Shiloh Carroll, the Public Medievalist[2]
Trad. por Luiz Guerra[3]
A ideia da Idade Média como uma cultura branca uniforme é provavelmente um dos equívocos mais arraigados sobre o período medieval. Isso é especialmente verdadeiro quando se trata de literatura de fantasia. A literatura de fantasia medievalista ocidental baseia-se fortemente na história europeia e nas tradições mitológicas. Quando as pessoas de cor[4] aparecem em textos clássicos de fantasia, elas são muitas vezes retratadas como um “Outro”. Eles são O Inimigo, ou pelo menos um grupo contra o qual se espera que o leitor compare a cultura dominante, branca.
Helen Young, estudiosa de interpretações de fantasia da Idade Média e autora de Race and Popular Fantasy Literature, oferece vários exemplos disso em nossa literatura de fantasia mais popular. Ela apontou que a fantasia é construída sobre uma base de estereótipos racistas no Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien, e Conan o Bárbaro, de Robert E. Howard. Embora nenhum deles seja tecnicamente medievalistas, pretendendo-se mais como histórias fantásticas pré-históricas do que fantasias medievais, eles ainda tiveram uma profunda influência na maneira como a fantasia medievalista aborda a raça. Por exemplo, em O Senhor dos Anéis, você não precisa ir além do tratamento de Tolkien de Orcs, Uruk-hai e Haradrim, todos eles maus, e os únicos descritos como tendo pele escura. Havia também uma divisão geográfica muito clara entre os elfos “brancos”, humanos, anões e hobbits e as terras sombrias e malignas dos Orcs (Mordor) e dos Haradrim (Harad), ao sul.
As Crônicas de Nárnia de C.S. Lewis também fazem isso. Os Calormenes de Lewis, uma cultura pseudo-Oriente Médio, são os vilões em The Horse and His Boy e The Last Battle.
Esses autores podem não ter pretendido que seu trabalho fosse racista. Se estivessem vivos, talvez ficassem horrorizados com essas alegações. Mas se esses autores pretenderam que seu trabalho fosse racista, não muito importa. As obras desses autores iniciaram uma tradição que moldou profundamente (embora, espera-se, não irrevogavelmente) a forma como a raça é tratada na fantasia até os dias atuais. Isso manteve o tratamento das raças em nossa literatura fantástica enraizado no pensamento das décadas de 1930, 40 e 50.
O retrato de Tolkien do mundo “pseudo-medieval” da Terra-Média influenciou fortemente a literatura de fantasia subsequente. Consequentemente, isso teve um impacto significativo no entendimento público mais amplo sobre a Idade Média Este é o começo do que Young, em seus estudos de fandoms de fantasia, descreveu como um “loop de feedback”. Neste ciclo de feedback, os leitores são expostos a uma versão medievalista da Idade Média através da fantasia. Eles então passam a acreditar que esta versão medievalista é um retrato “acurado” da Idade Média. Volta e meia, eventualmente, todas as versões de fantasia da Idade Média se parecem mais ou menos as mesmas.
E poucos livros de fantasia são mais um produto desse processo de auto-reforço do que a série As Crônicas de Gelo e Fogo de George R.R. Martin.
As Crônicas de Pessoas Brancas e Fogo
A série de fantasia épica de George R.R. Martin, As Crônicas de Gelo e Fogo, foi, mais do que qualquer outra obra de fantasia na história moderna, examinada por seu embasamento na história medieval real. O próprio Martin afirmou que seus romances são mais solidamente baseados na história do que qualquer outro trabalho de fantasia, até mesmo Tolkien. Ele disse a John Hodgeman em uma entrevista:
Eu meio que tive um problema com muitas das fantasias que estava lendo, porque me parecia que a Idade Média ou alguma versão da quase Idade Média era o cenário preferido da grande maioria dos romances de fantasia que eu estava lendo. Imitadores de Tolkien e outros fantasistas, mas eles estavam entendendo tudo errado[5].
Em uma entrevista da Publishers Weekly de 1996, Martin também disse:
Tolkien teve uma grande influência em mim, mas a outra influência em As Crônicas de Gelo e Fogo foi ficção histórica, o que eu não acho que seja realmente verdade para muitas outras fantasias que estão surgindo. Seu pano de fundo histórico, a textura de seus mundos, tende a ser bastante tênue[6].
Ele frequentemente critica os “imitadores de Tolkien” com sua “Idade Média de Feiras Renascentistas”, porque eles incluem tendências que ele vê como imprecisas: “camponeses atrevidos com princesas”, moralidade preta no branco, heróis indestrutíveis e uma crença inabalável em adesão a um código de cavalaria.
A autenticidade histórica é o poço ao qual ele retorna várias vezes para explicar questões em sua construção da cultura Westerosi. Quando os fãs expressaram decepção por não haver mais pessoas de cor nos livros (ou que essas pessoas de cor – como os dorneses – sejam tão mais brancas do que esperavam na série de TV), ele tenta explicar. Sua explicação: na Inglaterra medieval, França e Escócia “havia uma ocasional pessoa de cor, mas certamente não em grande número”, devido à dificuldade de viajar.
