vista ter sido um dos primeiros bens patrimonializados. Não resta dúvida que trouxe impacto positivo, chamando atenção ao produto, gerando demanda por seu consumo, e dando viabilidade de emprego e renda. No caso do Empadão de Goiás, também um dos primeiros bens imateriais patrimonializados, tendo em vista que a cidade histórica já possuía atratividade turística, e já tendo recebido grandes investimentos na recuperação do seu casario, o reconhecimento como patrimônio imaterial ajudou a conservar a receita tradicional, tendo em vista que o grande movimento turístico poderia levar a uma perda de qualidade, a uma produção mais apressada.
No caso de Pelotas e região, o que observamos nos dois anos de impacto do reconhecimento da cultura doceira como patrimônio cultural imaterial da nação brasileira, entre 2017 e 2019 (desconsiderando nesta análise o período da pandemia) foram efeitos positivos, que estavam engrenando. É possível que a epidemia tenha freado os resultados destes impulsos iniciais, e coloca em dúvida se deu tempo para esses resultados se consolidarem. Mas posso mencionar aqui que, no município de Morro Redondo, algumas famílias que na transição geracional haviam abandonado a produção doceira, após a declaração do IPHAN retomaram e buscaram formalizar sua atividade. No caso de Pelotas, o Museu do Doce serve de excelente termômetro. A partir do momento em que este museu se dinamizou e repensou sua proposta de atuação, no ano de 2019, a cada mês se percebeu um afluxo maior de visitantes, tanto da cidade como vindos de fora, muitos desses relatando que o interesse pela visita à cidade se aguçou quando souberam do reconhecimento do doce de Pelotas como patrimônio cultural.
Penso que a política brasileira estabelecida pelo Decreto nº 3551 de 2020 é exemplo de uma iniciativa bem sucedida, em que o Brasil inclusive foi vanguarda em termos internacionais. Penso porém ser preciso uma agenda interministerial com relação ao patrimônio imaterial, posto que, como constatamos, as diretrizes vindas de outras áreas, como setor de regulações sanitárias, comerciais e industriais, em grande parte dos casos tem consequências avassaladoras sobre a preservação do saber-fazer tradicional, prejudicando o potencial turístico e de geração de rendas para camadas populares, além de desagregar o valor simbólico destas tradições para a identidade e memória das nossas populações.
Considerando o exemplo das Tradições Doceiras de Pelotas quais você considera que foram os resultados a serem destacados que foram obtidos com a realização do INRC específico para o tema?
Podemos destacar vários aspectos. Primeiro, eu referiria o campo do conhecimento. A sistematização de um saber acadêmico, em linguagem compartilhada com a sociedade, de um conhecimento abrangente e sistemático, de base interdisciplinar, sobre a cultura doceira, proporcionando uma densidade histórica e antropológica a todo um conjunto de narrativas e experiências que eram vivenciadas e compartilhadas na particularidade de grupos, família e localidades, que passaram assim agora a serem pensadas como um amplo conjunto de bens culturais. A geração de um saber acadêmico, baseado em evidências, articulando na base saberes informais, relatos e memórias, técnicas e objetos, lugares e formas tradicionais de saber-fazer, é um marco, que alça a um outro patamar, aquilo que estava no plano de percepções de um ou outro, histórias ou estórias recebidas dos antepassados, com frequência colocadas em cheque quanto à sua autenticidade. Este conhecimento acadêmico foi apropriado por diferentes segmentos da sociedade, digerido e traduzido para novas linguagens, seja no âmbito político, na esfera da imprensa, no discurso turístico, ou nas formas de auto-representação da sociedade local, fundamentalmente de setores envolvidos na produção doceira.
