Texto: A Sacralização Simbólica da Península Ibérica[1]

Renata Cristina de Sousa Nascimento[2]

            A função simbólica dos vestígios considerados sagrados perpassa toda a história do cristianismo. Objetos de culto e de prestígio a posse das relíquias dos santos, mesmo por meio de pequenos fragmentos, garantia ao crente a perpetuação de sua memória viva. Em De laude sanctorum, Vitrício de Ruão[3] exaltou a força dos santos vestígios: “Não devemos lamentar-nos da pequenez destas relíquias… afirmamos que o que é divino não pode ser diminuído… e onde está uma parte, seja de que maneira for, está o todo.”[4]  A aquisição e exaltação destes sagrados despojos foram fundamentais na elaboração e participação do poder público na organização do culto. Este principiou-se junto ao túmulo do morto. A própria origem da devoção às relíquias está ligada aos jazigos dos mortos considerados especiais.

          A reunião de cristãos ao redor da tumba dos mártires tinha por objetivo rememorar a presença viva do falecido, buscando sinais da virtude divina, que emanava de seus restos mortais. A atribuição de poderes sobrenaturais aos fragmentos corporais de personagens “especiais” e a objetos foi fundamental para a constituição de lugares sagrados. A redistribuição dos despojos e vestígios conduziu a um enorme mercado de sacralidades. De Jerusalém, Constantinopla e especialmente de Roma proliferaram fragmentos sacros de toda espécie. Os de maior prestígio eram os corpos santos e objetos ligados à vida de Cristo, como pedaços do Santo Lenho, sudários, coroa de espinhos, túnicas, pregos da cruz, frascos do sangue sagrado, além da multiplicação dos cálices da última ceia, entre outros. Procissões solenes eram organizadas e faziam parte dos diversos rituais que englobavam a veneração destes fragmentos. A Igreja também fomentou o culto, determinando que fosse preciso conservar a antiga tradição de guardar, sob o altar fixo, relíquias de personagens santos. Descobertos supostamente através de intervenções miraculosas como visões e sonhos, muitos vestígios sagrados serviram para sacralizar batalhas e legitimar dinastias. (NASCIMENTO, 2019). A cristianização da topografia urbana fortaleceu-se grandemente após o século V.

           Na Península Ibérica a presença das relíquias dos santos e de vestígios ligados a história de Cristo, contribuiu para a sacralização simbólica desta região. “Impulsionados por interesses amplos a exaltação de santidades territoriais de origem hispânica e/ou portuguesa, colaboraram na invenção de uma tradição. Na época moderna as rivalidades entre Espanha e Portugal, e entre estes e o restante da Europa, também foram permeadas por disputas pela posse, qualidade e quantidade de santos.” (NASCIMENTO, 2019). Neste sentido pode-se citar duas fontes que tiveram a intenção de mapear o patrimônio sacro ibérico: O relato da viagem realizada por Ambrósio de Morales[5] em 1572, à serviço do rei Felipe II e o chamado Mappa de Portugal Antigo, e Moderno de João Bautista de Castro, uma fonte do século XVIII que nos oferece um panorama da distribuição de relíquias pelo território português[6]. A tentativa de forjar um passado sublime, através de corpos e objetos considerados sagrados, serviu para legitimar a narrativa política, criando uma identidade particular para esta região. Ao ostentar um ilustre passado através da presença de relíquias o status regional se mitificou. Elaboradas em contextos diferentes estas duas fontes tiveram por objetivo fazer um levantamento do patrimônio sacro regional, dando visibilidade a um projeto político- identitário para os reinos ibéricos.

