GINECOLOGIA E OBSTETRÍCIA PRÉ-MODERNA: TEORIA E PRÁTICA

Elaine Cristine dos Santos Pereira Farrell[1]

 

Quem e como realizavam os partos nas sociedades pré-modernas? Há muitas fontes documentais e imagens que nos fornecem informações sobre a prática da obstetrícia pré-moderna. Um dos estilos de produção textual mais ricos para este intuito são os tratados ginecológicos e obstétricos. Este tipo de literatura foi produzida deste a antiguidade até o renascimento, escrita, transmitida, copiada e traduzida em várias sociedades e línguas, desde o grego, latim, árabe, línguas vernáculas até as edições e traduções para as línguas modernas.

Um autor grego que produziu uma importante contribuição no campo da medicina ginecológica e obstétrica foi Sorano de Éfeso, que nasceu na segunda metade do século I d.C.. Ele estudou provavelmente em Alexandria, e exerceu medicina em Roma. Foi autor de dois tratados que obtiveram grande influência, As doenças das mulheres e Ginecologia. Dentro da tradição médica de Sorano, menstruação, atividades sexuais e gravidez eram percebidas como danosas às mulheres, opondo-se à tradição Hipocrática que julgava que estas eram vitais à saúde destas.

No século V d.C. um escritor do norte da África, Múscio, decidiu traduzir as obras de Sorano do grego para o latim. A principal justificativa apresentada foi o fato de que as parteiras não liam mais em grego, e que o material era excessivamente complexo para o nível de conhecimento que elas possuíam. A medicina, como campo de estudo teórico, era basicamente de acesso aos homens, porém, as mulheres atuavam na prática e geralmente eram elas que realizavam os partos e de fato tocavam os corpos das mulheres gestantes.

Múscio não foi o único tradutor das obras de Sorano, mas foi o mais conhecido e difundido. Ele diluiu o trabalho de Sorano em dois livros, um construído em formado de perguntas e respostas, com informações básicas sobre a anatomia dos corpos das mulheres, e outro discutindo as patologias obstétricas e ginecológicas.

Durante a Antiguidade Tardia e a Primeira Idade Média, o trabalho de Múscio passou a ser transmitido com ilustrações representando as diversas posições que um feto no útero poderia ocupar, como estas posições dificultam ou facilitam o parto e como as parteiras deveriam intervir a fim de viabilizar o nascimento. Pesquisadores concluíram que estas ilustrações foram produzidas com o intuito de tornarem os manuscritos ainda mais didáticos e compreensíveis às parteiras. A imagem abaixo é um dos exemplos mais difundidos.

Posição Fetal

[Figura 1. Posições Fetais no útero Disponível em:< https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Foetal_positions_BR_3701-15_28r.jpg?uselang=pt-br>. Acesso em 27 out. 2023]

Esta é uma imagem de um manuscrito do século XI, hoje conservado na Biblioteca da Bélgica, que detém os direitos de imagem (Disponível em: <https://opac.kbr.be/Library/doc/SYRACUSE/17018051>, acessada em 27 out. 2023). Um dado curioso destas representações é o fato de que os fetos eram representados como figuras adultas.

O índice de mortalidade de mulheres no parto no mundo antes da cirurgia cesariana deveria ser bastante alto, e cabe refletir que não é nula nos dias de hoje. A cesárea não era inexistente no mundo pré-moderno, mas ela era geralmente realizada apenas após o óbito materno, para salvar o feto vivo, quando possível.

 Evidências arqueológicas têm apontado dados sobre os partos em sociedades pré-modernas, que nos permitem refletir, inclusive, sobre as emoções vinculadas à morte e a perda de mulheres em idade fértil e/ou de seus respectivos fetos ou recém-nascidos.

Durante a Primeira Idade Média o conhecimento médico foi difundido de forma difusa. Pouco sabemos sobre o treinamento prático das parteiras, mas muito provavelmente este se dava por meio do conhecimento oral e de forma local. O conhecimento formal, escrito, foi preservado, copiado e armazenado sobretudo em bibliotecas de centros eclesiásticos com apoio nobiliárquico e real, tais como as bibliotecas carolíngias e italianas, a exemplo de grandes centros como Monte Cassino.

Outro importante tradutor do medievo era também proveniente do norte da África, possivelmente de Tunes. Ele chegou em Salerno cerca de 1070, e tornou-se um monge beneditino em Monte Cassino, ficando conhecido como Constantino, o africano. Salerno no século XI já era uma região conhecida como um importante centro de produção e transmissão de conhecimentos médicos. Sua posição geográfica a favoreceu como um local de conectividades, onde as culturas e conhecimentos cristãos, mulçumanos e judeus convergiam. Constantino, o africano teve um importante papel na difusão dos conhecimentos médicos árabes, traduzindo diversos tratados para o latim.

Imagem de Constantino, o Africano

[Figura 2. Constantino, o Africano examinando amostras de urina. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Constantino,_o_Africano>. Acesso em 27 out. 2023.]

Esta ilustração encontra-se em um manuscrito italiano com vários tratados médicos, compilados entre os séculos XIV e XV, cujas iluminuras foram aparentemente copiadas de manuscritos anteriores. O manuscrito encontra-se hoje na Bodleian Library,  Ms. Rawl. C. 328 disponível on-line (http://surl.li/moqiv).

