O NEOMEDIEVALISMO É A-HISTÓRICO? CONSIDERAÇÕES SOBRE O “IMPENSÁVEL” NA NARRATIVA HISTÓRICA EUROCÊNTRICA

Marcelo Santiago Berriel[1]

              Qualquer estudioso do chamado medievalismo, cedo ou tarde (espera-se que seja cedo), irá se deparar com o debate acerca dos termos. Também irá se ver confuso quando descobrir que, além do termo medievalismo, há quem use o termo neomedievalismo. A situação se complica ainda mais pelo seguinte: 1) nem todos os autores usam o termo neomedievalismo, preferindo abarcar os usos do passado medieval somente com o termo medievalismo; 2) Dentre os que distinguem neomedievalismo de medievalismo, nem todos estão em acordo sobre a definição dos termos.

              Considerando que são muitas as recriações do passado medieval passíveis de serem estudadas no campo do medievalismo, é compreensível nos sentirmos compelidos a tentar solucionar nossos impasses conceituais jogando tudo embaixo de um grande “termo guarda-chuva” . Deste modo, nos desobrigaríamos de adotar o termo neomedievalismo e as implicações que o acompanham. Porém, ao invés de tentar abarcar todas as recriações/apropriações do passado medieval em um único campo (consequentemente, um único termo), cabe questionar quais são as especificidades envolvidas naquilo que comumente se chama neomedievalismo.

              Antes de tudo, tal como nos alertam Altschul e Grzybowski (GRZYBOWSKI & ALTSCHUL, 2020), devemos considerar que é inerente à noção inicial de medievalismo (desde o tempo de Leslie Workman, o precursor do medievalismo como campo de estudo) a concepção de que existiu uma Idade Média histórica, passível de ser recriada, reutilizada ou imitada após o seu término; em outras palavras, o medievalismo pressupõe a recriação ou reconstituição de algo proveniente do tempo histórico que denominamos Idade Média. Em relação ao termo neomedieval, costuma-se incluir no seu âmbito as ressignificações e apropriações mais livres, menos comprometidas com a reconstituição histórica. Antes de qualquer tomada de posição, vale questionar se essa distinção – que, convenhamos, soa como algo reducionista – é suficiente diante da inegável pluralidade das ressignificações e recriações inspiradas na Idade Média.

            Essa concepção de neomedievalismo, embora não seja consensual, figura nas linhas da maioria dos textos dos especialistas. Independente da adoção ou não do termo, quase toda explicação gira em torno de uma questão que considero complicada: a a-historicidade do neomedievalismo. Segundo Clements e Robinson, “o neomedievalismo é ainda mais independente, mais separado e, portanto, conscientemente, propositadamente e, talvez, risonhamente remodelado em um universo alternativo de medievalismos, uma fantasia de medievalismos, um meta-medievalismo” (CLEMENTS & ROBINSON apud KAUFMAN, 2010 p. 1). Baseando-se nessa definição, Amy Kaufman complementa afirmando que o neomedievalismo, diferentemente do medievalismo, carrega como característica fundamental o fato de ser a-histórico.  É preciso, contudo, deter-se um pouco sobre a concepção de historicidade em jogo.

            Considera-se o neomedievalismo a-histórico porque ele nega a linha narrativa que divide a história em idades, criando assim um “universo alternativo de medievalismos” ou porque, ao fazê-lo, nega uma Idade Média que findou para dar lugar a algo novo, algo moderno? Tal rótulo só lhe é devido porque menospreza o advento da modernidade? Visto isso, pergunto: só se reconhece historicidade na versão de história universal defendida pelo Norte Global? O “meta-medievalismo” do neomedievalismo é somente uma fantasia sem fidelidade histórica ou ele é, ao contrário, a provocação que rompe com uma versão euro-referenciada e suas pretensões universalizantes?

            É interessante notar que, ao reconhecer o vínculo do neomedievalismo com a história, Kaufman o faz com o intuito de defender o status de “subconjunto” do neomedievalismo em relação ao campo do medievalismo. Em outras palavras, a autora objetiva convencer seus leitores acerca do vínculo do neomedievalismo com o medievalismo, por isso que, para ela, o neomedievalismo não pode negar sua contingência histórica: “enquanto o medievalismo pode existir perfeitamente de forma independente em qualquer ponto da linha do tempo, o neomedievalismo, apesar de sua aparente a-historicidade, é historicamente dependente do medievalismo em si e da condição pós-moderna” (KAUFMAN, 2010, p. 2). A historicidade do neomedievalismo, entretanto, pode ser justificada por outros caminhos além desse. Sim, o neomedievalismo depende tanto do medievalismo quanto do pós-modernismo. Mas, a meu ver, isso é reconhecer historicidade no campo de estudos do neomedievalismo, no seu nascimento como área do saber, o que não toca na questão das apropriações chamadas de neomedievais (o objeto de estudo daquela área do saber). Elas são ou não a-históricas?

