Marcelo Pereira Lima
(LETHAM-PPGH-UFBA)
A religião é o ópio do “povo” que entorpece, ilude e engana, algo que desloca aquele ou aquela que crê para fora da realidade, amarrando-os(as) aos rituais e à obediência? É uma ideologia capaz de expressar interesses e necessidades sociais e materiais imediatas ou profundas? É uma forma de controle da sociedade suficiente para criar consenso e coesão política, mobilizando forças sociais? É espaço de conflitos e negociações? Ou seria uma interpretação do mundo que adquire aparentemente uma forma explicativa universal que vale para tudo e todos? A religião é resistência, uma maneira eficaz de resiliência social e histórica?
Quando paramos para pensar na aproximação entre o bolsonarismo e os grupos evangélicos e católicos, dificilmente não vemos alguma relação com todas essas características das experiências e discursos religiosos. Mas gostaria de me deter ao problema do pactismo religioso. A concepção contratualista da religião não é coisa nova. Exemplos não faltam no ocidente cristão. Para citar apenas alguns exemplos, na Idade Média, imperadores, reis, senhores feudais, bispos, papas etc. representavam o poder divino como uma entidade patriarcal onisciente, onipresente e onipotente que estabelecia uma relação de trocas com os fiéis. Não se tratava de uma troca igualitária, obviamente, pois se acreditava que, entre os(as) fiéis, as autoridades seculares e eclesiásticas e Deus, havia intermediações hierárquicas.
Na Alta Idade Média, por exemplo, em sociedades que legitimavam as desigualdades sociais, as próprias imagens de Cristo seguiam perspectivas elitistas, pois era representado em majestade: o soberano era entronado. Não é casual que as elites medievais se identificavam com essa imagem, porque ela expressava as noções de submissão, obediência, respeito à hierarquia e ao poder de uma autoridade masculina patriarcal. Um patriarca divino que cuidava, punia e ganhava guerras. Muitas dessas elites disputavam o exclusivismo ou a primazia de ser os representantes de Deus na terra. Portanto, o elitismo da própria imagem de Cristo serviu à busca de controle e coesão social, misturando frequentemente religião e política. Há resistências e ruídos nesse jogo patriarcal e medieval e, quando as mulheres da elite assumiam a tutela de seus filhos ou a titularidade do poder senhorial, monárquico e imperial, havia alterações dessa ordem patriarcal para outras formas de se pensar e exercer o poder.
Na chamada Idade Média Central, sobretudo nos séculos XII e XIII, houve diversos movimentos reformadores críticos à uma religião oficial, episcopal, monacal e pontifícia, algo considerado à época distante do cotidiano, das experiências e necessidades sociais, religiosas e materiais de diversas setores comunitários e institucionais. Pipocaram numerosos movimentos religiosos de todo tipo. Nas cidades europeias, homens e mulheres das camadas mais humildes ou de grupos médios urbanos desejavam um cristianismo que retornasse aos tempos dos apóstolos, à vida em comunidade de ajuda mútua, à vida em pregação e itinerância no e pelo mundo. Era a chamada vita vere apostólica, a vida verdadeiramente apostólica. Antes de serem institucionalizadas e sofrerem com o peso do tempo, muitos desses movimentos propunham mudanças significativas na relação com o divino e com a sociedade. Alguns deles foram institucionalizados e incorporados à Igreja oficial, como são os casos dos franciscanos e dominicanos, obedecendo a hierarquia eclesiástica. Contudo, outros grupos foram excluídos, tornando-se heréticos até serem combatidos por meio da violência, como os cátaros e valdenses. As mulheres participaram desse processo e, sendo ou não consideradas santas ou heréticas, alteraram a forma como esses movimentos religiosos se comportavam, por vezes, feminizando a ordem social vigente.
Nesse contexto, as imagens de Cristo também mudaram. De soberano em majestade passou a ser representado na sua dimensão mais estritamente humana. Sinal dos novos tempos, claro! Crucificado, exposto, quase sem roupas e marcado pela tortura no corpo. Os novos movimentos religiosos desejavam seguir nu o Cristo nu. Almejavam uma vida em comunidade, de ajuda mútua, de pregação e pobreza voluntária. Eram grupos que queriam mudanças, mas eram igualmente conservadores, porque preconizavam o retorno à uma Igreja dos tempos dos apóstolos. Além das figuras e valores masculinos, havia espaço para representar Cristo como mãe, ou seja, no imaginário religioso medieval, como diria Caroline Bynum, havia forma de expressar as espiritualidades femininas, assumidas por e para mulheres, mas também formas de feminização da linguagem religiosa adotadas por grupos e instituições monásticas e não monásticas, laicas ou não.
