Texto: Eram os Deficientes um Grupo Marginalizado no Ocidente Medieval?

Léo Araújo Lacerda (POIEMA/UFPel)[1]

 

     A pergunta provocativa que abre o título deste breve texto já remete a uma definição complicada e difícil de ser aplicada às sociedades que se desenvolveram no Ocidente medieval visto não se tratar de algo consensual a conformação das pessoas deficientes em um grupo identitário particular. Sequer existe um termo amplo e equivalente ao de deficiente (disabled) em latim medieval ou nas formas vernaculares. As pessoas que viveram nas espacialidades durante a cronologia estabelecida nos marcos temporais, variáveis, do que se nomeou “media aetas”, nessa idade do meio, em seu tempo jamais se reconheceram como sendo medievais. Este argumento, do grupo identitário, esbarra na multiplicidade de condições físicas, sensoriais e cognitivas, que determinaram a imputação de termos incapacitantes. O vocábulo mais aproximado de uma noção de “deficiência” é o de infirmus, isto é, enfermo. Por sua vez, o delineamento que sujeita aos indivíduos que define quando utilizado é limitado: já que estas pessoas não estão, efetivamente, doentes. Não se trata de um estado transitório, seja temporária ou permanente, o fato biológico condicionou conformações próprias que, frequentemente, propiciaram locais incapacitantes e discursos sobre a incapacidade que restringiram em alguma medida a experiência destes indivíduos. Dessa forma, a diversidade de termos encontrados nos textos medievais indicam, de fato, não constituírem um grupo coeso e homogêneo.

   Entender as atitudes pré-modernas dispensadas a esses indivíduos, recompor sequências inexatas e imprecisas deste capítulo da História, hoje se constitui um enorme desafio. A iconografia medieval, sobretudo das marginais manuscritas, atesta a existência de dispositivos de acessibilidade, ou, o que em nossa época nomearíamos como tecnologias assistivas, conhecidas e utilizadas como recursos de mobilidade: bengalas, cavaletes de andar, muletas e cães-guias, dentre outras. Porém, o campo dos Estudos Medievais ainda necessita de uma investigação sobre a cultura material associada à deficiência. No período, muitas lesões resultavam em efeitos permanentes. Uma perna mal curada regularmente poderia ocasionar um problema de mobilidade. Patrick McDonagh (2008) problematizou esta questão amplamente debatida sobre o impairment:

“[…] como saber com certeza se alguém chamado de ‘tolo’ no século XVI, se transportado no tempo, seria chamado de “simples” em século XVIII, um “imbecil” na década de 1890, ou “moderadamente ou levemente retardado” na década de 1960; nem sabemos se alguém chamado de “idiota” em 1760 ainda seria um em 1860, ou ‘severamente retardado” em 1960’” (McDONAGH, 2008, p.6).

    Portanto, é preciso se atentar para a inadequação do modelo médico como interpretativo das relações que pretende cobrir, já que não podemos elaborar com a segurança devida um detalhamento preciso do quadro de enfermidades e de sintomas que pudessem ter produzido a diferença física. Afora esta questão específica, este modelo é largamente rejeitado por considerar e vincular a deficiência como um aspecto particular e privado de um indivíduo.

   Ainda que o prisma do pecado constitua um eixo explicativo evocado em muitos textos medievais, já na Antiguidade Tardia encontramos entre autores cristãos exemplos que desvinculam a deficiência do pecado, como em Irineu de Lyon (c. 130-202). O modelo religioso buscou explicar teologicamente as diferenças corporais através do desvio moral e a prática de atos pecaminosos. Em alguns aspectos coincidente ao modelo médico, que teve seu auge no século XIX, e ainda hoje está presente no cotidiano das pessoas deficientes como uma entre as formas compreensivas do fenômeno. Ambos os modelos percebiam a deficiência, a lesão incapacitante, como um fator individual e não um problema coletivo, de um grupo.