            As apropriações neomedievais também são históricas porque redefinem o que é historicidade (ou nos fazem retornar ao que, de fato, deveria ser considerado historicidade). O neomedievalismo brinca com as noções de sincronia e diacronia e, ao mesmo tempo, satiriza os cânones definidores do que é “medieval”. É nesse ponto que ele guarda o potencial de nos fazer enxergar a debilidade das certezas construídas a partir do paradigma euro-referenciado.

      Ainda usando Kaufman como exemplo, vejamos como ela faz questão de marcar uma posição, sublinhando em qual aspecto sua própria definição de neomedievalismo se afasta daquela de Clements e Robinson na qual baseou sua explicação.

Em sua definição de neomedievalismo, Robinson e Clements argumentam que “medieval” equivale simplesmente a “outro”. No entanto, parece provável que esta versão refratada da Idade Média não seja necessariamente o outro, mas sim o eu. O neomedievalismo não está tão interessado em criar ou recriar a Idade Média, mas sim em assimilá-la e consumi-la. O perigo da assimilação, claro, é que a essência e a beleza da diferença podem ser perdidas. (KAUFMAN, 2010, p. 5)

            É certo que, enquanto o medievalismo cria ou recria a Idade Média, o neomedievalismo a assimila e consome. Mas a relação do neomedievalismo com o que chamamos de Idade Média vai além disso. O neomedievalismo pode lançar mão de elementos considerados “medievais” para transmitir uma ideia específica, uma ideologia ou uma atitude transgressora – e isso é muito mais complexo do que assimilar ou consumir. O que transgride algo redefine a coisa transgredida. É aqui que entra em cena a perspectiva decolonial que podemos enxergar no neomedievalismo latino-americano. Se onde há recriação do passado medieval, há medievalismo e onde há assimilação desse passado, há neomedievalismo, podemos dizer que onde há “re-existência” (MIGNOLO & WALSH, 2018) da Idade Média, há um tipo específico de neomedievalismo (a enorme variedade de ressignificações do neomedievalismo pode gerar diferentes re-existências). A re-existência em questão é aquela que ressignifica o legado de uma Idade Média europeia (a que se pretende “histórica”, cujos traços presentes na América são costumeiramente justificados pela colonização) e o redefine, tornando-o seu oposto: uma marca identitária dos colonizados. No campo das re-existências, geralmente o que se busca é a construção de uma referência familiar, identificável, na qual é possível reconhecer-se. Kaufman acerta ao afirmar que não é “necessariamente o outro, mas sim o eu”, afinal, a visão de que a relação com o passado é uma relação com o “diferente”, “o outro”, parecer não ser suficiente nas discussões sobre o neomedievalismo. Porém, se considerarmos somente o ponto de vista dos colonizados, não há como enxergar – como Kaufman escreve – qualquer tipo de “perigo”, pois perder “a essência e a beleza da diferença” pouco importa. A beleza reside na tradição ressignificada para re-existir como identidade.

      As práticas típicas do “colonialismo do saber” alcançaram tamanho êxito que as narrativas e representações que dela se originaram tornaram-se intimamente entranhadas entre os intelectuais colonizados, a tal ponto que se faz urgente uma compreensão dos percursos pelos quais o saber eurocêntrico tornou-se o paradigma por excelência nas instituições do Sul global. Especificamente no que diz respeito à história – e esta ocupa um lugar emblemático nos paradigmas eruditos imputados à intelectualidade das ex-colônias – é preciso reconhecer o quão colonialista a noção de história mundial é. Como muito bem explicado por Ranajit Guha (GUHA, 2002), o que o paradigma euro-referenciado de narrativa histórica disfarça é a diferença existente entre historicidade e filosofia da história. Guja demonstra que, a partir da filosofia da história de Hegel, perde-se toda a concretude do que foi vivido pelas sociedades do passado substituindo-a pela ideia de “razão na história”; criando, portanto, uma imediata identificação que associa o “histórico” ao que se encontra dentro do percurso do chamado “progresso”. Baseando-se no postulado de Marx de que as entidades são esvaziadas de sua existência real e transformadas em um conceito filosófico – “a real existência da religião, do Estado, da natureza, da arte, é a filosofia da religião, da natureza, do Estado e da arte” (MARX apud Guha, 2002, p. 3) – Guja conclui que, por uma operação similar, historicidade se transforma em filosofia da história e sua definição por excelência passa a ser a versão de história mundial criada pelo saber europeu. “Historicidade como a real existência do homem no mundo é convertida, por substituição, em filosofia da história e a concretude do passado humano rende-se ao conceito de História Mundial” (GUHA, 2002, p. 3). Isto pode ajudar a entender a insistência em identificar o neomedievalismo como a-histórico.

