Douglas Mota Xavier de Lima[1]
É provável que você, leitor, jovem ou maduro, tenha lembranças sobre o uso de livros didáticos no ambiente escolar, com recordações de atividades passadas pelos professores e de aprendizados oportunizados pela leitura dos manuais impressos, afinal, ao longo do século passado os livros didáticos ocuparam um papel central na educação brasileira e, mesmo com o avanço das tecnologias digitais de informação e comunicação com obras digitais disponibilizadas em tablets, notebooks e smartphones, os manuais escolares, sejam eles impressos ou digitais, não perderam sua centralidade como materiais didáticos. Essa importância também se amplia ao tratar do ensino de história, com os livros sendo responsáveis por veicular narrativas sobre o passado remoto e recente, discursos históricos que tanto podem dar evidência a determinadas temáticas quanto silenciar e ofuscar outras.
O ponto de partida do presente texto é a compreensão de que as disciplinas escolares têm sua própria historicidade e são fruto de processos históricos que se consolidaram entre meados do século XIX e as primeiras décadas do século XX. A História, enquanto disciplina escolar, aparece nesse contexto em meio às transformações do campo das humanidades e à emergência das humanidades científicas (Chervel, 1990; Chervel, Compère, 1999). Paralelamente, acompanha-se a definição dos livros didáticos, com suas características e funções, assim como a afirmação dos manuais como principal recurso mobilizado por professores e alunos em situações de ensino e aprendizagem, responsável pela uniformização dos conteúdos escolares e métodos de ensino considerados necessários de serem transmitidos às novas gerações (Choppin, 2009).
No campo da pesquisa histórica, as investigações sobre os manuais escolares se acentuaram nas últimas décadas e, como ressaltamos em estudos recentes, gradativamente a investigação acerca da Idade Média nos livros didáticos de história brasileiros avança no meio acadêmico, demonstrando a potencialidade do objeto e a variedade de temáticas (Lima, 2021a; 2021b). Não obstante, se, por um lado, é possível notar importantes acúmulos nas reflexões sobre a Idade Média nos livros didáticos, por outro, as pesquisas caracterizam-se, majoritariamente, por uma análise conteudista, concentrando-se nos manuais pós-redemocratização aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e na identificação das incongruências entre a produção acadêmica em medieval e o conteúdo dos livros didáticos, com os trabalhos reafirmando que os manuais são marcados por omissões, simplificações em excesso, incorreções, entre outros problemas.
Trilhando um caminho alternativo e ainda pouco explorado pelos estudos medievais,[2] convidamos o leitor a explorar as tensões e disputas na construção da história medieval escolar no Brasil do século XIX, tendo como base as obras Compêndio de História Universal (1860), elaborada por Justiniano José da Rocha (1812-1862) e História Universal (1869), de Pedro Parley (1793-1860). Essa é uma história complexa que envolve dimensões como as disputas nos meios políticos, culturais e intelectuais brasileiros, o processo de disciplinarização da História na educação secundária, o mercado de compêndios escolares e o próprio entendimento acerca da História enquanto disciplina e da inteligibilidade do passado. De todo modo, tentaremos apresentar alguns apontamentos a fim de suscitar o interesse sobre tais temáticas.
Ao longo do século XIX, programas escolares e livros didáticos foram sendo produzidos concomitantemente, com os manuais de ensino sendo responsáveis por sistematizar conhecimentos, técnicas e habilidades consideradas necessárias de serem transmitidas às novas gerações. Além disso, acompanha-se o embate entre a História Sagrada, estruturada em torno dos marcos da história religiosa judaico-cristã, e a História Científica, baseada nos procedimentos da chamada escola metódica e nos marcos temporais definidos cronologicamente. A História, tornada obrigatória no ensino elementar e médio de Humanidades, tinha como proposta abordar a História Geral/História Universal, a História Sagrada e, gradativamente, a História do Brasil, com as primeiras organizações curriculares, como as do Colégio Pedro II, tendendo a estruturar o ensino iniciando da História Moderna para a História Antiga e Medieval.
