Blog Especial: Mês das Bruxas – O feminino e as representações do mau

Sara Schneider-Bittencourt[1]

A aparição constante de representações a respeito da mulher-bruxa tem aberto discussões sobre as possibilidades de análise cultural e social relacionadas ao tema, as quais podem ser encontradas nos mais diversos espaços, como em textos, manuscritos, produções literárias, poemas, cinema, televisão e arte. São variadas as pinturas capazes de instigar um sistema de repressão do feminino e da mulher na condição de bruxa/feiticeira.

O processo de análise iconográfica e as possibilidades identificadas nos objetos a serem estudados proporcionam a riqueza e a consciência da dificuldade em questionar imagens relacionadas às mulheres. François Borin é um dos autores que possui essa sensibilidade quanto ao entendimento histórico e artístico ao constatar, por exemplo, que

Pedir a uma iconógrafa para escrever sobre as imagens é aceitar uma outra leitura, é sentir que um olhar enriquecido de arquivos visuais está apto a vê-las sob um novo ângulo. Questionar as imagens sobre a mulher interrogar documentos tirados do seu contexto por meio de uma seleção necessariamente subjectiva, é focar o olhar sobre um objeto isolado e, por isso mesmo, distorcido, é vê-los com os olhos de hoje, porque <<a imagem figurativa é fixa mas a percepção é móvel. (BORIN, 1991, p. 253).

Portanto, a complexidade envolvida nas representações imagéticas pode ser um risco, como também um caminho de perspectivas. É importante que haja, também, a compreensão em relação à cultura, sociedade, política e economia que fazem parte do momento em que as obras são desenvolvidas, pois são elas o produto de sua própria época. Logo, tendo isso em mente, e considerando as imagens selecionadas aqui, com datação a partir do século XV, constata-se determinado monopólio masculino no processo de criação das expressões visuais, sendo poucas as mulheres com acesso a tais processos artísticos em tais períodos (BORIN, 1991, p. 253). Tal elemento nos mostra que parte significativa da representação feminina se dava através do olhar e imaginário masculino.

E apesar das contrariedades:

Partir das imagens é <<dar>>- lhes um papel condutor, de guia, e as palavras seguem o percurso por elas traçado. Há uma preocupação de constante referência a elas, tal como um pintor, por mais abstracto que seja, regressa sempre ao motivo e um historiador aos arquivos…Neste caso, os arquivos são as imagens. (BORIN, 1991, p. 254).

A partir de tais observações, vejamos algumas das figuras que trazem referências sobre o imaginário da mulher-bruxa em pinturas selecionadas dos séculos XV a XIX.

Figura 1: A Árvore da vida e da morte. (1481) Fonte: Berthold Furtmayr (1470-1501) https://br.pinterest.com/pin/455074737319859576/

 

Na miniatura de A arvore da vida e da morte, de Berthold Furtmayr. podemos observar algumas especificidades. A Virgem Maria, ao lado esquerdo da imagem, encontra-se ao lado de um crucifixo, preso na arvore do conhecimento. Esse item aparece enquanto um antídoto para o pecado que a árvore representa e sua mortalidade. A Virgem, então, alcança da árvore, hóstias para dar aos pobres, como forma de purificação, enquanto à direita, vê-se Eva, representada (como em outras ocasiões) totalmente nua, chamando imediatamente a atenção para si, repassando a alguns pobres o fruto da árvore, o que pode ser interpretado como Eva “alimentando o mal”. Aqui demonstra-se a dicotomia entre o bem e o mal a partir dessas duas personagens femininas da história judaico-cristã. Por outro lado, observa-se o esqueleto, à direita de Eva, que segura uma faixa que diz “Desta árvore vem o mal da morte e o bem da vida”, concretizando a compreensão de que essa é o elemento bíblica que alçou Eva ao pecado e retirou o casal do Jardim do Éden, bem como a tentação da serpente também se faz presente, enrolada no tronco (BORIN, 1991, p. 255).