   Jacques Le Goff (1985) apresentou uma tipologia precisa da marginalidade social em quatro categorias. Em duas delas podemos enquadrar as pessoas deficientes os desprezados e os marginalizados propriamente dito. A alocação dos deficientes em duas classificações deve-se às distinções consideráveis entre a lesão incapacitante (impairment) encontradas nas deficiências sensoriais e motoras, e entre a loucura e os leprosos particularmente próximos a exclusão, merecendo frequentemente o tratamento de um pária social. Ainda que tenham existido deficientes em todos os extratos sociais, há muito mais informações disponíveis sobre as elites que de personagens oriundos de outros segmentos sociais.

   Na Cristandade viu-se o apoio à prática dos mendicantes, sendo as pessoas deficientes, juntamente aos mais pobres e os velhos nas comunidades em que residiam. No mundo islâmico, ao contrário, era o ato de mendigar proibido. Era a pobreza tema recorrente de pregadores medievais que costumavam distinguir a pobreza redentora da pobreza vergonhosa, vinculada à preguiça. A dicotomia entre falsos pobres e pobres verdadeiros, enfermos, se acentua principalmente após a Guerra dos Cem anos (1337-1453), merecendo atitudes ambivalentes que oscilavam entre o medo e a compaixão. Segundo observou-se, apenas séculos depois, durante a Revolução Francesa, a mendicância tornou-se um problema social, demandando intervenção pública, como a criação de Comitês de mendicância.  Após a conquista cristã da cidade de Sevilha, há uma proliferação de instituições hospitalares de tamanho reduzido, dentre as quais destaca-se o Hospital Real. Reservado a uma clientela específica, particularmente feridos de guerras e desvalidos em função da idade avançada e pessoas pobres.

   Na França medieval, o rei Luís IX (1214-1270), canonizado como São Luís, fundou em 1260 um hospital destinado ao cuidado de pessoas cegas, o Quinze-Vingts. Localizado originalmente no centro parisiense, o nome do hospital que deu nome ao bairro em que foi construído, em francês significa 300, uma referência ao número de leitos existentes no estabelecimento hospitalar, foi transladado, em 1779, ao quartel dos mosqueteiros reais no mesmo bairro. Dentre as formas de provimento do Quinze-vingts, destacou-se, principalmente, a mendicância:

“Os mendigos licenciados do hospício eram geralmente cegos, cada um acompanhado por um residente vidente; a dupla se posicionava nas portas da igreja ao lado de caixas de dinheiro cujo conteúdo era destinado às necessidades da paróquia. Todas as esmolas tinham que ser entregues ao ministro no final de cada dia, embora os arquivos mostrem que os moradores ocasionalmente tentavam manter uma parte para si mesmos” (WHEATLEY, 2002, p. 9, tradução nossa).

   Por que ocorre a internação de cegos antes da era do “grande confinamento” descrita por Foucault? Foucault argumentou que os hospitais medievais se diferenciavam substancialmente daqueles modernos, sendo lugares em que não apenas idosos eram encaminhados para a morte, mas também um espaço para a transformação espiritual, visto que a fronteira entre doença corporal e enfermidade espiritual eram pouco visíveis, e frequentemente podiam estar vinculadas. A preocupação com a reabilitação de cegos produziu generosas doações às instituições hospitalares. Não se trata de um caso particular de exclusão, pois, segundo Wheatley, destaca predominava uma forma mais social do que religiosa de organização destes estabelecimentos:

[…] embora a instituição incluísse uma capela sob o controle de pelo menos um capelão, e os moradores tivessem licença para mendigar nas portas das igrejas parisienses, a razão geral da organização não era religiosa, mas social. Não era um hospital no qual os clérigos cuidavam dos moradores, mas sim uma comunidade na qual cegos e videntes viviam e trabalhavam juntos em todos os aspectos da vida comunal, da agricultura ao governo (WHEATLEY, 2002, p. 3, tradução nossa).

