Tais Pagoto Bélo
Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE)
Universidade de São Paulo (USP)
Boudica foi uma rainha guerreira Britã, da tribo dos iceni, que defendeu seu povo contra os romanos na ilha da Britânia, depois que suas filhas foram violentadas e ela açoitada pelos invasores. Os atos de Boudica foram contados por escritores como Tácito, em suas obras Anais e A vida de Agrícola, e por Dião Cássio em A História de Roma. Tácito apresenta-a como uma mulher de origem nobre e diz que os britões não reconheciam a distinção em relação ao sexo de seus governantes (Tacitus, Agricola 16), o que denota que a questão de gênero em relação ao poder não deveria ser tão relevante para o grupo nativo. Além do mais, Tácito explica que ela poderia até liderar os brigantes (não comenta sobre os iceni), porém, pelo fato de ser mulher, nunca teria sucesso em batalha (Tacitus, Agricola 31).
Tácito enfatiza a questão das mulheres no poder nesses grupos da Britânia, sugerindo que essa posição de destaque causava espanto e desconforto para o historiador latino. Ao descrever Boudica em campo, Tácito volta a esse assunto e menciona que ela andava de um lado para o outro numa carroça, dizendo que entre os britões era comum uma mulher no comando de guerra e que ela era descendente de homens poderosos, e, ademais, alegou que ela lutava pela prosperidade (Tacitus, Anais, 14.35) de seu povo.
Tácito declara que ela dizia que lutava como uma pessoa comum pela perda de sua liberdade, pelo seu corpo ferido e pelas filhas ultrajadas, acrescentando que, naquele momento, as pessoas idosas estavam sendo mortas, virgens violentadas e, por isso, ela tinha a garantia de que os deuses iriam conceder a vingança que eles mereciam (Tacitus, Anais, 14.35). Importa notar que Tácito, assim como Dião Cássio reportam a questão do estupro das filhas pelos romanos, uma vez que a declaração desse ato hediondo poderia desmoralizar os próprios romanos. Entretanto, seria ainda mais degradante declarar o fato de eles terem perdido três assentamentos para um exército liderado por uma mulher, tornando o estupro como a causa principal da revolta de uma mãe que quis se vingar.
Dião Cássio, por sua vez, inicia dizendo que um grande desastre estava acontecendo na ilha, já que duas cidades romanas tinham sido saqueadas, oito mil romanos e seus aliados haviam sido derrotados e a ilha, perdida. Todavia, o mais vergonhoso, cita Cássio, era o fato de que todo esse desastre teria sido tramado por uma mulher (Cassius Dio, História Romana 62.21). O autor declara que a pessoa que chefiaria os nativos, persuadindo-os a lutar e os conduzindo para a guerra seria Boudica, uma britã de família real, de grande inteligência em comparação a outras mulheres (Cassius Dio, História Romana 62.22).
Cássio descreve a rainha guerreira de forma masculinizada e declara que ela era muito alta, de aparência aterrorizante, olhar feroz e voz grave, com um tamanho, uma voz e armas de um homem. Seus cabelos avermelhados eram longos até a cintura, ela possuía um colar de ouro no pescoço, vestia uma túnica e sobre essa um manto, preso com um broche (Cassius Dio, História Romana 62.22). Pode salientar que Cássio, nesse caso, utiliza-se do status e do comportamento de Boudica como uma evidência de inversão cultural, uma antítese diante das normas de sua sociedade, uma vez que parece que ao não aceitar uma mulher no poder e líder de um exército, o autor teve que torná-la um homem, chamando a atenção sobre a inversão dos papéis de gênero.
As perspectivas de comum dominação masculina da sociedade em que Tácito e Dião Cássio viviam fez com que, em suas narrativas, reproduzissem a visão patriarcal romana sobre o papel da mulher no mundo mediterrânico da época, além de serem influenciados por discursos expansionistas (Pinto, 2011). Sendo assim, descreveram Boudica como uma figura “bárbara” e incomum no que tange à liderança de um exército e autores posteriores, seguindo os mesmos pensamentos, quase sempre a apresentaram como algo diferente, uma anomalia, pois ela ultrapassou os limites do papel feminino da sociedade em que esses escritores viviam. Segundo Pinto (2011), a descrição desses autores parecia seguir modelos greco-latinos de rebeliões nas províncias romanas.