Isto nos leva a um segundo aspecto: a autoestima, mais diretamente das pessoas direta ou indiretamente engajadas na rede de produção doceira, e indiretamente, no conjunto da população, de Pelotas e cidades vizinhas, que passam a dispor de um atestado que valide um sentimento de orgulho regional com relação a ser portadora de uma tradição com reconhecimento oficial nacional. Isto tem a ver com identidade e com memória. Joga um papel na psicologia social da região, com frequência assolada por um sentimento de alijamento dos núcleos mais dinâmicos de construção de futuro. Mas este é também um fator com impacto sócio-econômico, pois pode estimular a que, mais e mais, novas gerações que precisam fazer suas escolhas profissionais possam se envolver com atividades com viabilidade financeira que estejam ligadas às heranças culturais doceiras, dinamicamente preservadas e recriadas ao mesmo tempo.
Um terceiro aspecto que eu ressaltaria é a contribuição do INRC e Declaração do Doce de Pelotas como patrimônio cultural imaterial brasileiro para a salvaguarda das muitas formas de saber-fazer associadas às tradições doceiras e seus variados bens culturais. Falo aqui das formas de salvaguarda patrimonial, entendendo que se trata de um patrimônio dinâmico, que salvaguardar, estratégia própria à preservação do patrimônio imaterial, é bem diferente do que tombar, estratégia compatível ao patrimônio material. A doçaria pelotense sempre foi caracterizada por essa dinâmica de abertura ao tempo, combinando saberes herdados, criatividade, condicionantes e oferta de matéria-prima. Doces novos, inventados e apresentados nas edições da FENADOCE, traduzem ao mesmo tempo um senso de tradição e de espírito do tempo e do lugar. Assim criou-se o doce Monserrat Caballé, quando da visita da cantora lírica espanhola que havia se apresentado no Laranjal em 1998.
Assim, um doce alienígena às tradições doceiras locais, o “bombom de morango”, torna-se rapidamente o doce mais requisitado do público nas FENADOCES e, para as novas gerações, o mais característico da doçaria pelotense. Adaptado ao gosto atual, carrega no chocolate, que não é um ingrediente da doçaria pelotense, soube por outro lado dar a conhecer a maravilhosa qualidade dos morangos locais, algo relativamente novo. O que pensar disto, como pesquisador que se defrontou com o caráter genuíno das tradições doceiras: de modo ranzinza, negando a validade das preferências atuais? Ou pensando, sim, que o novo cabe dentro do sentido de uma cidade doceira. Passadas algumas décadas, novas pesquisas falarão do “bombom de morango” – que na verdade, exagerando um pouco, encontra-se à venda em qualquer shopping center do país – como patrimônio cultural, pois, na “cidade doceira”, assim agora reconhecida, o antigo, que se quer salvaguardar, precisa do novo, para lhe garantir um sentido de pertença ao tempo, sem o que qualquer salvaguarda é nula.
Um quarto aspecto a ser ressaltado é a própria criação do Museu do Doce, que é uma das consequências diretamente resultante do INRC. E gosto de falar disto hoje, Dia Internacional do Museus. Lembro-me como se fosse ontem da reunião na sede da 12ª Superintendência do IPHAN, em Porto Alegre (em 2009 ou 2010), com a superintendente regional, Ana Meira, com a técnica responsável, a historiadora Beatriz Munis Freire, com o Reitor da UFPel, Prof. César Borges, e com a equipe do INRC, representada pela profa. Flávia Rieth e por mim.
Nesta reunião, o IPHAN e UFPel, corresponsáveis pela destinação e gestão da Casa 8 (Residência Conselheiro Francisco Antunes Maciel), estabeleceram os termos de uso do prédio, em que a universidade assumiu seu compromisso de instalar no prédio o Museu do Doce e um espaço para o Museu Arqueológico. A solução acordada estava diretamente relacionada com o fato da realização do INRC, e com a leitura que havia no IPHAN de que Pelotas tinha a vocação para receber esse museu, como fator cultural distintivo de suas singularidades históricas. Na sequência, criou-se na universidade a comissão para criação do museu, responsável pela sua instalação. O prédio acabou se destinando no conjunto ao Museu do Doce, o qual, no entanto, demorou alguns anos para decolar. Infelizmente, nos anos iniciais houve certa dificuldade em encontrar um rumo mais adequado, o que inclusive acabou gerando – isto é minha opinião, percepção pessoal – uma insatisfação por parte do IPHAN, cujo custo foi não se levarem adiante possibilidades de financiamento e parcerias que estavam colocadas no horizonte de possibilidades.
