UMA DAMA MEDIEVAL ATRAVÉS DOS SÉCULOS – THE LADY OF SHALOTT

Flávia Amaral[1]

Se você gosta do gênero musical conhecido como “New Age” e aprecia artistas que gravaram a partir dessa referência, já deve ter se deparado com a obra de Loreena Mckenitt. A cantora, musicista e compositora canadense tem se dedicado desde a década de 1980 a esse estilo, gravando músicas que trazem temáticas místicas, mitológicas e históricas. Em alguns casos essa artista opta por musicar textos já conhecidos, como orações e poesias. Esse é o caso da faixa “The Lady of Shalott” do Álbum “The visit”, lançado em 1991 (figura 1) [2].  Mas quem já ouviu a música, talvez desconheça a informação de que esse poema musicado e cantado por Loreena foi composto no século XIX e tem ligação com importantes textos medievais como veremos a seguir.

Figura 1: Capa do CD “The visit”. Fonte: https://loreenamckennitt.com. Acesso em 20/01/24.

 

As histórias do chamado “ciclo arturiano” foram um grande sucesso na Idade Média. No entanto, as narrativas e poesias envolvendo as aventuras do Rei Artur e os cavaleiros e damas da Távola Redonda, não tiveram repercussão somente naqueles séculos. A fortuna cultural de personagens como Guinevere, Lancelot, Merlin, Morgana, Sir Gauvain, dentre outros, é comprovada pela sua presença em centenas de obras desde o chamado “Antigo Regime” até a contemporaneidade recente: lembremos que o Rei Artur continua sendo um dos personagens “medievais” mais presentes na cinematografia. Diante desse robusto quadro temporal, destaca-se o século XIX, momento em que a Idade Média foi retomada pelo movimento romântico europeu e ressignificada a partir de elementos do nacionalismo em expansão. A profusão de referências a personagens “arturianos” foi evidente e dentre eles destaca-se a figura da “  Senhora de Shalott”. Personagem presente em algumas obras medievais como a novela italiana “Donna di Scalotta” do século XIII e “A morte do Rei Artur” de 1485, a Dama tem, nesses textos, sua trajetória ligada ao famoso Sir Lancelot. No século XIX ela se torna a protagonista de poesias, óperas[3] e várias obras pictóricas, em especial na Grã-Bretanha.

O poeta Alfred Tennyson (1809-1892), grande expoente literário desse contexto, escreveu entre 1859-1885, a pedido da própria Rainha Vitória, a obra “Idylls of the King”, um conjunto de 12 poemas que tratam dos temas arturianos e da Távola Redonda. Esse escritor publicou o poema “The Lady of Shalott” em 1833, ao qual deu uma segunda versão em 1842[4]. Nessa obra, a Senhora de Shalott é uma Dama que vive em uma ilha, ficando apenas dentro de seu castelo e só poderia ver o mundo lá fora através de um espelho. Sua única e sistemática atividade era tecer um manto com as imagens que via nesse espelho, sabendo que se a qualquer momento olhasse através da janela, iria recair sobre ela uma maldição. Eis que um dia, ao ouvir Sir Lancelot cantarolando, a Dama abandona sua tarefa e olha para o cavaleiro: nesse momento o espelho se parte e a mulher sabe que a maldição a levará à morte. Aceitando o destino, ela deixa o castelo e se deita em um barco para aguardar o seu fim.

Os versos de Tennyson inspiraram ainda algumas das mais famosas pinturas do movimento pré-rafaelita, como é o caso da tela homônima (figura 2) de John William Waterhouse (1849-1917)[5] .O que poderia explicar o grande sucesso e repercussão dessa história? Como compreender os motivos que criaram tal identificação entre ela e o público europeu do século XIX? Vamos iniciar essa investigação nos debruçando sobre o texto do poema oitocentista.

Figura 2: The Lady of Shalott. John William Waterhouse, 1888. Tate Museum, Londres. https://onartandaesthetics.com/2016/01/28/the-lady-of-shalott/ Acesso em 24/01/24.

