Texto: Ramon Llull e as Mulheres Medievais: Uma breve sistematização historiográfica

Guilherme Queiroz de Souza[1]

            Ao longo do século XX, as reinvindicações e conquistas de importantes direitos pelos movimentos feministas acabaram por influenciar decisivamente a produção historiográfica. Assim, a História das Mulheres surgiu como um novo campo de investigação, pois, como sabemos, toda história é “contemporânea”; ela “se relaciona sempre com a necessidade e a situação presentes” (CROCE, 1962, p. 14). Nos estudos medievais, esses avanços já eram percebidos em países como a França, onde foram realizados eventos acadêmicos em sintonia com aquelas demandas, como o colóquio La femme dans les civilisations des Xe-XIIIe siècles (1976).

            Nesse texto, apresentamos uma breve sistematização da historiografia que se dedicou exclusivamente à figura feminina no pensamento de um filósofo medieval: o maiorquino Ramon Llull (c. 1232-1316). Com uma enciclopédia e extensa obra, Llull escreveu em diversas línguas (catalão, árabe e latim), a fim de reformar o mundo e converter os “infiéis” ao cristianismo. Ele manteve contato com autoridades poderosas, percorrendo cenários euro-mediterrânicos ao longo de sua octogenária vida. Seus escritos em catalão utilizam variados vocábulos para designar as mulheres, como fembra, muller, dona, donzella e mare. No entanto, a visão de Llull sobre elas nem sempre expressa a tradicional concepção misógina da Igreja medieval, como veremos a seguir.

            O primeiro texto historiográfico que analisa as mulheres nas obras lulianas surgiu em 1981, na esteira daqueles movimentos sócio-políticos aos quais nos referimos. Quem o assina é Lola Badia, filóloga que, à época, iniciava sua carreira como pesquisadora em literatura catalã medieval. Nele, o foco está direcionado ao Romanç d’Evast e Blaquerna e aos dois modelos literários femininos ali expostos: Natana e Aloma. Tais personagens lulianos demonstram não apenas as virtudes necessárias, mas também dois tipos femininos inteligentes, com esperteza, tenacidade e bravura. Badia salienta que, “como um tipo de mulher medieval [elas] são, portanto, se não singulares, pelo menos notáveis” (1981, p. 28).

            Dois anos depois, o segundo texto foi publicado. Escrito em francês por Armand Llinarès (1916-1997), um dos maiores lulistas do século XX, a pesquisa se concentra no Blaquerna e no Livro da Contemplação. Nesta última, de longe a obra mais extensa do corpus luliano, existem confissões de Llull sobre sua vida antes da conversão, seus comportamentos luxuriosos e relações com as mulheres. Curiosamente, o filósofo não as culpa pelos pecados que praticou, pois pretende ele próprio se responsabilizar. Como Llinarès sublinha, se podemos encontrar traços misóginos nesses textos (a crítica ao cuidado feminino com a aparência, por exemplo), não existe uma uniformidade luliana no tratamento conferido às mulheres.

            Em 1986, veio à luz o terceiro artigo acerca da mulher no pensamento luliano. Trata-se de uma curta produção da espanhola Rosanna Cantavella, acadêmica que, naquele momento, escrevia uma tese de doutorado sobre El debat pro i antifeminista a la literatura catalana medieval. Ela inicialmente reconhece os esforços de seus dois predecessores (Badia e Llinarès), porém, destaca que deveríamos avançar; ora, muitas perguntas ficaram sem respostas, em razão do corpus luliano ser imenso (quase trezentas obras). Cantavella comenta as considerações sobretudo do historiador francês, quer para corroborar, quer para refutar suas interpretações. No último caso, discorda de certas “conclusões gerais” sobre os tipos femininos que Llull teria construído com seus personagens.

           Após o trabalho de Cantavella, constatamos uma lacuna historiográfica de quase duas décadas, sem que possamos localizar uma publicação que tratasse exclusivamente da condição feminina nos escritos de Llull. Esse “silêncio” foi quebrado por uma contribuição brasileira – refiro-me ao artigo de Eliane Ventorim (2005), com ênfase em três modelos no Livro das Maravilhas (Eva, Maria e Maria Madalena). Ainda que o exame de apenas um texto seja uma perspectiva metodológica deveras limitadora, porque não permite extrair conclusões gerais, o trabalho cumpre o seu objetivo e se torna o pioneiro na bibliografia em língua portuguesa.

            A partir de 2016, novos estudos foram lançados. Chama a atenção as iniciativas de uma pesquisadora em particular, Maribel Ripoll Perelló, cujas primeiras publicações sobre o assunto apareceram no contexto do Any Llull (2015-2016).[2] Docente da Universitat de les Illes Balears, a autora revisitou a bibliografia disponível e se debruçou com afinco em aspectos pouco explorados. Em argutas reflexões, constata que havia uma abordagem insuficiente do tema, que se preocupava apenas em indicar a aparição da figura feminina nos textos lulianos. Também salienta que, embora certos tópicos misóginos constem no pensamento de Llull (por exemplo, a mulher como fonte de tentação e inferior fisicamente), isso não quer dizer que ele fosse um típico representante daquela corrente eclesiástica.

            As investigações de Ripoll Perelló destacam a relação entre as mulheres e a chamada “Arte” luliana, uma ciência universal que teria sido enviada por Deus. Em artigos e entrevistas, suas conclusões demonstram que as mulheres nas obras de Llull tinham distintas origens sociais, com a capacidade de aprender a Arte e transmiti-la ao mundo, ou seja, elas não eram simples receptoras passivas. Com efeito, o sistema filosófico luliano (para ele, o “melhor livro do mundo”) não se limitava à conversão do “outro” (judeus e muçulmanos), pois destinava-se também à reforma da própria Christianitas. Em outras palavras, essa mensagem não excluía determinado povo, credo, grupo social ou gênero.

