ENTREVISTA COM MARIA LETÍCIA MAZZUCCHI FERREIRA

Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) das tradições doceiras de Pelotas e região.

Nessa entrevista a Professora Dra. Maria Letícia Mazzucchi Ferreira relata sua experiência de participação na realização do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) das tradições doceiras de Pelotas e região. Ferreira fala sobre como se deu sua inserção na equipe e do modo como sua trajetória enquanto pesquisadora relacionou-se aos rumos tomados por sua atuação no INRC. Junto a esse relato são também apresentadas reflexões a respeito do processo de patrimonialização de um bem cultural imaterial a partir de suas dimensões institucionais, históricas e sociais. A leitura da entrevista trará elementos para pensarmos aquilo que configura as tradições doceiras da Pelotas e da antiga Pelotas uma expressão com singularidades tais que garantiram sua inscrição no Livro de Registro dos Saberes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

        Por Roberto Heiden

 

Como se deu a sua vinculação na equipe de pesquisa para a elaboração do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) sobre as Tradições Doceiras da Região de Pelotas e Antiga Pelotas (Arroio do Padre, Capão do Leão, Morro Redondo, Turuçu)?

Minha integração à equipe deu-se pelo fato de já estar trabalhando com temas relacionados ao patrimônio imaterial, memória e narrativas orais, fosse em pesquisas que realizava ou mesmo na docência.

Como foi a sua experiência de participação nas atividades de elaboração do referido inventário? Você concentrou suas atividades em algum aspecto em especial das tradições? Em caso afirmativo, que aspecto foi esse e o que você consideraria importante destacar?

Já quando da formação da equipe de pesquisa, em razão de trabalhos anteriores inclusive relacionados à velhice, optei por direcionar minha atuação junto às doceiras urbanas e com a característica de terem uma longa trajetória na atividade. Considerando as duas tradições - doces finos ou de bandeja e doces coloniais ou de frutas - coube a mim investigar as doceiras antigas que atuavam na cidade e que foram fundamentais para a construção de uma identificação de Pelotas como cidade doceira. É importante ressaltar que muitas das doceiras que pesquisei faziam parte do que a metodologia considerava “memória”, visto que haviam atuado num passado já longínquo e, para recuperar suas trajetórias, utilizamos o que se denomina de fontes indiretas, ou seja, parentes próximos, tais como filhas, netas, como informantes.

O INRC como metodologia possibilitou uma abordagem mais ampla do fenômeno cultural? Como foi inventariar vários bens culturais no mesmo INRC? Quais não foi possível inserir na descrição das tuas fichas?

O fato de inventariar vários bens culturais, e não apenas um como ocorre com a maior parte dos INRC, foi realmente um desafio. Entretanto, o INRC Tradições doceiras de Pelotas e Antiga Pelotas não foi o único a ter esse caráter de múltiplos universos. Como exemplo temos a linguagem dos sinos de Minas Gerais, um inventário que abarcou várias cidades de uma determinada região do estado, nas quais a tradição da linguagem dos sinos e dos ofícios relacionados a isso, eram ainda considerados como memória viva e circulavam no processo de transmissão.

Voltando ao caso das tradições doceiras é importante observar que o inventário não se ateve exatamente ao doce em si mas às formas de fazer, os saberes que o envolvem, os processos de aprendizado e transmissão, as circularidades culturais das quais faz parte, os sentidos atribuídos a eles. Entretanto, foram selecionados alguns doces, tanto no meio rural quanto urbano, que apareciam como recorrentes numa escala de tempo, ou seja, eram doces preparados já nos finais do século XIX e que se mantinham, apesar de algumas alterações, como referências de doces tradicionais.

Em relação ao universo pesquisado, como se deu esse contato entre pesquisadores e atores sociais?

O INRC como metodologia, prevê o estabelecimento de um protocolo de pesquisa que são as etapas. Na etapa preliminar é formada a equipe, delimitado os universos de investigação, estabelecidos os instrumentos da pesquisa propriamente dita, sejam os instrumentos de abordagem como questionários, ou mesmo aqueles de caráter mais técnico como o registro dos depoimentos, os documentos formais de anuência, etc. É nessa etapa que serão definidas as redes de informantes, o que se obtém através de contatos prévios com os chamados “informantes-chave”. Também é na fase preliminar que é realizado o levantamento de todo material bibliográfico, iconográfico, fílmico, referente ao tema central da pesquisa.