Mas quais semelhanças e diferenças existem entre essas duas modalidades de experiências religiosas e as aproximações entre bolsonarismo e igrejas evangélicas e católicas? Sem dúvida, estamos falando de sociedades completamente distintas. Na Idade Média, as sociedades eram marcadas pela legitimação das desigualdades baseadas na reprodução de privilégios. Nas sociedades senhoriais e feudais, as desigualdades sociais eram comumente legitimadas, justificadas, mantidas e, por isso mesmo, resistidas. Atualmente, os valores democráticos, as conquistas de direitos humanos, a luta contra as desigualdades e formas de preconceitos, a manutenção do Estado Democrático de Direito, as eleições livres e populares etc. são uma referência que se imaginava conquistada e são exatamente o que tem sido questionado por numerosos setores sociais e pela nova fase do capitalismo contemporâneo. O paralelismo com o medievo, embora útil como oposição e crítica política, é algo anacrónico e limitado, escondendo fissuras e conflitos muito mais profundos e complexos. Podemos fazer paralelismos heurísticos, mas não uma correspondência de causa e efeito simplista entre um tempo e outro.
No entanto, há semelhanças em alguns princípios nas relações entre religião e política. Walter Ullmann, no seu livro Law and Politics in the Middle Ages: An Introduction to the Sources of Medieval Political Ideas, propõe uma reflexão interessante. Para ele, na Idade Média, havia duas concepções hegemônicas de poder. A primeira seria uma forma ascendente de poder, presente nas comunas e conselhos municipais. Um poder identificado com as bases sociais que concederiam o exercício da autoridade e culminaria na pessoa do governante designado, escolhido ou eleito. Algo que, segundo o autor, poderia ser identificado na pólis grega, na república romana e nas tribos germânicas. É um poder mais horizontal e mais comunal. A segunda seria uma forma descente de poder. Diferente da perspectiva ascendente, que localizaria a “origem” do poder na base popular, no “povo”, o poder descendente escolhe uma lógica piramidal como metáfora e a hierarquia como marca ideológica. O poder está em outro ser, na própria divindade que é vista como a fonte primeira de todo poder e autoridade. (ULLMANN, 30-31) Nas perspectivas medievais, em especial na Alta Idade Média, o pacto com Deus poderia ser representando como uma relação exclusiva e demonstrava os privilégios de uma elite que queria compartilhar uma concepção de poder descendente, cuja origem estaria em Deus e cairia em cascata em direção a seus representantes da terra. Na Idade Média Central, no bojo dos movimentos religiosos de leigos e leigas, não era incomum a existência de concepções mais horizontais, fraternas e ascendentes do poder. Apesar de tudo isso, é possível ver a articulação e convivência entre essas e outras formas horizontais com concepções mais hierarquizadas de poder.
Mas o que isso tudo tem a ver com o bolsonarismo e os grupos evangélicos e católicos que o apoiam? Não vou fazer aqui um mapeamento histórico e historiográfico dessa relação. Há trabalhos muito bem-feitos que podem suprir essa lacuna. Embora os fatores da ascensão de Bolsonaro sejam a combinação de muitos elementos históricos das últimas décadas, detenho-me no seu principal slogan de propaganda cristã-protestante-católica, populista e neoprotofascista da sua companha eleitoral e de governo, “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”. É claramente um chamado que combina as concepções ascendentes e descendentes de poder. Se, por um lado, o bolsonarismo apela para um ser divino incontestável e supremo, colocando-se como seu representante moral, por outro, ele também flerta com as ideias de que a fonte última do poder é o “povo”. Essas amplas e pressupostas bases populares da sociedade veriam em Bolsonaro a expressão de suas vontades, interesses e necessidades sociais, morais e materiais. Em ambos os casos, tudo culminaria em Bolsonaro. Ele seria a síntese do “povo” e dos desígnios de Deus. O pactismo aqui é ascendente e descendente ao mesmo tempo, e implica em mediação, troca e hierarquia. As necessidades e interesses imediatos ou profundos não poderiam esperar. No discurso bolsonarista e algumas correntes evangélicas e católicas que o apoiam (sim, porque nem todos e nem a maioria o apoiam), é preciso trocas e mudanças vistas ideologicamente como radicais. Em troca de fidelidade, devoção e submissão, obtém-se de imediato, mesmo que na aparência e no nível do sujeito persuadido, sucesso, saída da pobreza, enriquecimento, pagamento de dívidas, alimentação, segurança, proteção, pagamento das contas, o combate dos inimigos e a salvação eterna. Obviamente, isso não é produzido exclusivamente por Bolsonaro e seu núcleo de apoiadores imediatos, porém ganha ampla penetração nas instituições religiosas evangélicas e católicas. Mescla-se interesses e soluções efetivas e ou imaginárias. Assim fica menos difícil acionar passeatas e ações virtuais que possam proteger a pessoa do presidente e aquilo que ele representa, mesmo que de forma dispersa e contraditória.