No meio educacional brasileiro foi usual a adoção de obras estrangeiras traduzidas, especialmente francesas, uma vez que os currículos das escolas eram originários da França. Gradativamente, no entanto, observam-se tensões nessa adoção, manifestas, sobretudo, no processo de tradução, com as edições lançadas no Brasil adaptando os títulos originais e alterando conteúdos, modificações que incentivaram o desenvolvimento de uma produção nacional relacionada à História Universal. Justiniano José da Rocha, por exemplo, expressa esse incômodo, assim como o ímpeto por uma produção nacional, na justificativa para a elaboração de seu compêndio:
Mas para esse curso [História Universal], se o quizermos reduzido às proporções exigidas pela simultaneidade de outros estudos preparatórios, tudo nos falta. Servem para elle trez volumes francezes, extensissimos, ouriçados de datas: e queremos que o estudante os decore, que especialmente seja forte em datas. […] Basta a menor reflexão para ver que tudo isso é impossivel. Da impossibilidade o que resulta? O desanimo atormenta o alumno, ainda o mais applicado, nas vésperas dos exames de historia. […] O que nos parece incontestável, o que de certo ninguém dos que têm a menor practica do magistério desconhecerá, é que cumpre Iº, resumir, resumir muito os compêndios, 2º, dá-los em lingua commum (Rocha, 1860, p. II-III).
Convém ter em vista que a produção dos primeiros manuais escolares brasileiros, ainda que pontualmente crítica às obras europeias, assumiu uma narrativa histórica fundada nas noções de Progresso e Civilização, tal como postulado pelo conhecimento acadêmico do período. Ademais, o desconforto exposto por Justiniano Rocha em relação aos livros franceses parte, entre outros elementos, da defesa da história portuguesa como uma alternativa, o que evidencia a importância da identidade lusitana como referência para o ensino de história que se buscava no Brasil.
Os compêndios francezes têm gravíssimos defeitos. Escriptos pelo patriotismo, a bem da exaltação e do engrandecimento da França, não hesitam em apresentar todos os factos históricos como determinados pela influencia franceza: todos os povos gravitam em redor da França. Os factos que desmentiriam esse systema são ommittidos, são pelo menos acanhados; que não protestem contra a verdade franceza. Assim a nós filhos de Portuguezes, que já tinham as suas cortes de Lamego, que já tinham a admirável legislação das ordenações, apresentam elles a civilisação moderna nascendo do triumpho de Luiz XI, de Richelieu, de Luiz XIV sobre a fidalguia […]. Escriptos para Francezes, esses livros dão largo desenvolvimento aos acontecimentos da França: é justo e louvável; mas que justiça pôde haver em obrigar a mocidade brasileira a afadigar-se com tantos Merovingios e Carlovingios, com tantos crimes e enredos dos Brunegildas e Fredegundas, em quanto que mal se lhe diz quaes os fundadores da bella e livre monarchia a que pertenceram os seus paes? (Rocha, 1960, p. III-IV).
Nesse período, a História Medieval foi integrada entre a Antiguidade e a História Moderna como parte da chamada História Universal e implementada no ensino secundário brasileiro. O conhecimento da Idade Média contribuía, assim, para a formação da identidade nacional das classes dirigentes letradas do Império, uma identidade que associava o Brasil à longa história da civilização ocidental. Não obstante, é interessante notar as diferentes abordagens sobre o medievo nas obras.
Compêndio de História Universal, escrito por Justiniano Rocha, importante jornalista e professor do Segundo Reinado,[3] sintetiza o conteúdo sobre a Idade Média afirmando que foi “uma épocha de confusão horrível”, na qual foi realizado o trabalho de “decomposição do mundo antigo, e de recomposição dos povos modernos”. Na sequência do argumento, Rocha apresenta um inventário das “verdadeiras riquezas” deixadas pelo medievo, demonstrando uma visão exultante sobre o período:
Comecemos pela lingua. Toda a Europa romana falava latim: não o latim puro e castiço de Virgílio e de Cícero, que talvez nunca fosse o latim falado e popular da épocha mesma abrilhantada por esses gênios, e que decerto já muito se havia adulterado; mas um latim modificado pela conservação de grande numero de vocábulos da língua originaria dos diversos povos que Roma subjugara. […] Dessas línguas foram as primeiras a polirem-se a italiana, e a portugueza; foram as primeiras a darem verdadeiros monumentos litterarios. […] A fundação de universidades attesta os progressos que na sua vulgarisação faziam as sciencias. […] Das sciencias a mais adiantada era necessariamente a theologia que, armando-se com os estudos philosophos, e com a escholastica ou sciencia de argumentação, era a base do ensino de todas as universidades desde as de mais remota fundação, e apresentou admiráveis gênios. […] As bellas artes acompanharam esse progresso: a musica, sahindo do canto chão, tão amado de Carlos-Magno, já tinha recebido de um frade beneditino a escala diátonica (Rocha, 1960, p. 222-224).