A estrutura poética foi elaborada em 19 estrofes divididas em quatro partes.[6] Os versos são octossílabos, obedecendo à seguinte ordem:

1

On either side the river lie A
Long fields of barley and of rye, A
That clothe the wold and meet the sky; A
And thro’ the field the road runs by A
To many-tower’d Camelot; B
And up and down the people go, C
Gazing where the lilies blow C
Round an island there below, C
The island of Shalott. B

2

Willows whiten, aspens quiver, D
Little breezes dusk and shiver D
Thro’ the wave that runs for ever D
By the island in the river D
Flowing down to Camelot. B
Four gray walls, and four gray towers, E
Overlook a space of flowers, E
And the silent isle imbowers E
The Lady of Shalott. B

 

Vamos chamar a atenção para as rimas B que foram feitas, em todas as 19 estrofes, com as palavras Camelot e Shalott. Assinalemos que as outras rimas se organizam em função desse binômio que indica a identidade espacial – ainda que simbólica – associada aos acontecimentos. Simbólica, porque a intenção do autor não é trazer coordenadas geográficas que tornem possível localizar cartesianamente a Ilha de Shalott, mas sim indicar o “mundo” no qual a história se desenrola, vale dizer, o “mundo arturiano”.

O poema traz ainda uma profusão de outros paralelismos que vão além da estrutura dos versos quando, por exemplo, opõe a dama ao cavaleiro em sua condição de confinamento x liberdade. Encontramos importantes pares e jogos de palavras que são feitos com os vocábulos olhar – sombra (sight – shadow), espelho – janela, além de temas ou “motivos literários” de grande peso simbólico na composição do ambiente idílico e mágico da Ilha de Shalott: as torres, o rio, o barco, a figura da “mulher que tece” etc. Não é nosso objetivo nos estender nessas interpretações que, inclusive já foram aprofundadas em vários estudos literários e psicológicos [7]. Vamos voltar à seguinte questão: o que poderia explicar o êxito do poema de Tenysson, que ao retomar um personagem secundário da literatura medieval, o confere uma notória vitalidade?

Renomados autores se preocuparam em explicar a verdadeira obsessão que o século XIX europeu teve pelo período medieval, por seus personagens históricos e literários. No livro Le goût du Moyen Âge, de 1996, o francês Christian Amalvi se propõe a desvendar uma “Idade Média” inventada pelo século XIX e tida como referência a partir de então. Da mesma forma, Umberto Eco, em um ensaio bastante conhecido[8], evidencia o século XIX como momento importante para compreender as formas de “sonhar a Idade Média”. Trata-se, antes de qualquer coisa, de buscar desvendar as razões associadas à idealização do período medieval enquanto uma era dourada do passado europeu. Nesse caso, um importante conceito da psicologia analítica[9], poderia contribuir na compreensão desse fenômeno.

Carl Jung (1875-1961) preocupou-se, muitas vezes em mostrar a importância de uma “psicologia coletiva” no curso dos acontecimentos históricos. Nesse ponto, assume grande importância o conceito de “inconsciente coletivo”. Para Jung, a psique humana é formada por aspectos conscientes e inconscientes. Essa descrição também é válida para quando se observa o comportamento dos grupos humanos, uma vez que, o inconsciente individual se apoiaria em um inconsciente que é compartilhado coletivamente. Seria, portanto possível verificar historicamente a importância do aspecto psicológico nas ações coletivas: “(…) assim como os conhecimentos psicológicos facilitam a compreensão de acontecimentos históricos, inversamente também fatos históricos podem lançar nova luz sobre conjunturas psicológicas individuais”. (JUNG, C. 2015, § 371)

Em um trecho de “A Vida simbólica”, Jung chamou a atenção para a importância do compartilhamento de símbolos na produção de sentido da vida humana. Além disso, o autor aponta, especificamente para o momento pós-revolução industrial europeu – séculos XVIII e XIX – como privilegiado para se observar o impacto psicológico da perda do que ele chamou de uma “vida simbólica”, processo que continuaria ao longo do século XX:

A pessoa humana precisa de vida simbólica. E precisa com urgência. Nós só vivemos coisas banais, comuns, racionais ou irracionais – que naturalmente também estão dentro do campo de interesse do racionalismo, caso contrário não poderíamos chamá-las irracionais. Mas não temos vida simbólica. Onde vivemos simbolicamente? Em parte alguma, exceto onde participamos no ritual da vida. Mas quem de muitos de nós participa do ritual da vida? Muito poucos. (…)       Por isso dizem que temos neuroses de ansiedade, medos noturnos, compulsões et antas coisas mais. A alma ficou solitária; ela está extra ecclesiam e num estado de não salvação. E as pessoas não sabem disso. Consideram seu estado patológico e os médicos confirmam esta suposição. (Idem, §625.)