A segunda etapa é do trabalho de campo. É nessa fase que os contatos com os informantes são estabelecidos, as entrevistas são realizadas e a rede é ampliada pelas indicações de cada entrevistado. É a etapa mais longa e mais importante do INRC pois permite a incursão do pesquisador no interior de seu objeto que é a tradição, a memória viva e sua permanência. No caso em questão, tal incursão se deu de forma direta pois as doceiras que pesquisei atuavam no espaço doméstico, ou seja, o fazer doceiro era indissociável do ambiente da casa, incluindo neste o círculo

familiar. O contato com as doceiras mais antigas, ainda em atuação, levou a que compartilhássemos espaços como as cozinhas, o preparo dos doces, mas também o ambiente no qual isso ocorria, as interações com membros da família, as degustações dos doces preparados, a observação de elementos da cultura material associados ao fazer doceiro, fotografias, etc.

Já a terceira etapa consiste na Documentação, ou seja, é quando o pesquisador busca inserir os dados obtidos no trabalho de campo nas fichas que compõem o inventário. Também esta é uma etapa fundamental pois é o momento da síntese propriamente dita, da construção discursiva do que denominamos tradição doceira, com argumentos consistentes para justificá-la como patrimônio imaterial.

Considerando o exemplo do INRC sobre a Tradições Doceiras como ponto de partida para uma reflexão, como você vê os resultados dos vinte anos de publicação do Decreto nº 3551 ocorridos no ano de 2020?

O INRC é um instrumento fundamental para a identificação e documentação do patrimônio imaterial no Brasil. É importante destacar que fomos um dos Estados Nacionais pioneiros na instituição de um instrumento normativo e legal para identificar e proteger o PCI, antecipando em três anos a Convenção da UNESCO para Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, datada de 2003. O INRC tem como um dos princípios organizadores a noção de referências culturais, o que remete aos sentidos e significados que sujeitos, grupos, comunidades, atribuem a determinados elementos culturais. As referências culturais identificam e são igualmente fatores de coesão dentro de determinados contextos sociais, logo contradizem a lógica hierárquica e vertical que historicamente definia o patrimônio.

Em que pese a grande importância de tal instrumento, passados vinte anos algumas reflexões se tornam fundamentais e uma delas diz respeito ao fator de continuidade da tradição que ocorre pela transmissão, em suas diversas modalidades. Para que tal processo não sofra rupturas e descontinuidades, é prevista a salvaguarda como um análogo aos instrumentos de proteção do patrimônio material. A salvaguarda se constitui por diferentes mecanismos e dispositivos que atuem para a permanência de determinada tradição e é de competência do poder público, o mesmo que efetivou o registro de tal bem como patrimônio imaterial, fornecer os instrumentos e meios para garanti-la. Vemos que tal processo não se efetiva ainda de forma regular e sistemática pois, além de envolver atores sociais, ações educativas, formas orgânicas de transmissão, deve prever investimentos públicos, logo um orçamento voltado ao campo patrimonial, o que vemos acontecer cada vez menos.

Além disso, mas não menos importante, é fundamental entender que o ente público, quando se trata de um bem inventariado nacionalmente, é representado pelos órgãos de patrimônio, sendo o IPHAN o mais importante. O quadro atual não permite uma abordagem mais otimista, considerando os desgastes, ataques e esvaziamentos que vem sofrendo esta instituição octogenária.

Considerando o exemplo das Tradições Doceiras de Pelotas quais você considera que foram os resultados a serem destacados que foram obtidos com a realização do INRC específico para o tema?

Um dos resultados mais significativos para a tradição doceira e para a cidade de Pelotas foi o Museu do Doce. Esta instituição ocupa imóvel histórico, restaurado pelo Monumenta e com supervisão direta do IPHAN que o cedeu à UFPel para que

nele fosse criado o museu. Logo, tal criação foi colocada como uma das metas e produto do Inventário das Tradições Doceiras de Pelotas e Antiga Pelotas.

O Museu é, por definição, o local onde a salvaguarda pode ser exercida através de diferentes mecanismos e ações, sendo a expografia uma delas, mas não a única. O museu é ao mesmo tempo um vetor de educação informal, de atividades lúdicas, criativas, bem como um local de guarda de acervo, de documentação e de extroversão através da expografia.

Você acredita que o status de patrimônio pode implicar em alterações no fazer doceiro?

