OS GRANDES CÚMPLICES: MEDIEVALISMO E NACIONALISMO

Escrito por Richard J. Utz[1]

Traduzido e adaptado por Luiz Guerra

Em 1877, sete anos após a anexação da Alsácia-Lorena, Guilherme II, Imperador da Alemanha, visitou Metz. Os funcionários do gabinete do prefeito, todos alemães, reuniram-se no telhado da Catedral de Santo Estêvão para celebrar a sua visita com uma queima de fogos de artifício. No processo, todo o telhado da catedral pegou fogo e uma reforma plurianual do edifício tornou-se necessária. Essa renovação incluiu não só a reconstrução da cobertura danificada, mas também uma grande redefinição do resto do edifício. Nessa época, a arquitetura neogótica havia se tornado o estilo preferido para construção e reconstrução representacional em todo o mundo ocidental.

Grupos nacionalistas alemães chegaram até a decidir (erroneamente) que a arquitetura gótica tinha sido inventada na Alemanha medieval, durante o domínio da dinastia Hohenstaufen no Sacro Império Romano (c. 1138-1254), e era, portanto, ideal para regermanizar regiões francesas recentemente anexadas. Consequentemente, a reforma da Catedral de Metz não só substituiu o telhado danificado, mas também trocou o portal ocidental neoclássico por um gótico. Para a estátua do profeta Daniel, o escultor usou como modelo o rosto do imperador Guilherme II. Pouco depois da Primeira Guerra Mundial, as mãos da estátua foram algemadas e um pergaminho com o texto Sic transit gloria mundi foi adicionado. Vários cartões postais foram criados desse momento, mas as algemas e a placa logo foram retiradas. Posteriormente, o bigode da escultura foi removido para minimizar a semelhança com o imperador.

Figura 1:  Uma das fotografias de Guilherme II que pode ter servido de modelo ao escultor, que acrescentou o imperador à fachada da Catedral de Metz.

Esse episódio na história da Catedral de Metz revela que muito do que vemos e sabemos sobre a cultura medieval hoje não se baseia em artefatos e textos medievais originais, mas em reconstruções, reimaginações e interpretações posteriores desses textos e artefatos. E a maioria destas acontece numa época em que as nações europeias entravam em uma corrida armamentista pela superioridade política, militar, económica e cultural que levaria a múltiplas altercações regionais e a duas guerras mundiais. Certas ideias falsas sobre o passado medieval tornaram-se um ponto de referência central para essas nações, à medida que se esforçavam para criar identidades nacionais distintas em apoio aos seus vários objetivos. A cultura medieval é cooptada como um “passado útil” e posta a servir as ideologias nacionais.

Castelos e catedrais, alguns dos vestígios mais visíveis da Idade Média, estão entre os locais mais populares para a criação e sustentação do orgulho nacional. Tal qual a Catedral de Metz, Guilherme II mandou restaurar as ruínas do castelo de Hohkönigsburg como uma lembrança das origens da região da Alsácia na história alemã, e ordenou uma restauração semelhante para o Marienburg (Castelo de Malbork) na Prússia Ocidental, para homenagear a memória dos Cavaleiros Teutônicos medievais, e proteger a reivindicação histórica da Alemanha a uma região também contestada pela Polônia.

Se Guilherme II tentou construir o seu próprio império alemão como um segundo Reich que reviveu o original, ou primeiro Reich, de Frederico Barbarossa, Adolf Hitler e os Nacional-Socialistas usaram das mesmas “raízes medievais” para as suas próprias reivindicações de poder no seu chamado Terceiro Reich. No início da década de 1930, a restaurada Marienburg foi transformada em destino de peregrinação anual da Juventude Hitlerista e da Liga das Moças Alemãs. Além disso, Marienburg serviu de modelo para os Castelos da Ordem Nacional Socialista, escolas especiaisreservadas à educação do alto escalão da elite nazista, erguidas em formato de castelos para sustentar a impressão de uma ligação a um vago passado glorioso

