Texto: Historiografia do Catarismo: A Querela Desconstrucionista

Philipe Rosa de Lima[1]

 

   A heresia é um fenômeno de destaque na Idade Média devido às suas repercussões políticas, sociais e espirituais. Nesse sentido, o catarismo foi um grande representante desse contexto histórico, especialmente na região francesa do Languedoc. Porém, analisar esse passado longínquo para tentarmos nos aproximar dessa realidade histórica não é uma tarefa fácil, pois envolve diversos questionamentos e divergências acerca de sua base factual, conceitual e historiográfica.

   Assim, buscaremos neste artigo analisar brevemente as controvérsias que envolvem a percepção historiográfica recente sobre a heresia cátara. Logo, continue com a leitura para conferir.

Conceito de Heresia

   Primeiramente, é importante definirmos o que entendemos como “heresia”. Este termo tem origem na palavra grega hairesis, a qual tem o significado de “escolha”. Assim, o contexto histórico dessa etimologia se insere no período dos primeiros séculos do cristianismo, o qual agregou uma miríade de disputas sobre o que deveria ser a verdadeira doutrina estabelecida por Jesus e seus apóstolos (JEANJEAN, 2016). Logo, nesse sentido, um herege seria um indivíduo que teria escolhido aceitar um posicionamento divergente de uma base doutrinal hegemônica, ou seja, da ortodoxia.

   Ao longo dos séculos medievais, a acepção da heresia foi sendo progressivamente alargada e aplicada aos movimentos considerados heréticos pela Igreja. Então, quando considerada em relação ao catarismo, tem-se tradicionalmente a referência sobre um grupo que viveu na Europa ocidental do séculos XII-XIV, essencialmente radicado na Germânia, no Languedoc e na península itálica. A saber, esse movimento era assaz heterogêneo com algumas características comuns, tais como a negação da legitimidade da Igreja, a promoção de crenças dualistas, práticas ascéticas como o vegetarianismo e um sistema hierárquico específico dentro de sua organização (DUVERNOY, 1976).

   Contudo, naturalmente surge o questionamento sobre se é apropriado para a historiografia que se utilize o termo “heresia”, pois se poderia com esse ato “tomar o partido” da ortodoxia eclesiástica ao empregá-lo. Embora essa reflexão seja legítima, é fato que as outras alternativas lexicais (como “dissidência”) não conseguem indicar com consistência a referência a esses movimentos na Idade Média. Assim, seguimos a direção estabelecida pelo historiador Alain Boureau, o qual defende a utilização do termo a partir de uma ótica crítica e pedagógica, sempre levando em consideração o seu viés (BOUREAU, 2008).

   A intencionalidade própria à relação entre ortodoxia e heresia sob o ponto de vista do ofício historiográfico é evidente. Para superar esse dilema, podemos apontar três caminhos possíveis para o historiador, a depender do objeto histórico estudado e da natureza das suas fontes:

1) Desconstrucionista: a heresia só existe pois foi criada pela ortodoxia;

2) Dialético: a ortodoxia e a heresia têm influências mútuas sobre a construção uma da outra;

3) Independente: não existe uma relação ontológica entre heresia e ortodoxia, pois essa se configura a depender do contexto histórico.

  Esses três posicionamentos são essenciais para se compreender a polêmica historiográfica sobre o catarismo, como você pode ver a seguir.

Querela desconstrucionista

   A Idade Média teve algumas querelas de renome, tais como a das Investiduras e também a dos Universais. Igualmente, a historiografia sobre o catarismo agrega uma grande divergência metodológica sobre a heresia, a qual nomeamos de “querela desconstrucionista”.

   A título de informação, grande parte das fontes históricas acerca da heresia cátara provém de lugares de produção eclesiásticos. Nesse sentido, surgiu uma importante vertente na heresiologia medieval que tinha como objetivo desconstruir os discursos presentes nesses documentos para se tentar alcançar uma compreensão segura do fenômeno herético no Languedoc.

  A publicação da obra “Inventer l’ hérésie” (ZERNER, 2009) marca a consolidação dessa abordagem na historiografia do catarismo, também conhecida como “Escola de Nice”. Em resumo, podemos citar os seguintes autores como vinculados total ou parcialmente aos postulados desconstrucionistas: Monique Zerner; Jean-Louis Biget; Robert Moore; Mark Pegg; Julien Théry; John Arnold; Pilar Jimenez-Sánchez.

