O papel da mulher na gestão pública: uma discussão sobre os espaços de liderança

Bruna Colucci
Raissa M. Telles
Stefani S. Souza

Tema recorrente na sociedade mundial são as lutas feministas por liberdade, direitos e independência. Há séculos a resistência feminista contra o sexismo é desenvolvida e ganha cada vez mais visibilidade e repercussão. Quando se trata da liderança feminina, os desafios ainda são resultados de cenários de desigualdades e discriminações, provocando diferenças comportamentais em decorrência do gênero.

Diante disso, entende-se que ser mulher é em si um ato de resistência e a discriminação por elas sofrida, quando ocupam posições estratégicas, é fato presente no mercado de trabalho, tanto no setor público quanto no privado e, segundo pesquisa lançada pelo Instituto Ethos, em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, as causas de tais limitações possuem raízes históricas, sociais e psicológicas (INSTITUTO ETHOS, 2016). Nesse contexto, o presente ensaio tem por objetivo melhor compreender os desafios enfrentados na ocupação de posições de liderança por mulheres na administração pública brasileira, tendo por base barreiras para ascensão profissional, visíveis e institucionalizadas, descritas na literatura sobre o tema do papel da mulher na gestão pública.

A abordagem geral do trabalho faz referência a alguns estudos acadêmicos que remetem à barreiras que impedem ou atrapalham as mulheres de ocuparem mais cargos de liderança em funções no serviço público pois, historicamente, tais posições nas organizações sejam elas públicas ou privadas são ocupadas majoritariamente por homens. Este trabalho também aborda legislações que tratam sobre políticas de iniciativa em benefício das mulheres no setor público.

Essa reduzida representatividade feminina nos cargos de liderança deve-se essencialmente a fatores culturais e comportamentais, visto que a participação feminina na sociedade demorou muito para ser efetiva. No Brasil, somente em 1879, através do Decreto de Lei nº 7.247/1879, as mulheres conquistaram direito de acesso à universidade em meio a sociedades que ainda exalavam um forte machismo estrutural e até a década de 1970 havia barreiras visíveis e regras explícitas que definiam diferentes papéis sociais em razão do gênero (SARTI, 2004). Posteriormente, as barreiras começaram a mudar de forma, onde os obstáculos não excluíam totalmente as mulheres de todas as posições de trabalho, mas apenas de níveis mais altos, onde ainda que as mulheres quisessem chegar às posições de liderança, não lhes era permitido por motivos de discriminação (AZEVEDO, 2022).

Hoje, as mulheres são maioria nas universidades brasileiras e graças a presença, pressão, força e luta do movimento feminista outros direitos, mesmo que muito lentamente, foram sendo conquistados, como o direito ao voto e ao trabalho, contribuindo assim para a reversão das desigualdades de gênero no Brasil (AZEVEDO, 2022). Contudo, mesmo que, geralmente, elas possuam maior qualificação que os homens, isto não se reflete nos seus salários e nos cargos por elas ocupados (MILTERSTEINER et al, 2020).

Sabe-se que, hoje, as mulheres têm mais acesso aos cargos mais elevados das organizações comparado à década de 1970 e que é visível a sua capacidade em  apresentarem bons resultados na vida pública. Entretanto, ainda são minorias nas posições de chefia. Conforme o relatório de pesquisa publicado pelo IBGE em 2018, “Estatísticas de Gênero – indicadores sociais das mulheres no Brasil”, as mulheres são maioria no serviço público, representando 55% do funcionalismo (federal, estadual e municipal). No entanto, 60,9% dos cargos gerenciais, incluindo o setor público e o privado, eram ocupados por homens e, apenas, 39,1% pelas mulheres, em 2016.

No Brasil, esses estudos são muito raros e é ainda mais difícil tirar conclusões. Embora o ingresso no setor público seja mediante concurso público e cargos de livre nomeação e exoneração, os cargos de liderança são escolhidos por pessoas que possuem o poder de tomar decisões com base no seu próprio julgamento e critérios dentro da Administração Pública. Compreende-se que alguns obstáculos enfrentados pelas mulheres e que atrapalham a ascensão para cargos gerenciais, estão ligados à resistência à liderança feminina, questões de estilos de liderança, demandas familiares e subinvestimento em capital social.

Segundo Bellato et al (2022), nas organizações públicas estudos apontam que as mulheres que ocupam papel de liderança possuem um perfil bondoso, caridoso, humano e, geralmente, estão associadas a qualidades mais coletivas. Já os homens, estariam associados a qualidades que transmitem afirmação, assertividade e controle que costumam ser vinculadas à liderança (AZEVEDO, 2022). Contudo, estudiosos da teoria situacional de liderança defendem que o estilo de liderança a ser utilizado depende do contexto no qual o líder se encontra (HRYNIEWICZ; VIANNA, 2018) e, portanto, não de características de gênero. Talvez por isso as mulheres sejam tão testadas, até mesmo pela própria equipe, em uma tentativa de provar que elas não deveriam estar naquela posição de liderança, fazendo com que barreiras para o avanço feminino no mercado de trabalho global sejam erguidas, uma vez que decisões estão sendo baseadas nos estereótipos em que acreditam (SCHEIN, MUELLER, LITUCHY et al., 1996). Características do local, como valores, cultura organizacional e natureza da tarefa, podem ditar qual seria a forma mais apropriada de agir (EAGLY, 2007).