Figura 2:  A restauração de Hohkönigsburg entre 1901 e 1908 – Wikimedia Commons

Em meados do século XIX, a Catedral de Colônia passou a representar as esperanças e os sonhos da burguesia alemã, cujos membros viam no seu estado inacabado um símbolo adequado da sempre inacabada nação alemã. A construção estava paralisada desde meados de 1560, com uma grande grua de madeira deixada em pé cerca de 56 metros acima do solo, no topo da torre sul. Ideias emergentes sobre a preservação histórica, combinadas com um poderoso fervor nacional, levaram ao Festival de Construção de Catedrais (Dombaufest) de 1842, um evento que também uniu o patriotismo regional, a religiosidade católica, o desejo de reconciliação pacífica entre a Igreja e o Estado, planos para integrar a Renânia na Prússia, o entusiasmo burguês pelas artes e o entusiasmo romântico pela história.

As ideias recorrentes de Deus, Cultura/Arte e Pátria eram vistas como tendo a sua exemplificação mais magistral na Catedral de Colônia, porque ela ofereceria um testemunho notável da grandeza medieval alemã e, portanto, do carácter nacional alemão. E, porque o esforço supra-regional para reparar e finalizar a sua construção deveria igualar os enormes esforços políticos supra-regionais necessários para forjar e aperfeiçoar a nova nação alemã. A catedral medieval, concluída nos tempos contemporâneos, tornou-se um monumento sonhado deliberadamente para o futuro e um importante e glorificante memorial secular de um passado imaginado.

Figura 3:  Catedral de Colônia em 4 de setembro de 1842, cerimônia da pedra fundamental para o reinício das obras – ilustração de Georg Osterwald

Na França, os arquitetos Ludovic Vitet (1802-1873) e Eugene Viollet-le-Duc (1814-1879) acrescentaram outras leituras nacionais politicamente aceitáveis das catedrais. Com a intenção de demonstrar sua relevância e a necessidade da sua conclusão e restauração, alegaram que a construção de catedrais tinha sido uma forma de protesto contra o sistema feudal medieval. Ademais, consciente dos sinais de seu tempo, Viollet-le-Duc, num influente artigo para o Dictionnaire raisonnée de l’architecture française (1866), ansiava por confirmar o enraizamento das catedrais francesas no percurso histórico da sua nação:

A unidade monárquica e religiosa, aliança das duas potências para constituir uma só nacionalidade provocou o crescimento das grandes catedrais no norte da França. Embora as catedrais sejam certamente também monumentos religiosos, são sobretudo edifícios nacionais da nacionalidade francesa, a primeira e mais poderosa tentativa de unidade.

Esses e outros argumentos semelhantes tornaram possível dotar a catedral medieval de todos aqueles valores, liberdade de pensamento, espírito secular e nacionalidade, que a burguesia liberal, bem como os intelectuais anticlericais, foram capazes de aceitar. Assim, na segunda metade do século XIX, não só a maioria das catedrais francesas foram restauradas, como em Nantes, Limoges, Moulins, mas também foram construídas novas catedrais, como em Gap, Digne e Marselha, frequentemente em estilo neogótico. A maioria dos visitantes das catedrais restauradas ou recém-construídas assume, erroneamente, que os edifícios constituem um testemunho autêntico do passado medieval. Mesmo que os arquitetos e os cientistas tenham feito o seu melhor para basear o seu trabalho no que sabiam sobre a construção medieval, os resultados são necessariamente reimaginações modernas.

Isto tornou-se ainda mais evidente após o incêndio de 2019 em Notre Dame de Paris, a catedral medieval francesa amplamente utilizada como memorial para cerimonias nacionais seculares, como por exemplo o funeral do General DeGaulle em 1970. A questão de como reconstruir o edifício gravemente danificado evoluiu para uma discussão a nível nacional. No final, os proponentes do plano para reconstruir fielmente a versão do século XIX restaurada por Viollet-le-Duc (incluindo a sua torre redesenhada) venceram os planos que visavam uma versão medieval tardia ou uma versão que acrescentasse elementos arquitetônicos contemporâneos. O Senado francês determinou que a reconstrução fosse fiel ao seu “último estado visual conhecido”, e Philippe Villeneuve, o arquiteto-chefe da catedral, até ameaçou pedir demissão se Notre-Dame não fosse reconstruída da forma como Viollet-le-Duc a tinha concebido. O ambicioso objetivo do presidente francês Emmanuel Macron de restaurar a catedral até os Jogos Olímpicos de Paris em 2024 acrescente ainda mais uma prova da importância contemporânea do passado medieval para promover as aspirações políticas nacionais.