Seguimos com Eva Prima Pandora, que foi considerada o primeiro nu do Renascimento:

Figura 2: Eva Prima Pandora (1540) Fonte: Jean Cousin (1490-1560) Fonte: https://dieelektrischenvorspiele.wordpress.com/2015/11/02/o-arranca-coracoes-162-eva-prima-pandora/

O quadro de Jean Cousin, que pode ser encontrado no Museu do Louvre, traz, mais uma vez o corpo nu, um misto de sensualidade e mortalidade. Consiste em direcionar a fatalidade, quando implementa elementos como o ramo, a caveira, o vaso de Pandora, a serpente, símbolo da provocação do mal em Eva – como também se faz presente quando se retratam as imagens de Cleópatra – bem como a própria beleza do corpo nu da mulher enquanto a “fonte de todos os males (BORIN, 1991, p. 256). A imagem feminina caracteriza-se com traços ousados sobre seu corpo, e elementos que referenciam a maldade do mundo, espalhada por essa, lembrando aos homens a ambiguidade que coexiste ao elemento feminino e que se mostra como parte constante da leitura de obras como o Malleus Maleficarum, um dos mais conhecidos manuais inquisitoriais do século XV escrito por Heinrich Kramer.

Seguimos com a gravura anônima datada do século XVII:

Figura 3: A verdadeira mulher Fonte: Gravura Anônima. PERROT; DUBY, 1991, p. 266

 

Essa gravura apresenta um misto de mulher e monstro com uma cabeça dupla que se divide entre o feminino e o demoníaco. Exibe-se aqui a representação, de maneira “didática”, do imaginário da mulher enquanto siamesa do Diabo, serva da maldade, identificando-se enquanto “a dupla e simultânea expressão do seu ser: anjo e demônio” (BORIN, 1991, p. 266). O significado dessa gravura pode ser reconhecido nas inúmeras fontes escritas sobre a imagem do feminino enquanto companheira de Satã, e parte permanente da sensação de medo que é implantada durante os séculos XV-XVII.

Percebendo que parte do imaginário social da transição do Medievo para a Renascença se dá – além do processo sistemático de crises e doenças – da implementação da figura da bruxa enquanto parte concreta de um plano demoníaco para espalhar o medo e tornar fraca não apenas a alma dos crentes, como também o poderio da Igreja. Além disso, fez com que não apenas a imagem isolada da mulher fosse comprometida, mas também a “reunião” de grupos de mulheres que acabou por receber o nome de Sabá, fossem igualmente referenciadas nas obras artísticas. Parte dessas pode ser encontrada no livro de Jean-Michel Sallmann, As Bruxas noivas de Satã (2002), que contém, além de uma seleção de informações sobre a “caça às bruxas”, uma compilação de obras visuais sobre o assunto.

Um dos artistas escolhidos por Sallmann possui uma coleção significativa de obras que retratam o imaginário da bruxaria: Hans Baldung Grien. Nascido nas proximidades em que o Malleus Maleficarum surgiu, no mesmo ano da bula papal que intensificou a “caça às bruxas” (Summis Desiderantes Affectibus), Grien cria de forma demonstrativa a imagem das bruxas nas suas preparações para o Sabá.

Figura 4: Sabá de Buxas (1515) Fonte: Hans Baldung Grien (1484-1545) http://www.all-art.org/history230-14-2.html

Podemos ver que uma das bruxas da imagem está triturando, possivelmente, algumas ervas em um pequeno caldeirão, enquanto as outras, assim como reforça o seu estereótipo, voam pelas nuvens em vassouras mágicas (SALLMANN, 2002, p. 48). Notamos novamente a nudez representando tais mulheres, bem como a companhia de certos animais, como o gato, que esteve atrelado continuamente à imagem das feiticeiras.

Outra obra que traz uma reinterpretação do Sabá, dessa vez de um período em que a “caça às bruxas” já havia deixado de ocorrer, porém, sua imagem na mentalidade popular ainda se fazia (e ainda se faz) presente, foi a pintura a óleo sobre tela, de Goya.