As alterações são parte inerente da cultura, uma vez que esta não é, nem deve ser, inerte. A patrimonialização implica claramente em uma outorga de valor, a conversão de um elemento cultural em bem cultural; a passagem da memória, que carrega de uma geração a outra tais elementos, para o patrimônio como chancela pública de tal memória. Esta é uma discussão que remonta aos primórdios da instituição do PCI, ou seja, os riscos que o patrimônio traz para a fluidez da memória, uma vez que com ele, além dos aspectos normativos, vem também os aspectos econômicos. Creio, entretanto, ser ainda muito prematuro para que se possa aferir os efeitos da patrimonialização na tradição doceira, e também essa avaliação é prevista pelo Plano Nacional de Patrimônio Imaterial, pois passados dez anos do registro, deve ocorrer um novo inventário, não tão complexo como o primeiro, mas que permita justamente averiguar o estado da arte de tal bem. É nesse momento, portanto, que se poderá, através da aplicação de instrumentos de pesquisa, fazer tal aferição.

Quais as possibilidades de trabalho conjunto com os atores sociais envolvidos com a tradição no pós-registro?

No que se refere ao INRC tradições doceiras, já foram realizados vários trabalhos conjuntos, entretanto é importante que sejam sistematizados como ações efetivas de salvaguarda. Uma das interações com os atores sociais do fazer doceiro é a continuidade do trabalho de pesquisa, contemplando um universo mais amplo do que foi inicialmente abordado. Também é importante ressaltar o papel que o Museu do Doce exerce nessa interface com a “comunidade de destino”, e nesse sentido alguns projetos, como o da cozinha experimental, tornam-se potentes instrumentos de interação e salvaguarda do patrimônio imaterial.

Existem aspectos importantes do trabalho de campo, cuja a leitura do dossiê, produto final do processo, não tornam exatamente possível o leitor em geral ter acesso ou vivenciar? Quais foram as possíveis dificuldades para a realização do inventário a partir da tua experiência na equipe de trabalho?

O dossiê do INRC Tradições doceiras de Pelotas e Antiga Pelotas é um trabalho de síntese no qual foram cruzados aspectos conceituais com os dados obtidos em campo. Nesse sentido, além de ser um trabalho que reflete um determinado momento, o tempo de sua feitura, é também, como todo trabalho descritivo e de construção intelectual, limitado ao que foi observado, interpretado e convertido em narrativa. Nesse sentido, é um texto que dá conta de determinados aspectos, nunca é totalizante.

O universo das doceiras, e aqui me refiro ao que tive a oportunidade de conhecer, se mostrou extremamente complexo e plural. Buscamos dar conta dessa heterogeneidade e complexidade através de um texto argumentativo que busco, à luz de conceitos e da sensibilidade dos pesquisadores, construir generalizações, ou seja, demonstrar que a tradição doceira atravessa os diferentes espaços sociais que constituem Pelotas e Antiga Pelotas, construindo sentidos de identidade.

Maria Letícia Mazzucchi Ferreira é Professora Titular da Universidade Federal de Pelotas - UFPEL. Docente permanente no Programa de Pós-Graduação (Mestrado/Doutorado) em Memória Social e Patrimônio Cultural da UFPEL. Foi membro da comissão de implantação do Curso de Bacharelado em Museologia, atuando como Coordenadora desse curso entre 2006-2008.Presidente da Comissão de implantação do Curso de Bacharelado em Conservação e Restauro de Bens Culturais Móveis. Foi pesquisadora do Inventário Nacional de Referências Culturais: Tradição doceira pelotense, promovido pelo IPHAN, Monumenta e UNESCO. Coordenou, entre 2009-2012, o projeto CAFP-CAPES "Instituições, legislação, territórios e comunidades: perspectivas sobre o patrimônio material e imaterial no Brasil e Argentina", envolvendo a UFPEL e a Universidade de Buenos Aires. Coordenou, pelo lado brasileiro, o projeto de cooperação com o Laboratoire d'Anthropologie et de Psychologie Cognitives et Sociales, da Universidade de Nice, França, participando de projeto de investigação internacional financiado pela ANR (Agence Nationale de la Recherche) coordenado pelo antropólogo Joel Candau. Pós-Doutorado na Universidade Paris IV, entre 2018-19 e no LAHIC-EHESS, entre 2009-2010, ambos na França. Atua como docente e pesquisadora na área de Patrimônio, principalmente nos seguintes temas: regimes memoriais, memórias traumáticas, museus de memória, patrimônios difíceis, patrimônio industrial.