Entretanto, mesmo sendo descrita de forma pejorativa, por ser mulher e ter uma posição de liderança, Boudica foi sempre relembrada, da Antiguidade até os dias de hoje. O que sugere que a caracterização de Boudica pelos autores antigos foi tomada em consideração em tempos posteriores. Contudo, pode-se dizer que os próprios romanos a tornaram uma heroína, uma vez que demonstraram que a causa de suas ações foi nobre, além de confirmarem que ela lutou pela liberdade de seu povo e se manteve ao lado do seu marido até sua morte.
A honra e mesmo a depreciação de Boudica, vista como uma mulher no poder e líder de um exército, a qual foi anunciada pelos antigos escritores, não foram apenas utilizadas depois para a diminuição da mulher no poder, mas também como desculpa para aceitá-las nessa posição, o que foi o caso de Elizabeth I, Vitória e Margareth Thatcher, as quais foram palco de descontentamento e de comparação com a rainha guerreira do passado.
A rainha Vitória, como Elizabeth I, utilizou da força dessa personagem como símbolo de liderança feminina, solicitando a construção de uma estátua em homenagem à guerreira, erigida em Londres, pelo artista Thomas Thornycroft, próxima à ponte de Westminster, às margens do rio Tâmisa, em frente ao Parlamento britânico, próxima ao Big Ben.
[Fig.01. Estátua de Boudica de Londres, feita por Thornycroft, 1902. https://en.wikipedia.org/wiki/Boudica#/media/File:Boudica_statue,_Westminster_(8433726848).jpg]
Com o apoio do Estado, a escultura foi representada de acordo com uma concepção Vitoriana de Boudica, ou quase uma versão do século XIX de Ben Hur, como lembra Aldhouse-Green (2006). E ainda, do lado Sul da escultura, há inscrições em ouro, Boadicea/ Boudicca/ Queen of the Iceni/ Who died AD 61/ After leading her people/ Against the Roman invader; ao passo que do lado Leste veem-se duas linhas do poema de William Cowper (1782): Regions Caesar never knew/ Thy posterity shall sway. Segundo Hingley e Unwin (2005), o poema foi usado pelo Conselho Municipal de Londres para restabelecer Boudica de maneira efetiva. Para a estudiosa Aldhouse-Green (2006), há uma alusão óbvia à rainha Vitória, tanto no poema como na estátua.
O artista dessa escultura, e mesmo o príncipe Albert, que deu apoio à sua construção, morreram antes que ela ficasse pronta (Webster, 1978). Sendo assim, a obra acabou não recebendo financiamento suficiente para o banho final de bronze, e a prefeitura de Londres teve de formar um comitê público para a arrecadação de verbas para terminá-la. Os principais donatários foram membros da realeza inglesa, acadêmicos, jornalistas, políticos e ricos senhores galeses (Hingley, 2000; Pinto, 2011). Esses últimos pareceram reconhecer Boudica muito mais como uma figura britã do que inglesa. Eles mesmos, mais tarde, teriam a imagem da guerreira em Cardiff, País de Gales (Pinto, 2011).
A estátua foi terminada e erigida um ano após a morte da rainha Vitória. A escultura só foi entregue pronta pelo filho do artista, John Isaac Thornycroft, e colocada às margens do Tâmisa, pelo Conselho Municipal de Londres, em 1902, causando grande sentimento patriótico, pois a manifestação de Boudica como guerreira estava então ligada ao sentimento nacional referente às raízes do passado britânico, e, assim sendo, à vangloriação do Império Britânico. Essa obra foi colocada em frente à Câmara dos Comuns (House of Commons), como se fosse defender este órgão de possíveis ataques do Sul e do Leste, ou seja, do continente (Pinto, 2011).