            A abordagem anti-colonial de Guha baseia-se no que ele chama de “limite da história mundial”. Ao contrário do que se possa pensar, o conceito de limite não diz respeito ao que está além das fronteiras da história euro-referenciada. Segundo Guha, “devemos tentar pensar a História Mundial em termos do que é impensável dentro seus limites” (GUHA, 2002, p. 7–8). Parte-se, assim, de certas noções fundamentais para refletir acerca dos problemas da história mundial no interior daquilo que ela pretensamente abarca. Uma delas é a noção de “povos sem história”. Ao criar a noção de que povos sem escrita são povos sem história, o saber europeu empurrou os povos originários para além das margens da civilização, legitimando a conquista geográfica e o genocídio não somente de corpos, mas também das epistemes desses povos. E se avançarmos no tempo e olharmos, não mais para os saberes violentamente calados dos povos originários, mas para as criações culturais de grupos subalternos no contexto pós-colonial, tal como o uso do passado medieval feito pelos latino-americanos?

        Como não recria conscientemente um tempo histórico que terminou, mas insiste em viver nele ignorando a cronologia e os marcos (portanto, o “progresso” europeu), o neomedievalismo latino-americano é, de certa forma, um incômodo para a historiografia tradicional de base eurocêntrica. Não por acaso, muitos autores costumam amplificar alguns de seus detalhes em detrimento de outras características mais relevantes. Exemplo: ao invés de se atentar para o estudo das intencionalidades, interesses e ideologias subjacentes às representações neomedievais, os detratores riem dos elementos fantasiosos ou vêem somente os abusos das simplificações.

            Historicidade não deve ser definida pela posição que determinado objeto ocupa na linha narrativa da “história mundial”, mas pela existência concreta desse objeto em determinado tempo e lugar. O neomedievalismo não é a-histórico, pois ele também está assentado em determinada concretude, em algo vivido que, portanto, pode não apenas ser explicado historicamente, mas também reivindicar um tipo específico de historicidade. Ele desconstrói, provoca e desafia essa narrativa construída pela historiografia ocidental que foi elevada ao patamar de História propriamente dita, o padrão, a referência que se auto-determinou como “mundial”. E a sentença para o crime de subverter a linha do tempo que separa a história mundial em idades não poderia ser outra: não é fidedigno, mas fantasioso, não cria nem recria, mas assimila, está, enfim, fora da História. Um fazer histórico que se proclama decolonial ou anti-colonial não deveria compactuar com tal sentença.

          O neomedievalismo consiste em algo “impensável” dentro dos próprios limites da história mundial. Sobretudo no caso dos neomedievalismos ibero-americanos, ignora-se sua originalidade e sua concretude, reduzindo-os a meras imitações a-históricas ou – como se repete quase religiosamente nas pesquisas brasileiras – limitando-os a heranças de um passado europeu. Assim, são trazidos aos limites do reconhecível, do pensável, da narrativa tradicionalmente aceita, incapaz de conceber um medieval não-europeu. Porém, se existe um neomedievalismo nas sociedades colonizadas e se ele reflete uma historicidade independente da que foi imposta pela narrativa da colonialidade, é porque consiste em algo que confunde os limites do pensável na história mundial. Deve, portanto, ser estudado e compreendido como um fenômeno capaz de responder muito mais do que aparenta à primeira vista.

BIBLIOGRAFIA

ALTSCHUL, Nadia & GRZYBOWSKI Lukas. “Em Busca Dos Dragões: A Idade Média No Brasil.” Antíteses, vol. 13, no. 26, Dec. 2020, p. 24–35.

BERRIEL, Marcelo. “Pour Un Autre Moyen Age Au Brésil: A Perspectiva Decolonial Na Busca de Uma Episteme Para a Compreensão Dos Medievalismos Brasileiros.” Antíteses, vol. 13, no. 26, Dec. 2020, p. 68–96.

CASTRO, Eduardo. A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia. Editora Cosac Naify, 2014.

DAGENAIS, John & GREER Margaret. “Decolonizing the Middle Ages: Introduction.” Journal of Medieval and Early Modern Studies, vol. 30, no. 3, 1 Oct. 2000, p. 431–448.

GUHA, Ranajit. History at the Limit of World-History. New York, Columbia University Press, 2002.

KAUFMAN, Amy. “Medieval Unmoored.” Studies in Medievalism, no. XIX: Defining Neomedievalism(s), 2010, p. 1-11.

MATTHEWS, David. Medievalism : A Critical History. Cambridge, D.S. Brewer, 2017.

MIGNOLO, Walter & WALSH, Catherine. On Decoloniality: Concepts, Analytics, Praxis. Durham, Duke University Press, 2018.

ROSA, Maria. Fazer e Pensar a História Medieval Hoje. Imprensa da Universidade de Coimbra / Coimbra University Press, 2017.

VEYNE, Paul. O Inventário das Diferenças: História E Sociologia. Brasília, Editora Brasiliense, 1983.

[1] Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor Associado de História Medieval da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (msberriel@ufrrj.br). Link do currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/9162651718729749


Publicado em 23 de Abril de 2024.

Como citar: BERRIEL, Marcelo Santiago. O Neomedievalismo É A-Histórico? Considerações Sobre O “Impensável” Na Narrativa Histórica Eurocêntrica. Blog do POIEMA. Pelotas: 23 abr. 2024. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/o-neomedievalismo-e-a-historico-consideracoes-sobre-o-impensavel-na-narrativa-historica-eurocentrica. Acesso em: data em que você acessou o artigo.