Figura 5: O Coven (1820-1823) Fonte: Goya (1746-1828) https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/el-aquelarre-o-el-gran-cabron/09559184-cfeb-48fe-8acc-89b070b64d92?searchMeta=sabbat

A imagem introduz a reunião das bruxas com o Diabo, que em determinadas culturas é representado pela figura de um grande bode, reunindo as mulheres a seu redor, características que são bastante desenvolvidas nos escritos sobre o assunto.

Mais especificamente em relação à imagem da bruxa, podemos voltar ao pintor e artista gráfico, Hans Baldung Grien e sua coleção sobre o assunto, que exibe uma ilustração caracterizada por imaginários que apresentam de forma clara alguns dos dispositivos discursivos que estão constantemente ligados à representação da mulher enquanto perigo constante aos homens. Segue:

Figura 6: Três Bruxas Fonte: Hans Baldung Grien (1484-1545) http://www.all-art.org/history230-14-2.html

As Três bruxas são a representação destacada da sexualidade violenta que se encontram constantemente identificadas em obras como o Malleus Maleficarum. No caso acima, percebem-se as partes intimas expostas e posições que se “inclinam” à luxúria e ao desejo carnal, que é impugnado na imaginação daquele período. A visão da mulher como diabolicamente sexual, seduzindo os “homens de bem” pelo caminho demoníaco, se materializa na imagem. Destacamos também os rostos desenhados, que possuem tanto a mulher nova quanto a anciã, sendo essas a dicotomia da representação das “servas de Satã”.

Por último, a obra destacada na capa do livro de Sallmann (2002), que inclui as luxúrias femininas na tentativa de seduzir Santo Antônio, bem como a representação da bruxa como aquela de extrema feiura, se deleitando ao observar a cena. A pintura pode ser encontrada no Museu do Prado, em Madri.

Figura 7: A Tentação de Santo Antônio (1520-1524) Fonte: Joachim Patinir (1480-1524) e Quinten Massys (1466-1530) https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/las-tentaciones-de-san-antonio-abad/b93e9da4-8a77-44ae-ba29-1811cc546fd8?searchid=9447ce24-24dd-c280-7806-998bf2bacd1e

Vemos, pouco mais atrás das três jovens sedutoras e de Santo Antônio, a figura de uma mulher com os traços que “iluminaram” os estereótipos femininos por séculos. Essa era a mulher velha, com traços demoníacos e viúva: a “típica” bruxa que é excluída da sociedade pelo medo que exerce sobre as comunidades. Sobre outras três mulheres, segundo a descrição da obra feita através dos responsáveis pelo site do Museu do Prado, tem-se:

A tentação que sofre Santo Antônio pela intervenção de três jovens mulheres ricamente vestidas tentando tirá-lo do caminho da virtude, instando-o a luxúria, […]. Neste caso, de uma maneira totalmente original, uma tentação carnal é representada de maneira geral. A maçã oferecida por uma das jovens – como Eva moderna – ao santo alude ao pecado original, enquanto a que está atrás, acariciando seu pescoço, já deixa ver sua natureza demoníaca na forma da cauda de seu traje, e o macaco, símbolo do demônio, puxa Santo Antônio, identificado como tal pelo nimbo, para fazê-lo cair no chão (…). (Texto extraído do site do Museu do Prado – Tradução nossa)[2]

Essas obras artísticas, portanto, demonstram visualmente a percepção dos indivíduos diante das ameaças sofridas nas sociedades que acabaram por ser depositadas nas representações da mulher-bruxa, que se fez diariamente presente durante não só os séculos de “caça às bruxas” como também nos subsequentes, mesmo que tal “ameaça” já não fosse entendida como presente no cotidiano das populações europeias.

Expressões artísticas como essas, em geral, vêm acompanhadas de narrativas que as completam. Há identificação de inúmeros textos que carregam impressões específicas a respeita das mulheres, de seus corpos e de suas posições sociais enquanto agentes malignas ditas como bruxas. Observamos esses imaginários desde a antiguidade, ao medievo como, por exemplo, o Canon Episcopi, que apresenta crenças populares que na busca por justificar as repressões “serviu para fixar a imagem da bruxa que voa à noite, atravessando janelas e paredes ou entrando por chaminés para participar de sabá, escanchada em uma vassoura ou um animal” (SALLMANN, 2002, p. 29).