No início do século XX, com o declínio do Império Britânico, a estátua de Boudica começou a ser utilizada com um outro fim. A atitude da rainha guerreira e suas ações do passado, contadas pelos antigos romanos, o uso de sua figura feminina em apoio às grandes mulheres de poder, como as rainhas Elizabeth I e Vitória, fez com que sua imagem passasse a ser vinculada à força das mulheres. Em um momento de extrema agitação feminista, pela reivindicação e liberdade de voto das mulheres, as sufragistas britânicas acabaram por utilizar a estátua como ícone de luta e símbolo de representação do feminino. A imagem e mesmo o nome da personagem foram utilizados em cartazes e panfletos feministas. A estátua era o local de reunião para as reivindicações do movimento, e até os dias de hoje é utilizada por grupos feministas como força de ação para as mulheres.
A personagem Boudica também se mostra muito importante para a cidade de Cardiff, País de Gales, uma vez que sua estátua se encontra no prédio da prefeitura, o qual fica localizado no centro, próximo a destacados locais públicos, tais como o Castelo de Cardiff, o Museu Nacional, a Universidade de Cardiff e a Galeria de Gales. A escultura foi feita em mármore Serraveza, em 1916, por James Harvard Thomas.
[Fig.02. Estátua de Boudica de Cardiff, feita por Harvard Thomas, 1916. https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Statue_of_Boadicea,_Cardiff_City_Hall#/media/File:Statue_of_Boadicea_&_her_daughters,_Cardiff_City_Hall.jpg]
Sua imagem remeteria à crença de que Boudica era uma líder nativa, sendo os galeses seus descendentes (Hingley & Unwin, 2006; Pinto, 2011), e parece ser retratada como uma britã que desejou se vingar dos atentados cometidos contra seu povo e seu lar.
A prefeitura de Cardiff recebeu de presente, do Lord Rhondda of Llanwern, algumas estatuas, que custaram cerca de 15,000 libras. Os heróis esculpidos, por diferentes escultores, foram escolhidos após uma consulta à qual o povo galês foi convidado para dar sua sugestão. A estátua de Boudica foi uma das escolhidas, e foi colocada, com outros heróis, no saguão chamado The Marble Hall, inaugurado pelo então Secretário da Guerra do Império Britânico, David Lloyd George, no dia 27 de outubro de 1916. O nome do salão, The Marble Hall, faz jus às colunas de mármore de Siena moldadas em bronze, também utilizado nas luminárias, suplementadas por projetores que refletem o mármore polido do chão.
Todavia, à diferença da estátua feita por Thornycroft em Londres, com a beligerante carroça, aqui Boudica não está representada como uma guerreira poderosa, mas como uma mãe zelosa, cuidando de sua prole, que parece refugiada. Junto à estátua, vê-se a inscrição Buddug, Boadicea, died AD 61, sendo Buddug a tradução galesa de Boudica (Aldhouse-Green, 2006). Entretanto, a semelhança desta estátua com aquela feita em frente ao parlamento britânico é que ambas estão localizadas em um espaço político e de poder.
Voltando à Inglaterra, uma das estátuas da cidade de Colchester, que foi feita pelo artista Jonathan Clarke, em alumínio, no ano de 1999, foi colocada próxima à rotatória da estação de trem de Colchester. Sua construção foi encomendada pelo tradicional supermercado britânico ASDA, no mesmo período em que estava sendo comprado pela rede norte-americana Walmart sob duras críticas nacionalistas (Pinto, 2011).
[Fig.03. Estátua de Boudica de Colchester, feita por Jonathan Clarke, 1999. https://jonathanclarke.co.uk/commissions/colchester/]
Outra peça primorosa encontrada na prefeitura de Colchester é um vitral, em conjunto com mais dois vitrais, na sala chamada The Moot Hall. Essas peças foram colocadas ali depois da reforma pela qual o prédio passou em tempos vitorianos. O vitral do meio, chamado The Queens Window, é composto pelas “mulheres de Colchester,” em comemoração a todas as rainhas que visitaram a cidade ou foram a ela associadas, desde Boudica até a rainha Vitória. Esta obra foi presenteada pelas Ladies of the Borough, sob a liderança da presidente do Comitê, Emily Sandars, que ocupou o posto de primeira-dama de 1898 a 1899 (Aldhouse-Green, 2006).