Pode o prestígio da catedral medieval atravessar o Atlântico e funcionar com sucesso em uma nação predominantemente protestante? A Catedral Nacional de Washington, que levou apenas um pouco menos de tempo para ser construída (83 anos) do que algumas de suas predecessoras medievais, deveria fornecer exatamente essa função secular unificadora para os Estados Unidos da América. George Washington (1732-1799) e Pierre ‘Peter’ Charles L’Enfant (1754-1825), um engenheiro militar franco-americano, foram os primeiros a propor a construção de uma ‘grande igreja para fins nacionais’ nos primeiros dias da república. Mais de 100 anos depois, foi iniciada a construção de uma igreja que no estilo gótico inglês do século XIV, mas acrescentando características americanas únicas. Ela representa as importantes ligações históricas com o passado medieval da Grã-Bretanha, mas também celebra o caminho pós-colonial próprio e independente da nação: A “janela espacial” comemora o pouso dos astronautas norte-americanos na Lua com a Apollo 11; inúmeras estátuas e vitrais mostram nomes como Thomas Jefferson, Martin Luther King, Abraham Lincoln, Rosa Parks, Eleanor Roosevelt e George Washington; e entre as 112 gárgulas há representações da vida cotidiana nos Estados Unidos: uma jovem com um aparelho odontológico, um pacifista com máscara de gás, um empresário Yuppie, um neto travesso que acabou de tirar um biscoito de um pote de biscoitos e, claro, a máscara de Darth Vader dos filmes Star Wars. Assim, embora seja oficialmente uma igreja episcopal, as muitas características seculares da catedral indicam a sua função como casa de oração nacional para todos os cidadãos da nação. Não é de surpreender que seja o local de serviços funerários e memoriais de quase todos os presidentes dos EUA desde 1893, bem como de serviços memoriais para as vítimas dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001.

Tal como as catedrais e castelos medievais ou medievalizados serviram para ajudar os indivíduos a imaginarem-se como parte de uma comunidade nacional, o mesmo acontece com as obras literárias. Na sua busca por tais narrativas fundadoras, as nações modernas e seus líderes intelectuais têm frequentemente vasculhado épicos medievais em busca de heróis fictícios para determinar traços de carácter e valores presumivelmente únicos de uma nação específica. Uma vez imaginado que um épico medieval representa a nação, ele é incluído no cânone dos textos ensinados nas universidades e nas escolas.

Na França, A Canção de Rolando, a mais antiga obra literária sobrevivente da França medieval, foi elevada a se tornar o épico nacional da França. É uma representação fictícia da Batalha de Roncevaux Pass (778), durante o reinado de Carlos Magno. O texto medieval tornou-se prestigioso o suficiente para ser editado por Joseph Bédier (1864-1938), professor do Collège de France, como parte de um passional trabalho patriótico para combater a influência autoritária dos concorrentes transrenos no estudo da literatura francesa. Bédier chegaria ao ponto de coletar e interpretar os diários de soldados alemães para provar a depravação moral do inimigo. Os oficiais durante a Primeira Guerra Mundial liam trechos particularmente heroicos de épicos medievais antes de enviar seus soldados para a batalha, e os discursos políticos abundavam com comparações entre soldados modernos e cavaleiros medievais.

