Aborto: uma análise crítica do Código Penal Brasileiro sob a ótica dos direitos fundamentais

Amyra Yasmim Cabreira Pires
Giulia Garcia Machado
Nicole da Rocha Loi

O Código Penal brasileiro, promulgado em 1940, estabelece a criminalização do aborto, exceto nos casos em que a gestação representa risco à vida da mulher ou se resulta de estupro. Essa legislação, embora tenha sofrido algumas alterações ao longo dos anos, permanece essencialmente inalterada em suas bases, suscitando questionamentos sobre sua compatibilidade com a evolução dos valores sociais e o reconhecimento dos direitos fundamentais previstos na Carta Magna.

O problema central reside na aparente desconexão entre a norma legal e as demandas da sociedade contemporânea. Diante desse cenário, a pergunta de pesquisa direciona o olhar crítico para as lacunas e inadequações do Código Penal: Como esta legislação aborda as diversas nuances e circunstâncias que envolvem o aborto, considerando os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal e as transformações sociais desde sua promulgação?

O objetivo geral deste ensaio é analisar de forma abrangente a legislação referente ao aborto no Brasil, destacando suas limitações e implicações em um contexto contemporâneo. Para alcançar esse propósito, buscaremos objetivos específicos, tais como analisar contradições do Código Penal com a Constituição Federal e examinar possíveis discrepâncias em sua aplicação prática.

Esta pesquisa se baseia no paradigma qualitativo e utiliza uma metodologia de revisão bibliográfica para explorar as complexidades e desafios associados à abordagem do aborto pelo Código Penal brasileiro. Este trabalho visa contribuir para um diálogo informado e construtivo sobre possíveis reformas legais, promovendo uma reflexão crítica sobre um tema que vai além do domínio jurídico e está interligado com questões éticas, sociais e de saúde pública.

O Código Penal brasileiro, ao abordar o tema do aborto, baseia-se em valores morais e sociais datados da década de 1940. Essa abordagem reflete uma perspectiva antiquada que criminaliza o aborto de maneira geral, demonstrando uma visão moralista e restritiva que pode não mais ser adequada às demandas contemporâneas.

Além disso, o Código Penal brasileiro não oferece uma definição clara do conceito de aborto, utilizando apenas a expressão “provocar aborto”. Como resultado, cabe à jurisprudência e à doutrina esclarecer essa definição. Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci (2009, p. 269) define o aborto como a interrupção da gravidez antes do tempo normal, resultando na morte do feto ou embrião.

O artigo 124 do código penal estabelece a criminalização do aborto da seguinte forma: “Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque” (BRASIL, 1940). Há também disposto no art. 128, o aborto legal, isto é, hipóteses em que em que essa prática é permitida, os quais ocorrem quando há risco à vida da gestante ou quando a gravidez resulta de estupro, dessa forma (BRASIL, 1940):

Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal

Correlacionando o artigo estudado na disciplina de Direitos Humanos e Relações Étnico-Raciais com este ensaio, o fio condutor da análise é a ação de anencefalia discutida no STF em 2004, onde a liminar que consentia a interrupção da gestação em caso de anencefalia no feto foi cassada na sessão plenária da Suprema Corte, em 20 de outubro de 2004. Após quatro meses em vigência, a liminar foi derrubada por ter sido considerado necessário o julgamento prévio. A anencefalia foi um artifício para a imposição de uma nova argumentação. De acordo com Débora Diniz (2008, p 648):

O argumento jurídico e ético proposto na ação era de que, por ser a anencefalia uma má-formação incompatível com a sobrevida do feto fora do útero, a interrupção da gestação neste caso não deveria ser tipificada como crime, mas como um procedimento médico amparado em princípios constitucionais como o direito à saúde, à dignidade, à liberdade e a estar livre de tortura.

Embora uma determinada comunidade conservadora considere o aborto uma violação contra uma lei divina, esse não é um juízo moral defensável na esfera pública de um Estado plural e laico, que ampare a saúde pública. A conexão entre o Código Penal e os direitos reprodutivos torna-se evidente ao analisarmos a autonomia da mulher sobre seu corpo, segundo Conferência mundial sobre a Mulher (1995, p 179):

Os direitos humanos das mulheres incluem os seus direitos a ter controle sobre as questões relativas à sua sexualidade, inclusive sua saúde sexual e reprodutiva, e a decidir livremente a respeito dessas questões, livres de coerção, discriminação e violência.