            A mais recente pesquisa de fôlego sobre a temática foi publicada em 2018. Ela foi escrita por Coral Cuadrada Majó, que identificou sete categorias de mulheres lulianas: literárias, familiares, dedicadas, protetoras, leitoras, devotas e beguinas. O foco principal de sua atenção está nessa última, a que menos havia sido analisada pela historiografia especializada. Seu ponto de partida é o Testamento de Llull, por meio do qual conseguiu mapear as mulheres que giravam em torno do ideal luliano, mesmo após a morte dele. Entre as beguinas que se relacionaram diretamente com as ideias do filósofo, estavam algumas do século XV: Inés Martines, Brígida Terrer e Margarita Safont.

              Numa visão em conjunto, notamos dois impulsos historiográficos principais sobre a figura feminina no pensamento luliano. O primeiro, publicado na década de 1980, nasceu influenciado pela emergência da História das Mulheres. Naquele momento, surgiram as primeiras reflexões, muitas das quais já apontavam a singularidade de Llull sobre a questão. O segundo, coincidentemente (?) sincronizado com o Any Llull, teve como principal divulgadora a professora Ripoll Perelló, que revisitou os estudos existentes, evitou generalizações e explicou aspectos até então negligenciados. Para isso, aproveitou o crescimento e amadurecimento dos estudos lulianos, além da publicação de várias edições críticas.

      Em suma, Ramon Llull constitui um caso atípico, que não pode ser enquadrado como mais um representante da misoginia clerical, até porque manteve uma posição laica durante toda a vida. Ele reflete a pluralidade e complexidade das experiências dos homens e mulheres do Medievo, universo que não se resume à cultura cristã, muito menos revela um domínio absoluto da Igreja. Não por acaso, a historiografia tem gradativamente abandonado as noções de “civilização” e “sociedade medieval”, o que também faz com que questionemos a existência de um “pensamento medieval”, algo homogêneo e uniforme, mesmo numa esfera cristã.

 

 Referências

BADIA, Lola. A propòsit dels models literaris lul·lians de la dona: Natana i Aloma. Estudi General. Revista del Col·legi Universitari de Girona, n. 1, vol. 2, p. 23-28, 1981.

CANTAVELLA, Rosanna. La dona als textos de Llull. Estudis Lul·lians, n. 1, vol. 26, p. 93-97, 1986.

CROCE, Benedetto. A História: pensamento e ação. Rio de Janeiro: Zahar, 1962.

CUADRADA MAJÓ, Coral. De mulierum relatione. Mujeres lulianas. Enrahonar: an international journal of theoretical and practical reason, Nº Extra 1, p. 287-298, 2018.

LLINARÈS, Armand. La femme chez Raymond Lulle. In: La femme dans la pensée espagnole. Paris: Éditions du CNRS, 1983, p. 23-37.

RIPOLL PERELLÓ, Maribel. De Clara a Natana: la influència franciscana en la creació dels models literaris femenins lul·lians. Estudios Franciscanos, vol. 117, p. 521-528, 2016.

RIPOLL PERELLÓ, Maribel. El microcosmos femení en la literatura lul·liana. In: BADIA, Lola; FIDORA, Alexander; RIPOLL PERELLÓ, Maribel (eds.). Actes del Congrés d’Obertura de l’Any Llull. “En el setè centenari de Ramon Llull: el projecte missional i la pervivència de la devoció”. Barcelona-Palma: UB-UIB, 2017, p. 233-251.

RIPOLL PERELLÓ, Maribel. El paper de la dona en la transmissió de l’Art lul·liana. In: MÜLLER, Isabel; SAVELSBERG, Frank (coords.). Sabers per als laics: vernacularització, formació, transmissió (Corona d’Aragó, 1250-1600). Berlin, Boston: De Gruyter, 2021, p. 107-122.

RIPOLL PERELLÓ, Maribel. Les dones de Llull són sàvies, astutes, perverses, delicades, bones. Levante-El Mercantil Valenciano (28/01/2017). Entrevista disponível em: https://www.levante-emv.com/cultura/panorama/2017/01/28/maribel-ripoll-perello-les-dones-12276300.html

RIPOLL PERELLÓ, Maribel. Llull creía en la capacidad intelectual de las mujeres. Diario de Mallorca (11/02/2016). Entrevista disponível em: https://www.diariodemallorca.es/cultura/2016/02/11/llull-creia-capacidad-intelectual-mujeres-3669079.html

RIPOLL PERELLÓ, Maribel. Sobre la formació femenina i el paper de la dona en la reforma social de Ramon Llull. Educació i Història: Revista d’Història de l’Educació, n. 28, p. 93-112, 2016.

VENTORIM, Eliane. Misoginia e Santidade na Baixa Idade Média: os três modelos femininos no Livro das Maravilhas (1289) de Ramon Llull. Mirabilia Journal, n. 5, p. 193-211, 2005.

[1] Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Assis). Professor Adjunto de História Medieval da Universidade Federal da Paraíba e do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH-UFPB). Coordenador do Gradalis: Grupo de Estudos Medievais (UFPB). E-mail: guilhermehistoria@yahoo.com.br. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/4229914435515514

[2] Trata-se de uma série de atividades em comemoração ao sétimo centenário da morte de Ramon Llull.


Publicado em 15 de Agosto de 2022.

 

Como citar: SOUZA. Guilherme Queiroz de. Ramon Llull e as Mulheres Medievais: Uma breve sistematização historiográfica. Blog do POIEMA. Pelotas: 15 ago. 2022. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/ramon-llull-e-as-mulheres-medievais-uma-breve-sistematizacao-historiografica/. Acesso em: data em que você acessou o artigo.