   Porém, Wheatley (2002) observa que havia implícito interesses econômicos e benefícios direcionados à igreja, sendo o Quinze-vingts apenas uma outra instituição disciplinadora, com reuniões semanais, relatórios financeiros e pedidos de ingressos e doações de heranças dos internos. Para Wheatley, o aspecto disciplinador de Luís IX permanece inserido nos fundamentos do Quinze-vingts, e pode ser observado também em relação a outros segmentos sociais, como as mulheres. Nesse sentido, também direcionou estas à Casa das Filhas de Deus (Maison des Filles-Dieu). Fundada em 1260, essa casa conventual destinava-se a abrigar mulheres pobres que se entregaram ao pecado da luxúria, antes trabalhadoras sexuais, cujos proventos destas mulheres arrependidas agora advinham das costuras e mendicância. Portanto, a marginalização da figura da prostituta adotada via direito romano recusava, por exemplo, aceitar testemunhos fornecidos por prostitutas em julgamentos. Assim, a luxúria evocava o pecado da carne, tornando marginalizável, em relação à Cristandade, mulheres que faziam usos não-convencionais do corpo para obtenção do prazer como atividade remunerada.

   Essa longa discussão possível entre integração e marginalização das pessoas deficientes deve admitir que as motivações extrapolavam em larga medida a mera preocupação social. A gestão dos recursos financeiros e sua destinação cabia aos membros da ecclesia, bem como os tratamentos e paliativos médicos e a compreensão das deficiências e das pessoas deficientes foi ajustado a compreensão teológica da época.

   Deste modo, consideramos a disability uma lente de análise fundamental de ser utilizada não apenas visando compreender as atitudes e as inter-relações entre pessoas deficientes e não-deficientes nos processos sociais, mas fundamentalmente um recurso indispensável para demarcação das deficiências como categoriais arbitrárias, e não fixas, construídas social e culturalmente de formas diferentes em cada temporalidade e cultura. Assim, as deficiências não constituem um dado universal, mas uma construção discursiva que acabou influenciando e cerceando os limites da experiência individual de crianças, mulheres, homens, doentes e idosos. A perspectiva que adotamos surge das reflexões propiciadas pelo modelo sociocultural defendido por Snyder e Mitchell, que não separa o impairment (fato biológico) da disability (opressão social) já que ambos atuam, reservadas às proporções de cada um, para produzir a incapacidade.

   As pessoas deficientes que viveram nos séculos ditos “medievais” não estavam largadas à própria sorte, havia uma rede de relações comunitárias que garantiam o cuidado e assistência de que supostamente precisavam. Nem eram as crianças deficientes regularmente assassinadas por seus pais. Sobre a cortina de mitos sobrepostos sobre a compreensão mais aproximada da situação, defende-se a perspectiva destas sociedades como sistemas sociais que privilegiavam mais uma habilidade que outra. A prescrição de paliativos médicos e a busca pela cura milagrosa de enfermidades incapacitantes permeia os relatos de milagres marianos. Contudo, deve-se esclarecer que a grande maioria das deficiências não surgem de doenças incapacitantes, e boa parte das deficiências não produzem efeitos físicos. Todas essas questões colocadas nos distanciam da forma do “marginal’ ou “marginalizado” de Bronislaw Geremek (1989) definido por Isidoro de Sevilha em suas Etimologias como pessoas em exsilium, desenraizadas: “[…] o exsilium que ele faz derivar de ‘extra solem’: exílio significa viver fora do seu solo, da sua terra, para lá das fronteiras da sua pátria” (GEREMECK, 1989, p. 233). Ou de formas como o louco errante de Foucault, a imagem da nave dos loucos ou nau dos insensatos (Narrenschiff, em alemão), permeada de suposições equivocadas: trata-se de uma alegoria literária em relação direta com a crítica a Arca de Noé, dialogando com o texto platônico A República.

   Os estudos sobre deficiências atualmente consideram que, além do aspecto físico/biológico envolvido, as determinações sociais são tanto ou mais determinantes na vida e nas limitações e barreiras que estes indivíduos enfrentam em seu cotidiano.