Já na segunda metade do século XIX, acadêmicos britânicos, dinamarqueses e alemães se envolveram em uma corrida cultural sobre qual nação poderia reivindicar o épico do século IX, Beowulf. Transmitida em um único manuscrito, a narrativa se passa na Escandinávia medieval, escrita em inglês antigo, e suas características de gênero seguiam a tradição das lendas heroicas germânicas. O peso de reivindicar o texto medieval inicial era tal que o primeiro chanceler da Alemanha imperial, Otto von Bismarck (1815-1898) se envolveu pessoalmente: Para a primeira cadeira de filologia inglesa na Reichsuniversität na ocupada Estrasburgo, ele apoiou um especialista em Beowulf, Bernhard ten Brink (1841-1892), cujo trabalho sobre o inglês antigo, uma língua germânica, deveria ajudar a impulsionar a germanização da Alsácia-Lorena. O governo alemão deu um passo adiante ao nomear um de seus novos navios de defesa costeira em homenagem ao herói do épico medieval em 1915. O SMS Beowulf fazia parte da classe Siegfried de seis navios, em homenagem ao herói fictício do épico nacional alemão, o Nibelungenlied do alto alemão médio (c. 1200), que também inspirou o ciclo operístico Der Ring des Nibelungen de Richard Wagner (escrito entre 1848 e 1874). Embora a recepção nacionalista do Nibelungenlied tenha começado logo após as Guerras Napoleônicas e continue até hoje, os nacional-socialistas prestaram especial atenção a ele. O marechal imperial (Reichsmarschall) de Hitler, Hermann Göring, por exemplo, comparou o sacrifício dos heróis, que desafia a morte, no final do épico medieval, ao sacrifício dos exércitos alemães em Stalingrado. O próprio Hitler, apaixonado por se imaginar como a reencarnação do governante medieval, chamava Göring de seu “paladino” (o título usado em romances de cavalaria medieval para um dos principais cavaleiros que cercavam e protegiam o rei) e fez-se pintar como um cavaleiro teutônico medieval pelo artista Hubert Lanzinger (Der Bannerträger, 1936).

Figura 4:  SMS Beowulf – Bundesarchiv, Bild 146-2008-0173 / Renard, Arthur / CC-BY-SA 3.0

Um dos padrões mais comuns de utilização do passado medieval é ligar e legitimar características nacionais modernas com figuras heroicas medievais famosas, tanto reais como fictícias. Um dos pais fundadores dos Estados Unidos, Thomas Jefferson, por exemplo, imaginou que os princípios políticos e jurídicos e a forma de governo da nova nação tinham origem na lei saxônica, trazida para as Ilhas Britânicas pelas tribos germânicas que cruzaram o Canal da Mancha entre séculos V e XII, e não pelo sistema feudal estabelecido pelos normandos depois de 1066. Ansioso por reforçar a ideia da independência americana e da retidão da Revolução Americana, ele sustentou que, em virtude dessa lei saxônica, os colonos do continente americano eram súditos da coroa britânica apenas por consentimento, e que o rei George III não detinha o título da terra. Para visualizar e ancorar essa convicção, Jefferson propôs que o selo oficial dos Estados Unidos mostrasse os irmãos Hengist e Horsa, dois líderes saxões que, segundo a lenda, estiveram entre os primeiros guerreiros germânicos a chegar à ilha.

Figura 5:  Selo (rejeitado) de Jefferson dos Estados Unidos, mostrando Hengist e Horsa

Poucas figuras medievais encontraram tantas aplicações nacionalistas como o mitográfico Rei Arthur. Winston Churchill, em O Nascimento da Grã-Bretanha (1956), comparou o valente espírito de luta das tropas britânicas em sua batalha contra a Alemanha nazista aos feitos de batalha de Arthur e seus cavaleiros. Ignorando deliberadamente a ausência de provas científicas da existência de um Artur histórico, ele transformou-o numa prefiguração do seu próprio papel de liderança heroica e do de seus generais durante a Segunda Guerra Mundial, criando uma continuidade linear entre a Inglaterra do início da Idade Média e a sua própria Grã-Bretanha contemporânea.

O presidente dos EUA, John F. Kennedy (1917-1963), cresceu em uma cultura anglo-americana impregnada de histórias a respeito do Rei Arthur. Após seu assassinato, sua esposa, Jaqueline, e a mídia dos EUA exaltaram sua presidência de apenas 1.000 dias com base no musical da Broadway favorito de Kennedy: Camelot (1960), que celebra a história de Arthur como um momento brilhante durante o qual, toda a nação é levada a crer, a bondade e a justiça reinavam supremas. Os estadunidenses, chocados e desanimados com o assassinato do presidente, abraçaram avidamente a ficção nostálgica de que o seu jovem e enérgico líder tinha sido uma reencarnação moderna do lendário governante medieval.