Mas Martin não é um historiador medievalista muito bom. Embora ele tenha um claro fascínio pela História, sua abordagem se concentra nos “pontos suculentos” – grandes movimentos históricos como a Guerra dos Cem Anos e a Guerra das Rosas – evitando “tomos acadêmicos sobre mudanças nos padrões de uso da terra”. Ele prontamente admite, em entrevistas, mudar ou “aumentar” a história para torná-la mais interessante e fantástica. Em outras entrevistas, especialmente quando questionado sobre violência, estupro, agressão sexual, casamento infantil e outros elementos perturbadores nos romances, ele recorre à suposta autenticidade histórica.
Ele tem uma tendência a generalizar, pegando a cultura de um lugar ou tempo específico na Idade Média e usando-a como um marcador para a totalidade da época. Quando ele fala sobre história, raramente é mais específico do que “a Idade Média” (ele nunca diz, por exemplo, “a era Tudor”), e faz afirmações amplas e gerais sobre o período, como “Era muito classista, dividindo as pessoas em três classes. E eles tinham ideias rígidas sobre os papéis das mulheres.” Portanto, embora seus argumentos de que as viagens e imigração eram raras na Idade Média possam ser verdadeiros em alguns lugares e épocas, eles não são verdade (como esta série de artigos mostrou repetidas vezes) em toda a Idade Média, seja temporal ou geograficamente.
Claro, Martin não está escrevendo história, ou mesmo ficção histórica. Ele não é obrigado a ser historicamente preciso. A fantasia é, por sua natureza, transformadora e especulativa. Ela nos permite criar mundos melhores, explorar a vida dos outros, despir as banalidades da vida cotidiana e mergulhar fundo em nossas esperanças, medos, sonhos, psiques, passados e futuros. O próprio Martin foi poético sobre o poder da fantasia em The Faces of Fantasy, de Patti Parret, dizendo:
Nós lemos fantasia para encontrar as cores novamente, eu acho. Degustar temperos fortes e ouvir o canto das sereias. Há algo antigo e verdadeiro na fantasia que fala com algo profundo dentro de nós, com a criança que sonhou que um dia caçaria as florestas da noite, festejaria sob as colinas ocas e encontraria um amor para durar para sempre em algum lugar ao sul de Oz e norte de Shangri-La.
Ao escrever As Crônicas de Gelo e Fogo, Martin não escolheu ficar preso à Guerra das Rosas; ele escolheu escrever um mundo de fantasia medievalista. E seu mundo não inclui muito espaço para a mistura de raças. Esse é o problema.
Isso foi decepcionante para seus fãs, muitos dos quais são pessoas de cor que gostariam de se ver refletidas em seu mundo. Além disso, esses fãs de fantasia não brancos adorariam ver mais bons personagens de cor em obras tão importantes e influentes quanto As Crônicas de Gelo e Fogo. Mas não os incluir é prerrogativa de Martin.
O problema realmente surge quando seus fãs acreditam (com seu encorajamento) que seu mundo neomedieval é autenticamente medieval e usam essa crença para moldar sua ideia de história e não o contrário.
O problema é o ciclo de feedback. Martin argumenta que uma Idade Média primariamente branca é historicamente precisa. Isso leva alguns de seus leitores a acreditar que Westeros é uma representação precisa da Idade Média (porque Martin diz que é). Assim, qualquer coisa que Martin escreve é uma descrição precisa da Idade Média. Isso é, é claro, totalmente baseado no que o leitor “sente” que foi a Idade Média, e muito desse “sentimento” vem da leitura de fantasia medievalista. É claro que muitos leitores se opõem a isso, defendendo uma visão mais nuançada da Idade Média, ou (como fiz aqui) que a fantasia medievalista não é ficção histórica. Mas ler criticamente e contra o texto pode ser muito difícil, e muitas vezes as vozes mais altas na sala são daqueles que se recusam a questionar suas noções preconcebidas.
Game of Brancos
Dessa forma, é claro, os problemas de Martin com raça são bem diferentes dos de Tolkien. Tolkien, como mencionei no início deste artigo, tem problemas com sua simples dicotomia de pele branca/pele escura, bem/mal. O trabalho de Martin sofre de questões um pouco mais sutis, ou seja, falta de representação, e quando ele escolhe incluir pessoas de cor, ele também inclui alguns estereótipos bastante feios sobre eles.
Esses estereótipos são mais evidentes no enredo de Daenerys Targaryen. Sua história começa com seu casamento com um Senhor dos Cavalos Dothraki – o que, sem “pelo menos três mortes”, dizem a ela, “seria um acontecimento sem graça”. Ela acaba se tornando uma “salvadora branca” [“white savior”] para os povos escravizados da Baía dos Escravos. Martin reagiu a uma pergunta sobre o retrato estereotipado dos Dothraki argumentando que ele não tem nenhum personagem com um ponto de vista Dothraki, indicando que os Dothraki podem ser muito diferentes por dentro. Mas ele também não expressa nenhuma intenção de adicionar um personagem do ponto de vista Dothraki, ou, presumivelmente, um Meereenense ou um Astapori.