As regras internas de progressão também não costumam levar em conta diferenças como o tempo dedicado à maternidade. Assim, as desigualdades da sociedade se refletem na composição do funcionalismo. Por vezes, as próprias mulheres têm resistência em assumir cargos gerenciais devido ao fato de precisarem conciliar trabalho e família e, por este motivo, acabam por deixar pouco tempo para socializar com colegas e fomentar a sua rede profissional e ainda se veem em situações de cobranças e julgamentos com relação às características que geralmente são atribuídas à liderança. Outras, mesmo com tempo, por ainda se sentirem em minoria, sentem dificuldades em se beneficiar dessas redes profissionais.

As raízes históricas de séculos dominados pelo patriarcado ainda fazem com que grande parte das mulheres dediquem tempos superiores em atividades domésticas quando comparado aos homens (IBGE, 2022), diminuindo assim, o progresso em sua carreira. A sociedade, ainda influenciada pelo machismo estrutural, por vezes, repassa a ideia que somente os homens podem ter ambição profissional, sendo visto como qualidade para eles e algo irrelevante para elas. Enquanto esperam que os homens busquem cargos elevados para significar ter status e competência, das mulheres se espera comodismo e submissão.

Para boa parcela da sociedade, as mulheres continuam sendo as que interrompem suas carreiras, normalmente, motivadas por aspectos familiares. Muitas organizações dão preferência para homens solteiros para cargos de gestão pois, devido ao machismo enraizado, estes, e somente estes, poderiam desvincular questões pessoais da vida profissional.

Os setores em que as mulheres estão mais presentes e conseguem ascender são os tradicionalmente associados ao feminino, aqueles principalmente ligados ao cuidado, como educação e saúde. Já os espaços que a cultura associa ao masculino, como a economia e a defesa, continuam majoritariamente ocupados por homens (VIANA, 2023). Nesse sentido, ampliar a presença de mulheres em posições de liderança na burocracia diz respeito também à capacidade que o Estado tem de oferecer serviços adequados à população. Para tanto, existem incentivos em benefício à participação da mulher no serviço público promovidas pelo Estado.

Alguns dos principais incentivos à participação da mulher no serviço público são: a) Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça – que promove a igualdade de gênero e raça no ambiente de trabalho; b) a Lei nº 14.611 de 3 de julho de 2023, que estabelece a igualdade salarial entre homens e mulheres; c) a portaria nº 791 de 10 de outubro de 2019, que instituiu a Comissão Gestora de Política de Gênero do Tribunal Superior Eleitoral (TSE Mulheres, 2019), vinculada à Presidência; d) a Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006) que criou mecanismos para controlar a violência doméstica e familiar contra a mulher; e) o direito da mulher à licença-maternidade, introduzido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) (BRASIL, 1943) e, posteriormente, com o advento da Constituição Federal de 1988, foi ratificada como direito social, passando a ter duração de cento e vinte dias, nos termos do art. 7º, para as seguradas empregada (urbana e rural), trabalhadora avulsa e empregada doméstica (BRASIL, 1988) e, mais recentemente, a Lei nº 14.457/2022, em vigor desde setembro de 2022, que instituiu o Programa Emprega + Mulheres e trouxe importantes alterações à CLT (BRASIL, 2022), garantindo a licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário; e f) o Programa Mulheres Mil, instituído pela portaria nº 1.015, de 21 de julho de 2011, vinculada ao Ministério da Educação (MEC), que visa a oferecer formação profissional e tecnológica de mulheres em situação de vulnerabilidade social, entre outros.

Todos esses avanços, no entanto, não impedem que as funcionárias públicas, na prática, sofram da mesma situação que as trabalhadoras privadas no que diz respeito à diferença de gênero: continuam com remuneração inferior à dos homens e em cargos menos relevantes, embora ostentem grau superior de escolarização. O esforço delas pela estabilidade aponta que o desejo do público feminino vai além da consolidação de uma carreira, passa pelo sucesso pessoal e pela segurança da família.

Segundo a campanha Mulheres na Política, lançada em 2020 pelo Tribunal Superior Eleitoral e que faz parte das ações que integram as atividades da Comissão TSE Mulheres, instituída pela presidente do Tribunal em 11 de outubro, por meio da Portaria TSE nº 791:

Quando uma mulher tem voz ativa, ela incentiva outras a falarem também. Quando uma mulher lidera, ela incentiva outras a liderarem também. Quando uma mulher ocupa um cargo público, ela incentiva outras a ocuparem também, diz a mensagem das peças. (TSE, 2020).