Embora se possa supor que o advento da União Europeia teria levado a uma diminuição da utilização nacionalista de um passado medieval imaginado na segunda metade do século XX, o oposto parece ser o caso. Por um lado, as altercações sobre reivindicar “Carolus Magnus” como antepassado da França ou da Alemanha diminuíram e foram substituídas pela noção razoável e realista de que o rei franco “pertence” a numerosas nações e regiões europeias modernas; por outro lado, a mudança da autoridade econômica e social de Estados-nação individuais para uma associação multinacional de mais de 20 países reavivou movimentos de independência etnonacionalistas em algumas regiões e movimentos neonacionalistas anti-europeus em outras.

O lançamento do filme hollywoodiano Coração Valente, de Mel Gibson, em 1995, por exemplo, despertou o entusiasmo escocês pela independência do Reino Unido. O blockbuster, que ganhou cinco Oscars, incluindo o de Melhor Filme, conta a dramática história de William Wallace, um líder escocês que resiste à dominação inglesa no final do século XIII. Embora repleto de imprecisões históricas, o filme medieval lembrou ao público escocês uma época heroica pré-colonial, quando não estavam sob o domínio inglês. Fato é que políticos nacionalistas usaram a descrição negativa que o filme faz dos ingleses para explorar a crescente anglofobia entre muitos escoceses no final do século XX e consideraram o foco da União Europeia nas regiões em vez das nações como uma alavanca útil para livrar-se do Jugo inglês. O anseio nostálgico por uma Escócia pré-moderna independente também desempenhou um papel importante quando 62% dos eleitores escoceses votaram contra o Brexit em 2019.

Na Inglaterra, onde a maioria dos eleitores votou a favor do Brexit, Tommy Robinson e os membros da sua ultranacionalista e branca English Defense League fetichizam o “inglesismo”, simbolizado na bandeira de São Jorge, o santo padroeiro da Inglaterra no século IV. E rejeitam a Union Jack, bandeira britânica pós-medieval que inclui Inglaterra, Escócia, País de Gales e, por extensão, outros.

Na França, um país que apoia fortemente a União Europeia, o movimento de direita Frente Nacional, rebatizado como Rassemblement National em 2018, tem resistido à cessão da soberania nacional por parte do país a órgãos governamentais europeus supranacionais. Propagando o catolicismo conservador, os papéis tradicionais de gênero e o etnonacionalismo xenófobo, os líderes do partido expressaram publicamente uma forte afinidade com Joana D’Arc, na posição uma antepassada medieval francesa que defendeu a nação contra a invasão estrangeira (inglesa), exemplificou a feminilidade tradicional (virgem) e morreu pela sua fé cristã.

O passado medieval foi reinventado por inúmeras causas benignas e louváveis nas artes, cultura, música, política e religião. Essa maleabilidade fascinante desse passado, facilitada pelas centenas de anos que dele nos separam, faz com que pareça um significante quase vazio que pode ser aplicado a quase todos os propósitos. Apesar dos esforços de gerações de acadêmicos para evitar apropriações e falsificações presentistas irresponsáveis, a grande maioria das reimaginações nacionalistas da cultura medieval nos tempos modernos tem estado a serviço de ideologias autocráticas, totalitárias, antissemitas, homofóbicas, racistas e xenófobas.