Uma lei que torna o aborto mais difícil pode ser injusta porque não deixa a mulher decidir sobre sua saúde e sua família. Se o aborto é considerado crime, as mulheres podem ser obrigadas a fazer abortos de forma perigosa e escondida. Isso vai contra o Princípio da Dignidade Humana, que protege os direitos básicos das pessoas, como diz na nossa Constituição. A saúde pública também é importante aqui. Quando o aborto é proibido, as mulheres correm mais riscos de vida ao fazer abortos em segredo. Muitas vezes, essas mulheres não têm apoio financeiro, emocional ou outro tipo de ajuda. Nesse sentido, o Ministro Barroso, em seu voto no Habeas Corpus 124.306 (2008, p. 2), declarou o seguinte:

A tudo isso se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que essas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos a tipificação penal produz também discriminação social, já que prejudica, de forma desproporcional, as mulheres pobres, que não têm acesso a médicos e clínicas particulares, nem podem se valer do sistema público de saúde para realizar o procedimento abortivo. Por meio da criminalização, o Estado retira da mulher a possibilidade de submissão a um procedimento médico seguro.

A legalização do aborto em circunstâncias específicas respeita a autonomia da mulher, segundo CARVALHO (2016, p 139):

Sob o viés da autonomia individual, em sendo a mulher um indivíduo da sociedade e, portanto, merecedora de preservação da individualidade, cabe a ela, exclusivamente, a decisão de interrupção ou não do processo de gravidez. É decisão limitada ao âmbito do seu próprio corpo, sua expressão primeira de liberdade e individualidade.

Além disso, também contribui para a promoção de práticas seguras, reduzindo dificuldades médicas e custos associados ao tratamento de complicações decorrentes de procedimentos clandestinos.

Em resumo, a análise abrangente da legislação referente ao aborto no Brasil destaca desafios significativos, evidenciando a desconexão entre o Código Penal de 1940 e as demandas atuais da sociedade. A criminalização ampla do aborto reflete uma perspectiva moralista e restritiva, violando não apenas a autonomia da mulher sobre seu corpo, mas também entrando em conflito com princípios fundamentais, como a dignidade da pessoa humana consagrada na Constituição Federal de 1988.

A discussão sobre a legalização do aborto em circunstâncias específicas não apenas respeita a autonomia da mulher, mas também promove práticas seguras, reduzindo procedimentos clandestinos. Além disso, a análise crítica presente neste ensaio visa contribuir para um diálogo informado e construtivo, fomentando uma reflexão sobre um tema que vai além do campo jurídico, abordando questões éticas, sociais e de saúde pública.

Em última análise, a importância desta discussão reside na necessidade de uma legislação mais alinhada com as transformações sociais e os valores contemporâneos, garantindo não apenas os direitos fundamentais, mas também a saúde e a dignidade das mulheres.

Referências

BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal.

CARVALHO, C. de O. Autonomia da mulher à luz da criação humana. Rev.Ciênc. Juríd. Soc. UNIPAR. Umuarama. v. 19, n. 2, p. 129-141, jul./dez. 2016.

DINIZ, D., VÉLEZ, A. C. G. Aborto na Suprema Corte: o caso da anencefalia no Brasil. Revista Estudos Feministas, v. 16, n. 2, p. 647–652, maio 2008.

NUCCI, G. de S. Código Penal Comentado, 7° Edição. Ed Revista dos Tribunais, p. 629, 2009.

ONU MULHERES. Conferência Mundial sobre a Mulher (4.: 1995: Pequim). Declaração e Plataforma de Ação. Pequim: Nações Unidas, 1995. Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/declaracao_beijing.pdf

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Inteiro Teor nº 772396220 – 772396227. Habeas Corpus 124. 306. 2016. Disponível em https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stf/772396220/inteiro-teor-772396227. Acesso em 20 de março de 2024.