Não há dúvidas de que diversos grupos sociais ou parcelas de classes acreditam na cartilha bolsonarista. É possível que o próprio Bolsonaro acredite em muitas das suas próprias convicções e discursos, o que não o exime de responsabilidade. Ele não é louco ou doente. Mas também não é um exímio estrategista ou ideólogo da extrema direita. Obviamente, ele sintetiza uma ideologia mobilizadora que esconde e revela o elitismo e o neoliberalismo do governo. Se, por um lado, boa parte da participação popular de oposição tem sido limitada e criminalizada, sendo identificada com uma suposta elite intelectual e artística, corrupta e imoral, por outro, a participação “popular” é incentivada quando direcionada a proteger e defender o governante-mediador do poder do povo e de Deus. Bolsonaro flerta com a ambiguidade o tempo todo. Dá sinais trocados. Mas há recorrência e uma lógica nas posturas ilógicas. Esvazia a participação efetiva da oposição e estimula a mobilização personalizada. Aparelha o Estado e tenta implementar um poder desentende, rígido e autoritário, mas, ao mesmo tempo, flerta com um discurso neoliberal e de soberania de uma suposta vontade do povo. Não é à toa que essa mesma pauta tem justificado a repressão e exclusão de maiorias exploradas e de minorias numerosas discriminadas.
Por fim, sendo ou não performance cínica e manipuladora, combinando ou não valores cristãos, unindo ou não perspectivas estatizantes e autoritárias, ou posturas privatistas e neoliberais, mesclando ou não autoritarismo e aparência liberal, Bolsonaro e o bolsonarismo são filhos das formas contemporâneas de mistura entre religião e política. Não são medievais. Não são senhoriais. Não são feudais. Não se trata de um poder revelador de uma sociedade de ordens e estamentos. Trata-se de um poder, ascendente e descendente, incrustrado nas formas capitalistas ultraneoliberais e privatistas, cujas contradições são controladas, negociadas e negadas pela política religiosa. Trata-se de uma fase de disputas por pedaços do Estado em que grupos sociais e institucionais veem como espaço para pôr na ordem do dia sua pauta e alterar o mundo no caminho da salvação cristã. A vontade de Deus deveria ser a pauta do Estado. É possível ver manipulação e busca de hegemonia, sem que seus sujeitos sejam exclusiva e puramente cínicos? Nem tudo é puro cálculo. Nem tudo é puro espontaneísmo. Como diria medievalista Marc Bloch, na obra Os reis taumaturgos, a “história das religiões mostra abundantemente que para explorar um milagre não há necessidade de ser cético” (BLOCH, 1999, p. 84) É possível também ser cínico, sem ser cético? Resta saber quanto de cinismo é preciso para manipular o sagrado em tempos de crise.
Os estudos históricos sobre as religiões não são uma novidade recente. Karl Marx já havia proposto a necessidade de se fazer uma abordagem irreligiosa da religião, criticando as formas metafísicas e teológicas de se pensar o fenômeno. Na Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, ele demonstrou que o “homem” (aqui, visto em uma singularidade basicamente masculina) não seria um ser abstrato, localizado fora do mundo, um mundo marcado por ele mesmo, pelas instituições estatais e a sociedade. Segundo ele:
Este é o fundamento da crítica irreligiosa: o homem faz a religião, a religião não faz o homem. E a religião é de fato a autoconsciência e o autossentimento do homem, que ou ainda não conquistou a si mesmo ou já se perdeu novamente. Mas o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Esse Estado e essa sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, seu compêndio enciclopédico, sua lógica em forma popular, seu point d’honneur espiritualista, seu entusiasmo, sua sanção moral, seu complemento solene, sua base geral de consolação e de justificação (Grifo do autor, MARX, 2010, 145).
Há diversas autoras feministas e marxistas, como Silvia Federici, que questionaram o androcentrismo das visões marxianas, desuniversalizando a dimensão feminina dos sujeitos históricos. Já não temos o “homem” abstrato e essencial como escopo de análise sociológica ou historiográfica (FEDERICI, 2010). Contudo, Marx sintetiza uma forma irreligiosa de analisar a religião. .Interessava a Marx a crítica filosófica e histórica da autoalienação nas suas formas sagradas ou não sagradas. Não bastaria dessacralizar a religião, mas também o direito, a política etc. Para Karl Marx, não seria somente uma forma de ilusão: “A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estados de coisas embrutecidos. Ela é o ópio do povo”. (MARX, 2010, p. 145)
Bibliografia
BLOCH, Marc. As origens do poder curativo dos reis. A realeza sagrada nos primeiros séculos da Idade Média. In: ____. Os reis taumaturgos. O caráter sobrenatural do poder régio França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 68-87.
FEDERICI, Silvia. Calibán y la bruja. Mujeres, cuerpo y acumulación originaria. Traficantes Madrid: Traficantes de sueños, 2010.
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus [supervisão e notas Marcelo Backes]. 2.ed revista. São Paulo: Boitempo, 2010.
ULLMANN, Walter. Law and Politics in the Middle Ages. An Introduction to the Sources of Medieval Political Ideas. Cambridge University Press, 1975.
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Publicado em 16 de Setembro de 2021.
Como citar: LIMA, Marcelo Pereira. Pactismos religiosos: ópio do povo ou resistência? Blog do POIEMA. Pelotas: 16 set. 2021. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/texto-pactismos-religiosos-opio-do-povo-ou-resistencia/. Acesso em: data em que você acessou o artigo.