Embora essas tendências tenham se tornado visíveis em numerosos países, as suas manifestações recentes mais flagrantes existem na Rússia de Vladimir Putin e no Brasil de Jair Bolsonaro. Putin, como demonstrou Dina Khapaeva, apoia abertamente o ultranacionalista Partido Eurásia, um movimento político liderado pelo místico pró-fascista Alexander Dugin. Dugin e os seus seguidores esforçam-se por reviver Ivan, o Terrível, como o que consideram a melhor encarnação de uma autêntica tradição russa, nomeadamente a monarquia autoritária. O “eurasianismo” enquanto ideologia defende ativamente a adoção de uma nova Idade Média, na qual os últimos resquícios da democracia russa sejam substituídos por um poderoso autocrata. Os eurasianistas esperam pelo regresso daquilo que imaginam ser uma ordem social medieval dentro da qual o império russo de Ivan será restaurado, a Igreja Ortodoxa assumirá o controle da cultura e da educação e a escravatura se tornaria uma característica aceitável da sociedade. Como resultado visível da aliança entre Putin e os eurasianistas, várias estátuas de Ivan, o Terrível, foram erguidas nos últimos anos, e houve uma proposta de renomear a Avenida Lenin em Moscow para Rodovia Ivan, o Terrível. Numa negação completa dos fatos históricos, Putin chegou a afirmar que Ivan, o Terrível, nunca matou ninguém.

No Brasil durante o governo de Jair Bolsonaro, grupos de extrema direita promoveram uma versão igualmente simplificada da Idade Média para justificar a sua agenda. No geral, eles querem definir seu país como a realização triunfante de um Portugal medieval branco, patriarcal e cristão, tornando assim os brasileiros brancos os verdadeiros herdeiros de um imaginado passado medieval português glorioso. Isso também permite que se oponham à democracia secular moderna e à igualdade de gênero em favor do patriarcado, da homofobia, da misoginia, da intolerância religiosa e do racismo, todos propagados em discursos políticos e nas redes sociais. Um documentário islamofóbico particularmente vil, que defende esse tipo de Brasil, é “Brasil: A Última Cruzada”, centrado na conquista árabe da Península Ibérica e nas Cruzadas, celebrando o suposto o papel dos Cavaleiros Templários na história de Portugal, incluindo a Reconquista e a expansão marítima.

Se, durante o século XIX e a maior parte do século XX, as reimaginações isolacionistas e nacionalistas da Idade Média eram na maioria das vezes separadas e independentes, o advento da Internet tornou-as globalmente conectadas. A colaboração transnacional dos seus proponentes e o abuso insidioso da liberdade comunicativa proporcionada pelas novas tecnologias, especialmente pelas redes sociais, permitiram que o nacionalismo medievalista de extrema direita se tornasse um fenômeno mundial – ao ponto de ideias e ideais de uma localidade serem emulados e reciclados em outros lugares como fontes para autenticar e reforçar discursos. Portanto, não é surpreendente que os medievalismos de Bolsonaro e Putin partilhem numerosas conectividades diretas e indiretas com aqueles empregados por Matteo Salvini, da Itália, Richard Spencer, Steve Bannon e Donald Trump, dos Estados Unidos da América, e Viktor Orbán, da Hungria.

Para comunicar com sucesso os seus objetivos, medievalizando nacionalistas, através de blogs, Facebook, Twitter, Instagram, TikTok etc., primeiro eles desconectam quaisquer afirmações que gostariam de fazer dos acontecimentos, textos e artefatos reais do passado que gostariam de se apropriar. Uma vez desconectados de qualquer realidade histórica protetora, essas afirmações podem ser incessantemente reaproveitadas e repetidas em tropos e memes da Idade Média, incluindo aqueles que apoiam posições políticas completamente alheias a tudo o que sabemos sobre a cultura medieval. Como Andrew B.R. Elliot explica em seu estudo de 2017, Medievalismo, Política e Mídias de Massa, que a onipresença esmagadora dessas imaginações falsas da cultura medieval as torna praticamente imunes à crítica acadêmica e à retificação científica. Somente um grande e concertado esforço jurídico e educativo para proteger os fatos da mitografia poderá ser capaz de conter as mais vis e deletérias campanhas políticas de desinformação.

[1]Originalmente publicado em https://www.medievalists.net/2022/01/medievalism-and-nationalism/.


Publicado em 01 de Maio de 2025.

Como citar: UTZ, Richard. Os Grandes Cúmplices: Medievalismo e Nacionalismo. Tradução: Luiz Guerra. Blog do POIEMA. Pelotas: 01 mai. 2025. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/os-grandes-cumplices-medievalismo-e-nacionalismo Acesso em: data em que você acessou o artigo.