Na mesma direção Marx observou, em uma famosa passagem do “Manifesto do Partido Comunista”, que um dos efeitos da expansão capitalista e da emergência da hegemonia burguesa foi o desmantelamento de tudo o que era tido como referência: “Tudo o que é sólido se desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado e o homem é obrigado por fim a encarar com serenidade suas condições reais de vida e suas relações com seus semelhantes.” MARX e ENGELS, 2017. p. 19.)

Se a vida simbólica é performada através do rito (com seus símbolos), sendo o “desempenho cultual de fatos psicológicos básicos”, (JUNG, 2015, § 617) nossa hipótese é a de que a perda dessas referências no século XIX pode ter levado a uma movimentação psíquica coletiva na busca de um alívio a esse desconforto, idealizando a Idade Média como “um antídoto contra a modernidade”, para usarmos a expressão de Umberto Eco. Esse antídoto foi elaborado a partir da invenção do medievo como um tempo/lugar de certezas e valores idealizados diante das angustias em relação às “condições reais de vida”, retomando Marx.

Esse contexto foi assim definido por Alfred Musset em La confession d’un enfant du siècle, em 1836:

Três elementos dividem então a vida que se oferece nesse momento aos jovens: atrás deles um passado destruído para sempre se agitando ainda em suas ruínas, com todos os fósseis dos séculos de absolutismo; diante deles a aurora de um imenso horizonte, os primeiros clarões do futuro; e entre esses dois mundos… alguma coisa comparável ao Oceano que separa o velho continente da jovem América, alguma coisa vaga e flutuante, um mar agitado e cheio de naufrágios, atravessado de tempos em tempos por uma vela branca distante ou por algum navio soprando um forte vapor; o século presente, em uma palavra, que separa o passado do futuro, que não é nenhum nem outro e que é os dois ao mesmo tempo e em que não se sabe, a cada passo que se dá, se anda-se sobre uma semente ou sobre uma sucata. (MUSSET, 1836. p. 7.)

Diante desse quadro, os temas relacionados à Idade Média foram difundidos aludindo a uma simbologia vasta e sendo ideologicamente identificada ao nacionalismo, em um processo de construção identitária que fazia frente às aflições de um mundo dessacralizado. Não estou propondo aqui uma psicologização leviana, mas a tentativa de encontrar em outras áreas do conhecimento reflexões que contribuam com o conhecimento histórico. Naquele momento, as revoluções liberais varriam certezas e criavam a necessidade de uma nova referência coletiva. Acreditamos que a bem sucedida recepção do poema de Lord Tenysson e da história da Senhora de Shalott pode ser explicada pela presença de elementos que, através dos símbolos, mobilizam temas importantes da psique humana, de repercussão no inconsciente coletivo. A retomada de personagens medievais na literatura contribuiu na tentativa de criação de uma nova “vida simbólica”. O contato com um mundo arturiano imaginado em uma estética atemporal, hierarquizada e mágica, em nossa opinião, foi experimentado como uma oportunidade de construção de sentidos.

Referências bibliográficas

AMALVI, Christian. Le goût du Moyen Âge. Paris: La Boutique de L’Histoire, 2002.

ARTAL Susana G. , “De Escalot a Shalott : la damisela en su trama”, Cuadernos LIRICO [En línea], 9 | 2013, Publicado el 01 septiembre 2013, consultado el 27 febrero 2024.

CHOUDHURY, Biswajit.  “Alfred tennyson’s “The lady of Shalott”: A stylistic analysis”. In: https://www.indianjournals.com.Volume : 8, Issue : 3.  2020. https://www.indianjournals.com/ijor.aspx?target=ijor:ijmss&volume=8&issue=3&article=008

DALBERG-ACTON, John Emerich Edward. [Epigrafe]. In : FUGELSO, Karl. Defining neomedievalism(s). Cambridge: D. S. Brewer, 2010. Studies in Medievalism, 19.

ECO, Umberto. “Dez modos de sonhar a Idade Média”.  Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 74-85.

GUNTER, Garland O. “Archetypal Patterns in “The Lady of Shalott””. In: Victorians Institute Journal (1974) 3. p. 85-94.

MUSSET, A. La confession d’un enfant du siècle. Paris: Charpentier, 1867. (Primeira publicação: 1836.)