Narrativas que se concretizam com o Malleus Maleficarum que, utilizando-se de citações de Cicero, São Tomas de Aquino, entre outros, torna constante a agressão ao feminino. Utilizando-se também de Eclesiásticos, Kramer reafirma citações como “É melhor viver com um leão ou um dragão que morar com uma mulher maldosa.” e também “Toda a malícia é leve, comparada com a malícia de uma mulher” (KRAMER; SPRENGER, 2011, p. 114).

Logo, essas imagens mentais que fundamentaram as páginas do manual inquisitorial de Kramer e de tantos outros escritos, materializados em representações de figuras como Eva e Lilith (as “mulheres-bruxas”), carregam associações constantes de representações femininas enquanto donas de um caráter duvidoso e ameaçador. Tal abordagem, seguida por uma série de conjecturas sociais de medo e sobrenaturalidade que pairava nas comunidades, principalmente rurais, da Europa do século XV, acabaram por consolidar o imaginário da bruxa como serva do Diabo e responsável por catástrofes e ameaças à vida daqueles que foram retratados como “homens de bem”, vítimas da perversidade dessas figuras malignas.

Em conjunto, narrativas textuais e visuais foram (re)criando e (re)incorporando perspectivas e leituras que podemos acompanhar até os dias atuais sobre determinados comportamentos esperados ou não por parte das mulheres na sociedade. Essas representações são usadas com propósito de manipulação sociopolítica, como crítica aprofundada das temáticas de gênero e sexualidade, ou ainda como componente de estudo sobre como as sociedades de diferentes períodos temporais lidavam com esse imaginário. Assim, é clara a rica variedade de possibilidades das análises de tais conteúdos.

Bibliografia

BORIN, Françoise. Uma pausa para a imagem. In. História das Mulheres no Ocidente. Vol. 3: Do Renascimento à Idade Moderna. Sob a direção de Arlette Farge e Natalaie Zemon Davis. Porto: Afrontamento. 1991, p. 253-293.

DELUMEAU, Jean.  História do medo no Ocidente: 1300 – 1800. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Apicuri, 2016.

KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras: Malleus Maleficarum. Tradução de Paulo Fróes. 22ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2011.

NOGUEIRA, Carlos R. F. Bruxaria e História: as práticas mágicas no Ocidente cristão. Bauru, SP: EDUSC, 2004.

PESAVENTO. Sandra Jatahy. Em busca de uma outra história: Imaginando o Imaginário. Revista Brasileira de História. São Paulo: v. 15, n. 29, p. 9-27. 1995.

PIRES, Valéria Fabrizi. Lilith e Eva. Imagens arquetípicas da mulher na atualidade. SP: Ed. Summus. 2008.

SALLMANN, Jean-Michell. As Bruxas noivas de satã. Tradução de Ana Luiza Dantas Borges. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

[1] Mestre em História pela Universidade Federal de Pelotas. Link do currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/9207511357797535

[2] O original: La tentación que sufre san Antonio por la intervención de tres mujeres jóvenes ricamente vestidas que tratan de apartarle del camino de la virtud, incitándole a la lujuria […] En este caso, de forma totalmente original, se representa una tentación carnal de modo general. La manzana que le ofrece una de las jóvenes -como moderna Eva- al santo alude al pecado original, mientras que la que está a su espalda, acariciándole el cuello, deja ya ver su naturaleza demoníaca en la forma de la cola de su traje, y el mono, símbolo del demonio, tira de san Antonio -identificado como tal por el nimbo- para hacerle caer al suelo.


Publicado em 31 de outubro de 2023

Como citar: SCHNEIDER-BITTENCOURT, Sara. O feminino e as representações do mau. In: Blog do POIEMA, Pelotas 31 out 2023. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/blog-especial-mes-das-bruxas-o-feminino-e-as-representacoes-do-mau/ Acessado em: data em que você acessou o artigo.