Este ambiente de Salerno favoreceu o surgimento de um grupo de mulheres que ficaram conhecidas como as damas de Salerno (Mulieres Salernitae). Há evidências de que mulheres praticavam medicina em Salerno, e foi neste contexto frutífero para o conhecimento que surgiram três tratados genericamente intitulados Trótula. Os textos levam o nome de Trótula, uma mulher que talvez tenha sido médica e professora de medicina e que teria escrito estes tratados. Contudo, as referências a ela são posteriores aos tratados, e alguns estudiosos permanecem duvidosos de que tal mulher teria de fato existido e escrito ela mesma os textos hoje associados a ela, esta questão é ainda objeto de discussão historiográfica. Seja como for, há três textos associados à Trotula – Sobre as Condições das Mulheres (Trótula maior), Sobre os Tratamentos das Mulheres (Trótula menor), e Sobre Cosmética Feminina, e previamente propagados como se fosse uma obra una, conhecidas sob o nome Trótula. Estes textos foram copiados e transmitidos amplamente na segunda Idade Média até o renascimento, sendo inclusive traduzidos para línguas vernáculas, como o gaélico no século XIV, por exemplo.

[Figura 3. Representação da Trótula de Rugiero . Imagem da Wellcome Trust Collection MS 544 f. 65, século XIV. Disponível em: <https://wellcomecollection.org/works/ka9yjtq7/items?canvas=87>. Acesso em 27 out. 2023]

Mas qual a relevância de estudar esta documentação? As possibilidades são inúmeras. Ela nos informa sobre os conhecimentos médicos pré-modernos; a transmissão e fusão de conhecimentos no decorrer do tempo, sociedades e línguas; a atuação das mulheres no campo da ginecologia e obstetrícia; conhecimentos de farmacologia e botânica e nos permitem acessar formas de pensamento filosóficos, sobre valores e práticas morais, dentre tantos outros aspectos. Assim, o estudo destes tratados nos permite dialogar com pesquisadores de outros campos do conhecimento, como das áreas da saúde, desenvolvendo pesquisas vinculadas às humanidades médicas e intrinsecamente inter- e multidisciplinares. São também textos relevantes para o estudo dos processos de tradução e bilinguismo no medievo.

Muitos destes textos demonstram preocupação com a saúde das mulheres, das parturientes e do bem estar das mulheres durante o parto, assim como com o pós-parto e os cuidados com os recém-nascidos, reconhecendo a seriedade e dificuldade do momento. Infelizmente, ainda hoje, enfrentamos dificuldades no parto, desrespeito à saúde feminina e violências obstétricas. Por estes motivos, uma equipe distribuída entre 33 países que recentemente concluiu um projeto de 4 anos, o COST ACTION CA18211 Devotion, objetivando minimizar os traumas e otimizar as experiências do parto, produziram panfletos informativos para famílias, agentes da saúde e políticos (https://www.ca18211.eu/research-outputs/#leaflets).

Aqui no Brasil, alguns investigadores debruçaram-se no estudo dos textos medievais e realizaram uma tradução da Trótula à língua portuguesa, tais como Karine Simoni, Luciana Calado Deplagne, Alder Ferreira Calado, e Claudia Costa Brochado. A pesquisadora portuguesa Cristina Pinheiro e sua equipe vem se dedicando ao estudo e tradução de tratados clássicos e tardo antigos. No mundo de língua espanhola, destaca-se o nome da pesquisadora Carmen Caballero Navas, especialista em textos hebraicos e ibéricos. Em termos de publicações em língua inglesa, o grande nome no campo da história da medicina feminina é, e ainda será por muitos anos, a professora emérita, Monica Green.

Bibliografia

CABALLERO NAVAS, Carmen. The genesis of medieval Hebrew gynaecology: A preliminary assessment. In: LEHMHAUS, Lennart (Ed.) Defining Jewish Medicine. Transfer of Medical Knowledge in Jewish Cultures and Traditions. Hassassowitz: Verlag, 2021. p. 349-373.

GREEN, Monica. The De Genecia Attributed to Constatine the African. Speculum, v. 62, n.2, 1987, p. 299-323.

GREEN, Monica. A Handlist of Latin and Vernacular Manuscripts of the so-called Trotula Texts. Part II: The Vernacular Translations and Latin re-writings. Scriptorium, v. 51, n.1, 1997, p. 80-104.

GREEN, Monica. The Trotula: An English Translation of the Medieval Compedium of Women’s Medicine. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2001.

GREEN, Monica. Making Women’s Medicine Masculine: The Rise of Male Authority in Pre-Modern Gynaecology. Oxford and New York: Oxford University Press, 2008.

PINHEIRO, Cristina S.; PINHEIRO, Joaquim; SILVA, Gabriel F.; FONSECA, Rui Carlos. (Trad.) Ginaikeia. Coletânea de textos antigos de ginecologia. Famalicão: Edições Humus, 2022.

SIMONI, Karine; DEPLAGNE, Luciana C. (Org.) SIMONI, Karine; CALADO, Alder F. (Trad.) Trotula di Ruggiero. Sobre as doenças das mulheres. Santa Catarina: UFSC, 2018.

TV PEM – Playlist Evento Híbrido “Maternidades em Sociedades Pré-Modernas: realidades e representações”. Disponível em: <http://surl.li/mospb>. Acesso em 27 out. 2023.

[1] Pós-doutoranda sênior junto ao Programa de Pós-graduação em História Comparada na Universidade Federal do Rio de Janeiro com pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ. Projeto: Leis e Representações sobre gravidez, parto e maternidade na Irlanda e Península Ibérica entre os séculos V e XII. Doutora pela University College Dublin (elainepereirafarrell@gmail.com). Link do currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/5769789852797641.


Publicado em 12 de Março de 2024.

Como citar: FARRELL, Elaine Cristine dos Santos Pereira. Ginecologia e Obstetrícia pré-moderna: teoria e prática. Blog do POIEMA. Pelotas: 12 mar. 2024. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/ginecologia-e-obstetricia-pre-moderna-teoria-e-pratica/. Acesso em: data em que você acessou o artigo.