   Contudo, quais seriam esses postulados acerca da heresia cátara? Primeiramente, a heresia cátara teria sido uma extrapolação discursiva de escritores católicos no medievo que resgataram os argumentos dos autores patrísticos contra o Maniqueísmo na Antiguidade. Ademais, a historiografia desconstrucionista põe em xeque as principais características tradicionalmente associadas às comunidades cátaras, tais como o seu conjunto de crenças e a sua organização social (PEGG, 2008).

   Naturalmente, essa abordagem metodológica foi questionada por parcela considerável da historiografia do catarismo, tanto pelo seu posicionamento hiperrelativista, quanto pela sua interpretação das fontes sobre a heresia. Para fins pedagógicos, optamos por chamar esse grupo como “anti-desconstrucionista”, ressaltando que a oposição de seus historiadores ao paradigma desconstrucionista varia em grau e mérito. Podemos mencionar os seguintes historiadores anti-desconstrucionistas: Alain Boureau, Peter Biller, Anne Brenon, Michel Roquebert, John Mundy, Claire Taylor, Caterina Bruschi e Yuri Stoyanov.

  Em resumo, os pesquisadores anti-desconstrucionistas apontam que o desconstrucionismo rebaixa ou anula a própria condição ontológica da heresia, ou seja, apaga a história de comunidades inteiras perseguidas pelos poderes seculares e eclesiásticos na Idade Média. A narrativa desconstrucionista de que o catarismo foi uma ficção foi refutada com veemência na obra Cathars in Question (SENNIS, 2016), especialmente pelos historiadores Peter Biller e Jorg Feuchter. Vale a pena destacar as três novas evidências históricas sobre o catarismo trazidas por Feuchter: uma referência de 1179 do patriarca sírio sobre a heresia; um documento notarial de Baziège de 1189 (de meio não-eclesiástico) e depoimentos inquisitoriais da década de 1240 (FEUCHTER, 2016). A diversidade de escopo temporal e de lugares de produção chamam a atenção nessa obra, o que invalidaria uma crítica desconstrucionista de que seriam discursos eclesiásticos que anulariam a ideia de uma heresia estabelecida na região.

  De fato, o argumento desconstrucionista tem raízes no arcabouço intelectual do pós-modernismo, influenciado pelas obras de Foucault, Derrida e Hayden-White (MULLER, 2010). Logo, podemos citar o emprego de abordagens relativistas e nominalistas por grande parte dos historiadores desconstrucionistas. De antemão, cabe mencionar a imensa validade em pesquisar fontes eclesiásticas buscando compreender os seus discursos e as suas intenções. No caso do posicionamento dessa vertente historiográfica, devemos ressaltar também o seu grande mérito em identificar as falhas de transcrição e interpretação dos manuscritos referentes à história do catarismo.

   Contudo, o papel do historiador é, por meio da pesquisa de fontes e interpretação da bibliografia, buscar se aproximar o máximo possível daquele passado controverso e ajudar a identificar a sua realidade histórica, como mencionamos anteriormente. Nos últimos anos, ocorreram diferentes seminários e publicação de obras nas quais alguns historiadores de ambos os lados travaram debates bastante construtivos, chegando inclusive a posições intermediárias. Por exemplo, vale mencionar o livro “Dissidences en Occident des débuts du christianisme au XXe siècle. Le religieux et le politique” (ALBERT; BRENON; JIMENEZ-SÁNCHEZ, 2016).

   Ou seja, construiu-se um diálogo historiográfico no qual se determinou ser possível uma análise na qual se consideram as possíveis manipulações de autores eclesiásticos medievais sobre as fontes do catarismo, porém sem invalidar a existência do movimento cátaro. Assim, ocorreria uma adesão parcial à abordagem dialética ou independente pela historiografia. Se antes falávamos sobre uma querela, atualmente podemos dizer que existem discordâncias fundamentadas.

Eventos históricos em disputa

   Adiante, existem importantes eventos e fenômenos históricos relacionados à história do catarismo que têm interpretação diversa a depender da adoção ou não das abordagens desconstrucionista, dialética ou independente. Apresentamos a seguir a lista de alguns deles:

– Presença concreta de comunidades cátaras no Languedoc desde o século XI;

– Debate sobre a validade do termo “bons-homens”[2];

– Suposta influência oriental na doutrina cátara, especialmente da crença dos bogomilos[3];

– Veracidade da Carta de Nicetas e Concílio de Saint-Félix em 1167;

– Grau de homogeneidade doutrinal e social nas comunidades cátaras;

– Validade histórica de fontes sobre a heresia adquiridas via depoimentos da

Inquisição;

– Existência de fontes históricas genuinamente cátaras;

– Identificação das comunidades heréticas mencionadas por Bernardo de

Claraval e Evervin de Steinfeld no século XII (BERNARDO DE CLARAVAL, 1879;  EVERVIN DE STEINFELD, 1879);

– Colóquio de Lombers em 1165;

– Carta do conde Raimundo V de Toulouse em 1177 sobre a existência de

hereges no Languedoc (GERVÁSIO DA CANTUÁRIA, 1879);

– Missões legatinas papais de Henrique de Marcy em 1178 e 1181;

– Quantidade real de indivíduos que teriam aderido formalmente à heresia cátara no Languedoc.