[Fig.04. Imagem de Boudica na lateral do vitral da prefeitura de Colchester, 1902. https://theleagueofextraordinaryladies.com/wp-content/uploads/2015/03/boudicca.jpg]
Abaixo no vitral, do lado direito, vê-se Boudica, entre Eleanor de Aquitaine, Catarina de Aragão, Elizabeth I, Helena, mãe de Constantino e outras (Green, 1997). Neste vitral, Boudica está desenhada como uma jovem rainha guerreira, com cabelos dourados avermelhados, com uma coroa na cabeça, um colar de ouro no pescoço, um manto vermelho-púrpura ao redor de seus ombros e uma lança, sugerindo uma posição de ataque.
Na parte exterior da prefeitura de Colchester encontram-se outras estátuas, todas esculpidas por L. J. Watts, entre elas algumas santidades, como o arcebispo Samuel Harsnett, e outras obras representam a engenharia industrial, a defesa militar e a indústria da pesca da cidade, além do rei Eduardo, o mais Velho, que está ao lado de outra estátua de Boudica, de frente para a rua Stockwell (Green, 1997). Nesta obra, Boudica está trajada com uma túnica, uma capa, um cinto que pode ser de couro ou fibra vegetal, sandálias que parecem de couro, em sua cabeça há uma coroa e, na mão direita uma lança. Sua posição sugere o ataque a um alvo.
[Fig.05. Estátua de Boudica da prefeitura de Colchester, 1902. http://www.speel.me.uk/sculptplaces/scplacepicc/colchesterthboadiceaedward.jpg]
A fascinação pública por Boudica é ainda bem evidente. Ela é vista como uma personificação majestosa e com virtudes maternas. Além disso, simboliza força política e independência, é observada como uma guerreira que lutou contra a injustiça e, muitas vezes, se tornou um ícone, que a memória a enquadra em um panteão de idealizações.
Bibliografia
Fontes antigas
CASSIUS DIO. 1925. Roman History. Edited by E. Cary, London, G. B. Putman.
TACITUS, P. C. 1914. Agricola. London: William Hinemann LTC; Cambrigde, Massachusetts: Harvard University Press.
______. 1968. The Annals of Imperial Rome. Great Britain: Penguin Classics.
Fonte moderna
COWPER, W. 1792/1980. Boadicea: an ode, In: J. D. Baird and C. Ryskamp (ed.) The poems of William Cowper, Oxford, Clarendon Press. 1:1748 – 82, 431 – 32.
Referências Bibliográficas
ALDHOUSE-GREEN, M. 2006. Boudica Britannia. London: Pearson Longman.
GREEN, O. 1997. The town hall: Colchester. Colchester: Colchester Borough Council and Jarrold Publishing.
HINGLEY, R. 2000. Roman officers and English gentlemen: the Imperial origins of Roman archaeology. London: Routledge.
HINGLEY, R. & UNWIN, C. 2005. Boudica: Iron Age warrior queen. London: Hambledon Continuum.
PINTO, R. 2011. Duas rainhas, um príncipe e um eunuco: gênero, sexualidade e as ideologias do masculino e do feminino nos estudos sobre a Bretanha Romana. Tese de doutoramento apresentada ao Programa de pós-graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Departamento de História, área de concentração em História Cultural.
WEBSTER, J. 1978. Boudica: the British revolt against Rome AD 60, London, Batsford.
Como citar: BELO, Taís Pagoto. Boudica: A Rainha Guerreira. Blog do POIEMA. Pelotas: 13 ago. 2024. Disponível em: Acesso em: data em que você acessou o artigo.