Você acredita que o status de patrimônio pode implicar em alterações no fazer doceiro?
Sim, tanto no sentido de haver uma preocupação maior em preservar formas tradicionais de produzir os doces, como também em passar a ser mais crítico com a relação ao abandono de antigas receitas, tão somente porque o gosto atual, ou as imposições do mercado assim determinam. A resistência dos doces secos ao sol sobre varais, ao longo de décadas de invisibilidade e esquecimento, nos quintais de distantes propriedades espalhadas em cantos pouco conhecidos da Serra dos Tapes, conta agora com uma grande parceria, a Declaração do IPHAN, que cria novas possibilidades para esses doces, possibilidades de ser visto, nomeado, valorizado e mais vendido. Existe uma outra possibilidade: se o status de patrimônio, no pós-pandemia, for capaz de impulsionar uma onda turística forte, sabendo-se da tendência de um turismo mais focado em cidades menores e em áreas rurais, será um grande desafio manter a qualidade e o padrão, e ao mesmo tempo propor e assimilar inovações,
Quais as possibilidades de trabalho conjunto com os atores sociais envolvidos com a tradição no pós-registro?
As atividades pós-registro, do ponto de vista oficial, estão incluídas no que se chama a salvaguarda. Para tal, os municípios envolvidos devem estruturar comissões, com participação de múltiplos autores, mas sempre garantindo o protagonismo a representações do setor doceiro. É importante, necessário, haver uma construção conjunta de metas, em termos de salvaguarda e de potencialização dos impactos (econômico, cultural, educativo, turístico, entre outros), bem como um acompanhamento, com abertura a repensar o caminho. Penso que até o momento o município de Morro Redondo tomou dianteira, com relação a Pelotas e outras cidades, com um notável envolvimento da comunidade e instituições locais. Pude assistir uma graciosa apresentação de um grupo de dança infantil, cujo estória representada se relacionava às tradições em torno do tacho de cobre. Uma iniciativa destas exemplifica as possibilidades de desenvolvimento de atividades educativas e artístico-culturais, relacionadas à cultura doceira e seus enredos.
Existem aspectos importantes do trabalho de campo, cuja leitura do dossiê, produto final do processo, não tornam exatamente possível o leitor em geral ter acesso ou vivenciar? Quais foram as possíveis dificuldades para a realização do inventário a partir da tua experiência na equipe de trabalho?
O dossiê completo é um instrumento técnico, um pormenorizado relatório científico, em que por vezes algumas informações são repetidas ou preenchidas de modo formular. Digo isto, para esclarecer que a leitura do todo do dossiê pode ser muito árdua. Há uma versão resumida, como foi apresentado na câmara técnica em que a declaração foi aprovada, cuja leitura pode ser mais digerível. Os integrantes da equipe já publicaram diversos artigos que podem ajudar aqueles interessados a conhecerem aspectos da multifacetada cultura doceira de Pelotas. Exatamente por ser um texto técnico, nem sempre se consegue – nem se deve – traduzir aspectos que eu chamaria de mágicos, os quais encontram em uma linguagem literária um meio de expressão mais adequado. O fantástico das cores, dos odores, das emoções que afloram durante os relatos, as sombras e marcas de uso dos objetos, são aspectos que não se dão facilmente a perceber na leitura do dossiê. E fazem parte do processo cognitivo de construção do INRC, pois é um processo de pesquisa prenhe de emoção, vivenciada pelo pesquisador e pelos portadores da tradição doceira. O brilho no olho, o embargado da voz, a mão às vezes já trêmula, o esforço até mesmo físico para conseguir participar das nossas entrevistas e visitas as instalações. Nada disso aparece. Acho até que o principal, que não aparece, é a esperança que muitos depositaram no INRC, apesar de ao mesmo tempo sempre carregarem a desconfiança de que seria mais uma iniciativa, como tantas outras, que não alcançaria seus objetivos. Muitos talvez tenham ficado com essa impressão, pelo fato de ter havido uma demora excessiva entre a entrega do dossiê e a declaração oficial.