O contraste de leituras sobre o medievo pode ser notado na obra História Universal, de Pedro Parley.[4] Trata-se de um manual norte-americano publicado em 1850, de grande sucesso editorial ao longo do século XIX, e que foi traduzido pelo desembargador Lourenço José Ribeiro para uso nas escolas brasileiras. Na obra, caracterizada por julgamentos preconceituosos e por uma narrativa que sobrepõe a história sagrada e a história humana leiga e científica,[5] afirma-se que “passados quatro ou cinco seculos depois de Jesus Chisto fôra desmembrado o Império Romano”, o que teve como consequência a extinção “por algum tempo [d]as artes [d]as sciencias, e [d]a civilisação, que havião sido cultivadas nestes paizes, e quasi toda a Europa ficou reduzida ao estado de barbaridade”. O autor prossegue com a indicação de que a Idade Média recebeu o nome de “séculos de trevas”, em virtude de “as nações então existentes erão ignorantes, ferozes e barbaras.”, condição que se perpetuou até os últimos séculos da Idade Média. Essa visão negativa do medievo é reforçada no manual ao abordar a Igreja e as instituições cristãs, provavelmente numa manifestação da rejeição puritana ao catolicismo medieval:
Collocados os Pontiifices Romanos à frente da Religião Christã, e gozando por isso de uma grande influencia, não puderão infelizmente alguns resistir à tendencia que todo o poder tem para se engrandecer. Teve portanto a Igreja de lamentar alguns abusos da parte dos Pontifices, principalmente depois que elles começarão a intrometter-se em negocios temporaes, e inteiramente alheios à sua missão toda espiritual. […] Não tive occasião de fallar-vos das Abbadias e Mosteiros da Europa, apezar destas curiosas instituições serem dignas de menção. […] Ao principio os habitantes dos Mosteiros vivião simplesmente, e dedicavão-se com effeito à religião; porém, com o andar dos tempos converterão-se as Abbadias e os Mosteiros em residências de prazeres. A ninguem era permitida a entrada alli excepto aos Monges e às Freiras, e emquanto o vulgo os julgava occupados com os deveres religiosos, entregavão-se elles muitas vezes, sequestrados assim dos olhos do mundo, à devassidão e intemperança (Parley, 1869, p. 551-554).
Os exemplos de dois importantes manuais didáticos presentes na educação brasileira da segunda metade do século XIX demonstram o tortuoso caminho trilhado nos primeiros passos da constituição da Idade Média escolar no Brasil. A História Medieval foi representada ora por meio de fatos notáveis, como em Justiniano Rocha, ora por uma visão depreciativa, como em Pedro Parley. A inclusão dos conteúdos e a defesa do conhecimento histórico sobre a antiguidade e o medievo formavam um pilar da identidade cultural e civilizacional que se almejava às elites letradas do Brasil, com a Idade Média ocupando um lugar ambíguo nessa narrativa, tanto o papel de afinidade, presente nos elos que ligavam a sociedade brasileira oitocentista ao medievo (com destaque para o cristianismo) e à história de Portugal; como o lugar de contraste, com a história medieval sendo reivindicada como o contraponto da modernidade.
A Idade Média continuou sendo abordada nos livros didáticos de forma variada até meados do século XX, com narrativas de viés iluminista – as quais se tornaram, posteriormente, hegemônicas – assumindo uma crítica cada vez incisiva ao medievo, em especial ao papel da Igreja e do cristianismo no período, e pouco afeita à valorização da sociedade medieval; ao passo que persistiam manuais com tendências confessionais que defendiam os valores morais da religião cristã e, consequentemente, apresentavam visões mais positivas acerca da Idade Média. Paralelamente, com o passar das décadas, o rol de conteúdos do medievo escolar foi sendo definido, com uma exposição centrada na Europa e numa narrativa pontuada de grandes nomes e acontecimentos político-militares. A defesa esboçada por Justiniano Rocha de uma valorização da medievalidade lusitana, progressivamente foi solapada pela afirmação da história medieval de viés francófono, exemplificada na ode aos Carolíngios vigente até os dias atuais. A compreensão das tensões relacionadas aos primeiros momentos da inserção do medievo na educação escolar brasileira ajuda a desvelar as diferentes apropriações da Idade Média e as funções exercidas pelo período na constituição da identidade brasileira oitocentista, ao passo que contribui para desnaturalizar a narrativa sombria e depreciativa que marca a Idade Média escolar dos livros didáticos de história. Desejamos que os breves apontamentos apresentados possam aguçar o interesse do leitor, fomentando investigações sobre o medievo escolar.
Bibliografia
ALTOÉ, Douglas de Melo. A escrita da história da antiguidade no Brasil oitocentista: um estudo do Compêndio de História Universal (1860), de Justiniano José da Rocha. Seropédica, RJ: Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2016.
BARNABÉ, Luís Ernesto. A escrita da História Antiga escolar nos anos de 1820-1830: o caso do Précis de L’histoire ancienne e a narrativa acerca dos gregos de Auguste Poirson. Heródoto, Unifesp, Guarulhos, v.6, n.1, 2021, p. 128-151.