Conclusão

  Não pretendemos neste breve texto estabelecer uma análise sobre a história do catarismo que esgote o tema, até pela impossibilidade dessa tarefa. Em suma, a polêmica sobre a heresia é um debate sobre as fontes históricas e de como interpretá-las. Então, cabe aos historiadores se posicionarem e embasar as suas pesquisas com argumentos construtivos e não especulativos.

  Afinal, a divergência na abordagem metodológica dos historiadores sobre o catarismo é bastante frutífera, pois impõe desafios e estimula novas pesquisas sobre o tema. A questão ainda está em aberto.

Bibliografia

ALBERT, Jean-Pierre; BRENON, Anne; JIMENEZ-SÁNCHEZ, Pilar. Dissidences en Occident des débuts du christianisme au XX siècle. Le religieux et le politique. Toulouse: Presses Universitaires du Midi, 2016.

BERNARDO DE CLARAVAL. Sermones in Cantica (V.2). In: MIGNE, Jacques-Paul (Ed.). Patrologia Latina (Tomo 183). Paris: 1879, col. 1080-1102.

BOUREAU, Alain. La circulation des hérésies dans l`Europe médiévale. Cahiers du Centre de Recherches Historiques. N. 42, 2008.

DUVERNOY, Jean. La Religion des Cathares. Toulouse : Éditions Privat, 1976.

EVERVIN DE STEINFELD. De Haereticis sui temporis. In: MIGNE, Jacques-Paul (Ed.). Patrologia Latina (Tomo 182). Paris: 1879, col. 676-680.

FEUCHTER, Jorg. The heretici of Languedoc: Local holy men and women or organized religious group? New evidence from inquisitorial, notarial and historiographical sources. In: SENNIS, Antonio (Ed.). Cathars in question. York: York Medieval Press, 2016, p. 112-130.

GERVÁSIO DA CANTUÁRIA. The Chronicle of the reigns of Stephen, Henry II and Richard I. Londres: Longman, 1879, p. 270-271.

JEANJEAN, Benoît. Comment peut-on être hérétique dans l`Église des premiers siècles? » ou la fabrication de l`hérétique dans l`Antiquité tardive. In : ALBERT, Jean-Pierre; BRENON, Anne; JIMENEZ-SÁNCHEZ, Pilar. Dissidences en Occident des débuts du christianisme au XX siècle. Le religieux et le politique. Toulouse: Presses Universitaires du Midi, 2016, p. 31-48.

MULLER, Daniela. Les historiens et la question de la vérité historique : L`Église Cathare a-t-elle existé? In : BRENON, Anne (Org.). 1209-2009, cathares: une histoire à pacifier? Actes du colloque international tenu à Mazamet les 15, 16 et 17 mai 2009 sous la présidence de Jean-Claude Hélas. Portet-sur-Garonne : Loubatières, 2010, p. 139-153.

PEGG, Mark Gregory. A most holy war. The Albigensian Crusade and the battle for Christendom. Oxford: Oxford University Press, 2008. SENNIS, Antonio (Ed.). Cathars in question. York: York Medieval Press, 2016.

ZERNER, Monique (Org.) Inventar a heresia. Discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição. Campinas: Editora da Unicamp, 2009.

[1] 1 Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Email:

philiperlima@gmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8170242164720613.

[2] Os bons-homens eram a denominação dos sacerdotes do catarismo, também chamados de “perfeitos”.

[3] O bogomilismo foi uma seita gnóstica cristã que se difundiu no leste da Europa e na Ásia a partir do

século X.


Publicado em 1° de Agosto de 2022.

 

Como citar: LIMA, Phillipe Rosa de. Historiografia do Catarismo: A Querela Desconstrucionista. Blog do POIEMA. Pelotas: 01 ago. 2022. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/texto-historiografia-do-catarismo-a-querela-desconstrucionista/. Acesso em: data em que você acessou o artigo.

 

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