JUNG, Carl Gustav. A vida simbólica. Petrópolis: Vozes, 2015.

_________________ Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2014.

LE LAN, Nadège. La demoiselle d’Escalot [1230-1978], morte d’amour, inter-dits, temps retrouvés. Paris: L’Harmattan, 2005.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 3. ed. São Paulo: Sundermann, 2017.

SAAD HOSSNE, Andrea. “Barcos à Deriva. ‘Lady of Shalott’ na Literatura e na Pintura”. In : Alea. Estudos Neolatinos, 4, 2002. p. 179-197.

SAVILLE, Julia. “The Lady of Shalott: a Lacanian romance”. In: Word & Image –  A Journal of Verbal/Visual Enquiry. 01 Jun 2012, p. 71-87.

SILVA, Marcelo de Souza.  “A Senhora de Shalott”. In: O Mundo das Nuvens (Blog), Porto Alegre.  Publicado em 02/02/2014. Disponível em: https://omundodasnuvens.wordpress.com/2014/02/02/historinhas-da-arte-a-senhora-de-shalott/. Acesso em: 10/07/2023.

SHANNON JR, Edgar F. “Poetry as Vision: Sight and Insight in “The Lady of Shalott”. In: Victorian Poetry. Vol. 19, No. 3, Autumn, 1981.p. 207-223 .

TRIPPI, Peter. J. W. Waterhouse. New York: Phaidon, 2002.

UTZ, Richard; SHIPPEY, Tom (ed.). Medievalism in the modern world: essays in honour of Leslie J. Workman. Turnhout: Brepols,1998.


[1] Doutora em História Social pela USP. Professora de História Medieval, UFVJM. flavia.amaral@ufvjm.edu.br  https://lattes.cnpq.br/7617600252068860

[2] Link para a música no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=GJHA8uzvXS0

[3]  Alguns exemplos dados por Nadège Le Lan (2005) : Lancelot du Lac, de Augusta Holmes ; Elaine, de Herman Bemberg;  Lancelot, de Victorin Joncières e Le chevalier de neige, de Boris Vian.

[4] Não teremos espaço para discutir em detalhes a relação entre os textos medievais e a poesia de Tennyson. Entretanto é importante salientar que esse autor acrescentou alguns elementos à história, mantendo o amor da dama por Lancelot e o destino trágico da mulher em consequência desse amor não correspondido. Em todos os textos, o corpo da dama chega a Camelot em um barco funerário.

[5] John William Waterhouse pintou mais dois quadros intitulados “The Lady of Shalott”, trazendo outras cenas do poema, nos anos de 1894 e 1915. Artistas como Walter Crane e John La Farge, em 1862 e Arthur Hughes, em 1873, também fizeram telas com o título “The lady of Shalott”.

[6] Nesse texto, utilizaremos a versão de 1842. A poesia completa pode ser acessada no link:  https://www.poetryfoundation.org/poems/45360/the-lady-of-shalott-1842. Acesso em 23/02/24.

[7] O. GUNTER, Garland. “Archetypal Patterns in “The Lady of Shalott”. Victorians Institute Journal (1974) 3, p. 85–94; SHANNON JR, Edgar F. “Poetry as Vision: Sight and Insight in “The Lady of Shalott”. In: Victorian Poetry. Vol. 19, N. 3, Autumn, 1981.p. 207-223 ; CHOUDHURY, Biswajit.  “Alfred tennyson’s “The lady of Shalott”: A stylistic analysis”. In: https://www.indianjournals.com.Volume : 8, Issue : 3.  2020. SAVILLE, Julia. “The Lady of Shalott’: a Lacanian romance”. In: Word & Image – A Journal of Verbal/Visual Enquiry. 01 Jun 2012, p. 71-87.

[8] “Dez modos de sonhar a Idade Média”. In: ECO, Umberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 74-85.

[9] Por vezes denominada “psicologia junguiana”, “profunda” ou “complexa” a psicologia analítica foi o ramo criado por Carl Gustave Jung, renomado psiquiatra suíço do início do século XX.

 


Publicado em 26 de Março de 2024.

Como citar: AMARAL, Flávia Aparecida. Uma dama medieval através dos séculos – The Lady Of Shalott. Blog do POIEMA. Pelotas: 26 mar. 2024. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/uma-dama-medieval-atraves-dos-seculos-the-lady-of-shalott. Acesso em: data em que você acessou o artigo.