          Locais são portadores de memória: “E não apenas porque solidificam e validam a recordação, na medida em que a ancoram no chão, mas também por corporificarem uma continuidade da duração que supera a simples recordação…” (ASSMANN, 2011, p. 318) Com a afirmação do cristianismo especialmente após o século IV, os espaços onde se reuniam os fiéis foram sendo sacralizados através de rituais de consagração e celebrações. A Igreja cristã validou ainda nos séculos VI e VII a necessidade de relíquias nos altares, e o costume da consagração de edifícios destinados como locais de culto. A valoração espacial transportou-se para cidades consideradas santas, tendo por modelo Jerusalém e Roma berço de relíquias. A posse destes fragmentos garantia o status religioso, daí a proliferação de objetos, muitos conseguidos através de compras, roubos e falsificações. Na Idade Média o aumento das peregrinações acelerou a busca por santuários de prestígio, que tinham em seu interior relíquias ilustres. Este fenômeno contribuiu para um processo de espacialização do sagrado.

Referências:

ASSMANN, Aleida. Espaços da Recordação. Formas e Transformações da Memória Cultural. Campinas : Editora da Unicamp, 2011.

ÁLVAREZ, Maria Raquel A. & NASCIMENTO, Renata Cristina de S. A Sacralização do Espaço Ibérico: Vivências Religiosas na Idade Média. Curitiba: CRV, 2020.

BASCHET, Jérôme. Corpos e almas. Uma história da pessoa na Idade Média. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2019.

CORDEIRO. José de Leão (Org). Antologia Litúrgica: Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canônicos do Primeiro Milênio. Fátima (PT), Secretariado Nacional de Liturgia, 2015

FERNANDES, Fátima Regina & Zlatic. Carlos Eduardo (Org.). Os Herdeiros Políticos e Suas Potencialidades na Península Ibérica Medieval. Curitiba: CRV, 2020.

NASCIMENTO, Renata Cristina de Sousa. Relíquias e Peregrinações na Idade Média. In NASCIMENTO, Renata C.S & SILVA, Paulo Duarte (Orgs). Ensaios de História Medieval. Temas que se renovam. Curitiba: CRV, 2019. p.73-86

NASCIMENTO, Renata Cristina de S. & COSTA, Paula P. A Visibilidade do Sagrado: Relíquias Cristãs na Idade Média. Curitiba: Appris, 2021

[1]Parte deste texto foi publicado em ÁLVAREZ, Maria Raquel A. & NASCIMENTO, Renata Cristina de S. A Sacralização do Espaço Ibérico: Vivências Religiosas na Idade Média. Curitiba: CRV, 2020.

[2] Doutora em História (UFPR- 2005). Docente na Universidade Federal de Goiás (Regional- Jataí), Universidade Estadual de Goiás e na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Go). Participante/ pesquisadora do Núcleo de Estudos Mediterrânicos (NEMED). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Sacralidades Medievais. Email renatacristinanasc@gmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/5151454949796711

[3] São Vitrício nasceu por volta de 340. Foi bispo de Ruão a partir de 385.

[4] In CORDEIRO. José de Leão (Org). Antologia Litúrgica: Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canônicos do Primeiro Milênio. Fátima (PT), Secretariado Nacional de Liturgia, 2015. p 756

[5] Viagem de Ambrosio de Morales Por Orden Del Rey D. Phelipe II. A Los Reynos de Leon, Y Galicia, Y Principado De Asturias. Para reconhecer Las Reliquias de Santos, Sepulcros Reales, Y Libros manufcritos de las Cathedrales, Y Monafterios. Madrid: Antonio Marin, Año de 1765.

[6] CASTRO, João Bautista de Castro. Mappa de Portugal Antigo, e Moderno. Lisboa: Officina Patriarcal de Francifco Luiz Ameno. Tomo II. Parte III e IV, LXIII.


15 de Setembro de 2022

Como citar: NASCIMENTO, Renata Cristina de Sousa. A Sacralização Simbólica da Península Ibérica. Blog do POIEMA. Pelotas: 15 set. 2022. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/texto-a-sacralizacao-simbolica-da-peninsula-iberica/. Acesso em: data em que você acessou o artigo.