A mudança depende de uma política mais ativa do governo e de questões culturais mais amplas e profundas do país. A situação tende a mudar, mas, por enquanto, há ainda uma parcela da sociedade, tanto no serviço público, quanto no setor privado, com dificuldade para chegar ao topo da pirâmide trabalhista.

Referências

AZEVEDO. M. V. de A. D. Labirinto da liderança: Um estudo sobre gestão feminina no setor público. Repositório Institucional da UFPB. João Pessoa – PB. TCC (graduação), 19f; 2022. Disponível em: <https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/123456789/23435>. Acesso em: 19 agosto 2023.

BELLATO. R. L., SCHNITZLER. E. L., SANTOS. N. Liderança feminina nas organizações públicas. Anais Do Congresso Internacional De Conhecimento E Inovação – Ciki, 1(1), 2022. Disponível em: <https://proceeding.ciki.ufsc.br/index.php/ciki/article/view/1316>. Acesso em: 19 agosto 2023.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

BRASIL. Decreto-lei nº 5.452, de 1 de maio de 1943. Aprova a consolidação das leis do trabalho (CLT), 1943.

BRASIL. Decreto nº 7.247, de 19 de abril de 1879. Reforma o ensino primário e secundário no município da Côrte e o superior em todo o Império. Rio de Janeiro, RJ: Ministério do Império, 1879.

BRASIL. Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006, (Lei Maria da Penha). Brasília, DF: Senado Federal, 2006.

BRASIL, Lei n° 14.457/2022, (Institui o Programa Emprega + Mulheres).  Brasília, DF: Senado Federal, 2022.

BRASIL. Lei nº. 14.611 de 3 de julho de 2023, (Lei da Igualdade Salarial entre homens e mulheres). Brasília, DF: Senado Federal, 2023.

BRASIL. Portaria n.º 1.015, de 21 de julho de 2011 – Institui o Programa Mulheres Mil. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2011.

 BRASIL. Portaria TSE nº 791 de 10 de outubro de 2019, (Institui a Comissão Gestora de Política de Gênero do Tribunal Superior Eleitoral (TSE Mulheres). Brasília, DF: Tribunal Superior Eleitoral, 2019.

CENSO DEMOGRÁFICO:  Estatísticas de Gênero – indicadores sociais das mulheres no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2018.

EAGLY, A.; CARLI, L. Women and the labyrinth of leadership. Harvard Business Review, v. 85, n. 9, p. 62-71, 2007.

HRYNIEWICZ, L. G. C.; VIANNA, M. A.. Mulheres em posição de liderança: obstáculos e expectativas de gênero em cargos gerenciais. Cadernos EBAPE.BR, v. 16, n. 3, p. 331–344, jul. 2018.

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2022.

INSTITUTO ETHOS. Perfil  social,  racial  e  de  gênero  das  500  maiores  empresas  do Brasil e suas ações afirmativas. Instituto Ethos e Banco Interamericano de Desenvolvimento. São Paulo, SP, 2016. Disponível em <https://www.ethos.org.br/wp-content/uploads/2016/05/Perfil_Social_Racial_Genero_500empresas.pdf>. Acesso em 02 set. 2023.

MILTERSTEINER, R. K; OLIVEIRA, F. B. de; HRYNIEWICS, L. G. C; SANT’ANNA, A. de S; MOURA, L. C.Liderança feminina: percepções, reflexões e desafios na administração pública. Cad. EBAPE.BR, v. 18, nº 2, Rio de Janeiro, Abr./Jun. 2020. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/cebape/a/tCzLBJyCbWjsr5bkQnnZ7bm/> Acesso em: 19 agosto 2023.

SARTI, C. A. O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando uma trajetória. Estudos Feministas, Florianópolis, 12(2): 264, p. 25-50, maio-agosto/2004. Disponível em> <https://www.scielo.br/j/ref/a/QVNKzsbHFngG9MbWCFFPPCv/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em 19 agosto 2023.

SCHEIN, V. Women in management: reflections and projections. Women in Management Review, v. 22, n. 1, p. 6-18, 2007.

VIANA, D. Mulheres enfrentam barreiras para ascensão no serviço público brasileiro. Revista Pesquisa FAPESP, São Paulo, SP, ed. 325, p. 73-76, março, 2023. Disponível em: <https://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2023/03/072-076_mulheres-publico_325.pdf>. Acesso em 02 set. 2023.

_____; Programa PRÓ-EQUIDADE DE GÊNERO E RAÇA. Rompendo fronteiras no mundo do trabalho – Brasília: SPM – Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2016. Disponível em: < https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/proequidade_para-site.pdf> Acesso em: 02 set. 2023.