   Uma das primeiras formas de se pensar a condição do deficiente surgiu do modelo médico. Este modelo rompeu com as explicações religiosas que, dentre tantos aspectos, vinculava a deficiência ao pecado. Este modelo poderia ser localizável nas sociedades pré-modernas e modernas. O modelo médico entende a deficiência como uma “enfermidade”, e o deficiente enquanto um paciente que precisa e quer ajuda. Portanto, oferece tratamentos médicos que pretendem reabilitar o corpo dos indivíduos. Outra perspectiva proposta foi o modelo social que surgiu confrontando e questionando os postulados do modelo médico, definindo a deficiência como “opressão social”, evidenciam as barreiras ambientais que as sociedades, ao longo dos tempos, definiram para as pessoas deficientes. Portanto, a deficiência teria uma natureza profundamente social: uma pessoa, portanto, é deficiente devido a sociedade que restringe e limita suas ações. Enquanto o modelo médico pode ser observado na escolha semântica para definir a condição desses indivíduos – pessoas com deficiência – distintamente do modelo social em que são nomeadas pessoas deficientes devido às conformações sociais que estabelecem sua incapacidade funcional.

   O modelo social originou-se dos movimentos ativistas e apenas muito posteriormente alcançou a academia e universidades. A defesa por um mundo sem barreiras e as lutas contra a discriminação tiveram êxito na defesa pelos direitos civis dos deficientes. A grande relevância deste modelo foi instaurar discussões em torno da acessibilidade, fornecendo independência e capacitando estes sujeitos. Segundo essa perspectiva, a condição de incapacidade deve ser modificada já que as barreiras ambientais e atitudinais podem e devem ser eliminadas.

   Por fim, a pessoa deficiente no Ocidente medieval não estava fora dos laços sociais convencionais. Ela é parte de uma comunidade, e ocupa todas as posições sociais possíveis na sociedade medieval: pode ser laico ou membro clerical; um personagem da nobreza particular ou um camponês anônimo. Por outro lado, a preocupação com a reabilitação corporal e a existência de tecnologias assistivas poderia ser considerada uma preocupação com a inclusão? Como admitir esta preocupação cientes que a teologia e as práticas sociais do período contribuíram para tornar incapacitado alguém em virtude do impairment? Seguindo a perspectiva de Le Goff, podemos alocá-los dentro das categorias de desprezados e de excluídos. Outra possibilidade é a condição liminal ou limítrofe como sugere Metzler (2012): estes indivíduos não seriam nem plenamente aceitos nem estariam fora das margens do aceitável socialmente, mas nas bordas de uma e outra condições.

 

BIBLIOGRAFIA

GEREMEK, Bronislaw. O marginal. In: LE GOFF, Jacques (Dir.). O Homem Medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989, p. 233-248.

LE GOFF, Jacques. Os marginalizados no Ocidente medieval. In: Id. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70, 1985, p. 176-184.

McDONAGH, Patrick. Idiocy: A Cultural History. Liverpool: Liverpool University Press, 2008.

METZLER, Irina. Liminality and Disability: spatial and conceptual aspects of physical impairment in Medieval Europe. In: BAKER, Patricia A.; NIJDAM, Ham e LAND, Karine van’t (Eds.). Medicine and Space. Body, Surroundings and Borders in Antiquity and the Middle Ages. Leiden/Boston: Brill, 2012, p. 273–296.

                           . Fools and Idiots? Intellectual disability in the Middle Ages. Manchester: Manchester University Press, 2016.

WHEATLEY, Edward. Blindness, Discipline, and Reward: Louis IX and the Foundation of the Hospice des Quinze-Vingts. Disability Studies Quarterly: v. 22, n. 4, 2002, p. 194-212.

Referência da Imagem:
Vincent de Beauvais, Miroir historial, traduction en français par Jean de Vignay, Livres IX-XVI, fol. 373r. Online. Gallica. Bibliothèque Numérique.: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b7100627v/f751

 

[1] Doutorando na Universidade Federal de Pelotas (leoaraujolacerda@gmail.com).
http://lattes.cnpq.br/2806479062219307


Publicado em 11 de Abril de 2022.

 

Como citar: LACERDA, Léo Araújo. Eram os Deficientes um Grupo Marginalizado no Ocidente Medieval? Blog do POIEMA. Pelotas: 11 abr. 2022. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/texto-eram-os-deficientes-um-grupo-marginalizado-no-ocidente-medieval/. Acesso em: data em que você acessou o artigo.