BARNABÉ, Luís Ernesto. A História Antiga em compêndios franceses e brasileiros no Imperial Colégio de Pedro II ou o caso Justiniano José da Rocha: História, disciplina escolar e impressos (1820-1865). Assis, SP: Tese de doutorado em História, Universidade Estadual Paulista, 2019.
CARDIM, Elmano. Justiniano José da Rocha. São Paulo: Ed. Nacional, 1964.
CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: Reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, Porto Alegre, v. 2, p. 177-229, 1990.
CHERVEL, André; COMPÈRE, Marie-Madeleine. As humanidades no ensino. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 25, n. 2, p. 149-170jul./dez. 1999.
CHOPPIN, Alain. O manual escolar: uma falsa evidência histórica. Revista História da Educação, v.13, n.27, p.9-75, jan./abr. 2009.
FARIAS JÚNIOR, José Petrúcio; GUIMARÃES, Selva. Manuais de ensino de História oitocentistas: reflexões sobre o cristianismo na história escolar no Império do Brasil. Cadernos de História da Educação, v.19, n.3, set./dez. 2020, p. 817-836.
LIMA, Douglas Mota Xavier de. A Idade Média nos livros didáticos. In: VIANNA, Luciano José (org.). A história medieval entre a formação de professores e o ensino na Educação Básica no século XXI: experiências nacionais e internacionais. Rio de Janeiro: Autografia, 2021a. p. 394-415.
LIMA, Douglas Mota Xavier de. O novo já nasce velho: a Idade Média pós-BNCC e a questão da mulher medieval nos livros didáticos de história do guia PNLD-2020. Brathair, v. 21, n. 1, 2021b.
LIMA, Gizeli da Conceição; FARIAS JÚNIOR, José Petrúcio. Ensino de história Antiga no século XIX: reflexões sobre compêndios didáticos de história oitocentistas como fonte histórica. In: FARIAS JÚNIOR, José Petrúcio; CERQUEIRA, Maria Dalva Fontenele; LIMA, Gizeli da Conceição (org.). História, educação e ensino no Brasil: entrelaçando saberes. Teresina: EDUPI, 2019, p. 89-111.
PARLEY, Pedro. História Universal: Resumida para uso das escolas dos Estados-Unidos da América do Norte. Traduzida pelo desembargador Lourenço José Ribeiro. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1869.
ROCHA, Justiniano José da. Compendio de História Universal: Vol. I, Idade Antiga. Rio de Janeiro: Tip do Regenerador de justiça J. da Rocha, 1860.
ROCHA, Justiniano José da. Compendio de História Universal: Vol. II, Idade Média. Rio de Janeiro: Tip do Regenerador de justiça J. da Rocha, 1860.
ROSELLE, Daniel. Samuel Griswold Goodrich, creator of Peter Parley: A study of his life and work. Albany: State University of New York Press, 1968.
[1] Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor da Universidade Federal do Oeste do Pará. E-mail: douglas.mxl@ufopa.edu.br e dougmotahistoria@gmail.com. Link do currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/3484112840633429
[2] No campo das pesquisas acerca do ensino da História Antiga no Brasil, essas preocupações têm mobilizado estudos importantes na última década, como: Altoé, 2016; Barnabé, 2019; Barnabé, 2021; Lima, Farias Júnior, 2019; Farias Júnior, Guimarães, 2020.
[3] Sobre o autor, ver: Cardim, 1964.
[4] Samuel Griswold Goodrich, conhecido pelo pseudônimo de Peter Parley (Pedro Parley, no Brasil), foi um escritor e editor que nos anos 1820 começou a produzir livros voltados aos jovens sobre geografia, história, ciência, entre outras áreas. Sobre o autor, ver: ROSELLE, 1968.
[5] A abordagem sobre os árabes exemplifica essa dupla tendência da obra: “Os Arabes descendem de Ismael, um dos filhos de Abrahão. (…) Os Arabes têm sido em todas as épocas, tribos vagabundas, habitando em tendas no meio de impraticaveis desertos, que cobrem uma vasta porção do seu paiz. (…) [Mahomet] Proclamava publicamente, que Deos o havia mandado para converter o mundo a uma nova religião; porém os habitantes da Mecca, entre os quaes havia nascido, que estavão por isso ao facto do seu antigo mister, e que nenhuma superioridade nelle conhecião, mostravão-se pouco dispostos a dar-lhe credito, tanto mais quanto elle asseverava ter subido ao céo a cavalo n’um jumento em companhia do anjo Gabriel; e muitas outras historias tão ridículas como esta” (Parley, 1869, p. 86-87).
Publicado em 19 de setembro de 2023.