Não antes do O Festim dos Corvos, o quarto livro da série, que temos uma pessoa de cor como um personagem de ponto de vista (Arianne Martell), embora ela ainda seja tecnicamente Westerosi, sendo de Dorne. Na verdade, apenas uma personagem de ponto de vista (Melisandre) é de fora de Westeros, e além de ter apenas um capítulo até agora, ela é branca.
Quando se trata de retratar o mundo de fantasia de Martin na série de TV da HBO, os problemas ficam ainda piores. Quando John Boyega (estrela de, entre outras coisas, os últimos filmes de Star Wars) mencionou o quão esmagadoramente branco é o elenco de Game of Thrones (junto com O Senhor dos Anéis e Star Wars), a seção de comentários no site de fãs Winter is Coming espiralou para comentários hostis e pontuações, muitas vezes abertamente, racistas.
Eles argumentavam que a Idade Média não era diversa. Eles argumentavam que tentar “forçar” a diversidade é “besteira politicamente correta” que favorece “mimizeiros”. E inclusive acusaram Boyega de ser racista simplesmente por trazer esse problema à tona. Em suas mentes, até mesmo discutir a desigualdade racial é racista. Pela sua lógica distorcida, a única maneira de não ser racista é fingir que não existem questões raciais.
Um problema semelhante ocorreu em outro site da comunidade de fãs de Game of Thrones: Watchers on the Wall. Quando Lupita Nyong’o mencionou – de passagem – que gostaria de fazer uma participação especial em Game of Thrones, um dos colaboradores escreveu um artigo reflexivo discutindo as questões de representação no programa. Essas atitudes levantaram a questão de quanto das expectativas dos espectadores para uma Westeros branca vêm de uma noção preconcebida de uma “Idade Média branca”, e quanto delas são resistência ao chamado “politicamente correto” – ou seja, quando pessoas de cor pedem um lugar à mesa. A seção de comentários, embora não tão horrível quanto no Winter is Coming, novamente se apoiou fortemente nos argumentos de “precisão histórica”, liberdade artística e “nem tudo precisa ser sobre raça” para descartar as preocupações do colaborador.
Fantasias Racistas vs. Histórias Inclusivas
Westeros, obviamente, é um mundo de fantasia. Assim como a Terra Média de Tolkien, pode-se argumentar que ela não deve nada a nenhum período histórico real na Terra. Mas é a insistência contínua, por parte de Martin e muitos fãs, de que Westeros é uma representação relativamente precisa da Idade Média que torna essa discussão necessária. Você não pode ter a cereja e o bolo.
Muitas pessoas tiram suas ideias de como era a Idade Média em obras de fantasia como As Crônicas de Gelo e Fogo. Portanto, é importante para os medievalistas apontarem que o tipo de precisão histórica pela qual Martin se esforça é, em última análise, impossível; obras como Game of Thrones são, fundamentalmente, fantasias. Isso é especialmente verdade agora, com a tentativa renovada dos supremacistas brancos de cooptar a Idade Média. O mito de uma “Idade Média só para brancos” que se perpetua através do gênero de fantasia em geral (e através de programas massivamente populares como Game of Thrones), é de fato apenas um mito. O passado é muito mais complicado e inclusivo do que muitos acreditam.
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[1] Texto originalmente publicado em: https://www.publicmedievalist.com/race-in-asoif/ (28/11/2017) e traduzido aqui por Luiz Guerra com autorização da autora Shiloh Carroll.
[2] PhD in English Literature, Tennessee State University.
[3] Mestrando Unimontes; Gehm.
[4] People of Colour, ou PoC, expressão do inglês utilizada por movimentos sociais para se referir a pessoas não-brancas como um todo. Todavia, no Brasil o termo PoC adquiriu um sentido completamente distinto e a expressão “pessoas de cor” costuma ser carregada de um tom pejorativo. Na falta de uma alternativa, mantivemos a expressão original, mas com essa ponderação.
[5] No original: I sort of had a problem with a lot of the fantasy I was reading, because it seemed to me that the middle ages or some version of the quasi middle ages was the preferred setting of a vast majority of the fantasy novels that I was reading by Tolkien imitators and other fantasists, yet they were getting it all wrong.
[6] No original: Tolkien had a great influence on me, but the other influence on A Song of Ice and Fire was historical fiction, which I don’t think is really true for a lot of the other fantasies that are coming out. Their historical background, the texture of their worlds, tends to be rather thin.
Créditos da imagem no blog: Marc Simonetti/Penguin Random House
Publicado em 13 de Junho de 2022.
Como citar: CARROLL, Shiloh. Raça em As Crônicas de Gelo e Fogo: Medievalismo posando como autenticidade. Tradução: Luiz Guerra. Blog do POIEMA. Pelotas: 13 jun. 2022. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/texto-raca-em-as-cronicas-de-gelo-e-fogo-medievalismo-posando-como-autenticidade/. Acesso em: data em que você acessou o artigo.