Fábio Vergara Cerqueira: Professor Titular do Departamento de História da Universidade Federal de Pelotas. Bolsista Produtividade CNPq PQ1d em Arqueologia. Pesquisador Visitante na Universidade de Heidelberg - Instituto de Arqueologia Clássica. Pesquisador da Fundação Humboldt/Alemanha - modalidade Pesquisador Experiente - Arqueologia Clássica (desde 2014). Graduou-se no curso de Licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1989) e concluiu doutorado em Antropologia Social, com concentração em Arqueologia Clássica, pela Universidade de São Paulo (2001). Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História da UFPel (2015-2017). Leciona nos cursos de História Licenciatura e Bacharelado, Antropologia/Arqueologia Bacharelado. Entre 2006 e 2009, professor do Mestrado em Ciências Sociais. Desde 2007, professor permanente dos Cursos de Doutorado e Mestrado em Memória Social e Patrimônio Cultural/UFPel, e, desde 2009, dos Cursos de Mestrado e Doutorado em História/UFPel. Nesta universidade, foi diretor do Instituto de Ciências Humanas por dois mandatos (2002-2010), coordenador do Curso de História (2000-2002), idealizador e coordenador do Laboratório de Antropologia e Arqueologia (2001-2012), do Museu Etnográfico da Colônia Maciel (desde 2006), do Museu da Colônia Francesa (desde 2015), do Laboratório de Estudos da Cerâmica Antiga (desde 2011) e do Circuito de Museus Étnicos (desde 2008). Foi Presidente (2001-2003) e Vice-Presidente (2004-2005) da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, tendo sido Presidente do V Congresso da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC), realizado em 2003. Foi coordenador nacional do GT de História Antiga da Associação Nacional de História (ANPUH) entre 2007 e 2008. Editor adjunto das revistas Cadernos do Lepaarq (UFPel) e Interfaces Brasil - Canadá. Entre outros, Integrou ou integra os conselhos editoriais dos seguintes periódicos: Dimensões. Revista de História (UFES); Metis (UCS); Cadernos do LEPAARQ. Textos de Antropologia, Arqueologia e Patrimônio (UFPEL); Justiça & História (Tribunal de Justiça do RS); Memória em Rede (UFPel); Patrimônio e Memória (UNESP); Plêthos (UFF); Romanitas (UFES) e Classica. Revista da SBEC. Experiência na área de História, ênfase em Arqueologia Histórica e Arqueologia Clássica, atuando principalmente nos seguintes temas: música, arqueologia, antiguidade clássica, história antiga e iconografia. Dedica-se ainda às áreas de Memória Social e Patrimônio Cultural, bem como à gestão museológica. Pesquisou junto a instituições estrangeiras, tais como Centre Jean Bérard / École française de Rome - Nápoles, École française d'Athènes e Instituto de Arqueologia Clássica da Universidade de Heidelberg. Membro da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos - SBEC, da Associação de Arqueologia Brasileira - SAB, da Associação Nacional de História - ANPUH, da MOISA International Society for the Study of Greek and Roman Music & it's Cultural Heritage e do International Council for Traditional Music / ICTM - Iconography of Performing Arts Study Group. Membro da diretoria da MOISA Society 2018-2020. Atualmente realiza Pós-Doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada - PPGHC/UFRJ.