Fábio de Souza Lessa[1]
Próximo do início dos Jogos da XXXIII Olimpíada, os Jogos Olímpicos Paris 2024, nada mais propício do que refletirmos sobre os Jogos estabelecidos pelos gregos antigos. Até porque esta é uma relação que comumente o mundo contemporâneo busca estabelecer. Tradicionalmente iniciados em 776 a.C., os agônes (disputas) atléticos helênicos – os Jogos Olímpicos, Píticos, Nemaicos e Ístmicos – se constituíram em um evento cívico e religioso, atuando como elemento de coesão social. Porém, tanto na Antiguidade quanto no mundo contemporâneo, os Jogos excediam às competições atléticas. Foram (e cada vez mais são) eventos que implicavam em manifestações culturais mais amplas. Não nos esqueçamos de que poetas, músicos, historiadores, filósofos tinham na realização dos agônes atléticos uma oportunidade para divulgar as suas performances.
Assim como no presente, entre os helenos as competições esportivas demarcavam identidades, despertavam o sentimento de pertença e criavam dicotomias entre, por exemplo, fortes e fracos, vencedores e derrotados, e cidadãos e não-cidadãos. E esse processo identitário se expressava nos movimentos perfeitos e nos corpos dos atletas.
Conforme pode ser observado no parágrafo acima, as identidades são relacionais, isto é, implicam na marcação de diferenças e nas operações de incluir e excluir – forte e fracos, vencedores e derrotados … (Silva, 2000, p. 82). Como o processo de construção de identidades e de diferenças é cultural, o que implica em afirmar que ele só pode ser compreendido no interior de sistemas de significações no qual adquire sentido (Silva, 2000, p. 78), temos que enfatizar que, no nosso caso, esse sistema é a cultura políade. Assim como afirmou Maria Helena da Rocha Pereira (2003, p. 11), “fosse qual fosse a origem dos grandes Jogos, a verdade é que eles ocuparam um lugar fundamental na vida e na cultura grega”. Os Jogos eram, assim, um espelho da vida e da sociedade dos gregos antigos, reunindo uma enorme multidão que assistia às cerimônias religiosas e às diversas disputas desportivas nas quais competiam os grandes atletas. As competições tinham lugar num espaço público perante a comunidade reunida (Fialho, 2010, p. 119). Acrescentamos que “tanto os atletas quanto os espectadores estavam cientes de que o dia dos jogos representava o coroamento de um longo período de treino e de que a vitória consagraria as cidades (póleis) que preparavam os vencedores” (Yalouris, 2004, p. XIII). Em síntese, as competições atléticas atuavam como um fator de identidade político-cívica do corpo de cidadãos (Lessa, 2017, p. 29-30).
Em texto anterior (2017, p. 28), já havíamos ressaltado que imerso no contexto das cerimônias e das celebrações religiosas, desenvolveu-se um conjunto de competições atléticas, que passaram a ter extraordinário significado na vida política e cotidiana dos cidadãos das póleis (Girginov; Parry, 2005, p. 16). Assim, as práticas esportivas aparecem no mundo grego antigo não somente vinculadas à esfera religiosa, mas também ao político. Podemos dizer que os atenienses politizaram a sua própria existência e, neste sentido, a religião se integrou à vida política do cidadão grego em geral, e do ateniense em específico. Até mesmo porque a religião cívica possuía um caráter obrigatório, sendo condição para o exercício da cidadania entre os gregos.
Refletir sobre a relação entre práticas esportivas e construção de identidades nos direciona para a hipótese de que é nos corpos que se encontravam impressos os elementos identitários dos atletas e, consequentemente, dos cidadãos gregos. As imagens de figuras vermelhas produzidas pelos artesãos áticos legitimavam o discurso hegemônico que enfatizava a força, a virilidade, o vigor e as formas perfeitas dos atletas-cidadãos (Schnapp, 1996, p. 45). Em sua maioria atuavam para propagar quase que a existência de um modelo único de corpos de atletas; o que não correspondia à realidade.
No âmbito das práticas esportivas, é sempre bom sublinhar que a coragem e a virilidade não se encontram somente ligadas à força física, mas também à sabedoria (Lalanne, 2006, p. 185).
Figura 1
Localização: Boston, Museum of Fine Arts– inv. 98.876, Temática: Salto e dardo, Proveniência: Não fornecida, Forma: kýlix (taça), Estilo: Figuras vermelhas, Pintor: Proto Panaetian Group (por Beazley), Data: aprox. 525-475 a.C. [https://www.beazley.ox.ac.uk/record/375D0A63-ACEA-4C1B-9933-0376CF0A730C (vaso number 203246 – consultado em maio de 2024)].
Na taça acima temos um jovem nu segurando um halter em cada mão, signo que remete ao salto. Atrás dele contamos com dois dardos apoiados na parede, indício de que a cena acontece no espaço interno, certamente no interior da palestra – local que podia servir para todas as modalidades atléticas, exceto para a corrida a pé que acontecia no estádio. Os dardos na cena fazem referência ao lançamento de dardo; usado para a caça, a guerra e a prática esportiva. O atleta está em movimento, o que é evidenciado pelo posicionamento de suas pernas e braços. Ele mantém a cabeça direcionada para trás.
O corpo do atleta segue o modelo de representação iconográfica predominante nas imagens de circulação ateniense. Nele estão impressos equilíbrio, força, proporção, movimento, atributos esses que os helenos almejavam encontrar no funcionamento de suas póleis e, no caso ateniense, na democracia. A estética do corpo do atleta vincula-se a um padrão de proporções aritmético e geométrico. De acordo com a descrição oferecida pelo Museum of Fine Arts, o fato de o atleta estar olhando por cima do ombro, indica que ele não irá saltar. Há dois aspectos ainda a serem observados na imagem: a coroa na cabeça doa atleta, o que indica que ele foi vitorioso em competições; e a inscrição Athenodotos kalós, “Athenodotos é belo”. Tal inscrição nos indica o possível receptor da taça, Athenodotos, e a sua beleza física e/ou o seu status social de bem-nascido (Cf. Lessa, 2024, p. 163-164).
Sabermos que a figuração dos corpos dos atletas gregos era plural, pois existiam representações que se distanciavam dessa idealização vista na taça acima (Cf. Lessa, 2022). Essa pluralidade dos corpos se faz presente na imagem pintada em uma das faces da kýlix do pintor Fidipo que temos abaixo – Figura 2.
Figura 2
Localização: London, British Museum – E 6 – 1846. 0512.2, Temática: práticas esportivas, Proveniência: Vulci (Etrúria), Forma: Kýlix, Estilo: Figuras Vermelhas, Pintor: Fidipo (artesão: Hischylos), Data: aprox. 525-475 a.C. [www.beazley.ox.ac.uk/index.htm (vaso number 200378 – consultado em maio de 2024)].
Os quatro personagens nus – logo, atletas – representados na cena foram agrupados pelo pintor em duas duplas, separadas pelo banco contendo os mantos dos competidores no centro da cena, de acordo com a constituição dos seus corpos.
Ao observarmos a imagem, temos a impressão de que o pintor optou por marcar diferenças entre as duplas de personagens. Na direita, vemos dois atletas com os corpos representados de forma mais próxima ao padrão geométrico comum às imagens áticas e praticando o lançamento do disco e do dardo, modalidades esportivas que normalmente aparecem associadas; enquanto na esquerda, outros dois atletas cujos corpos foram apresentados distanciados do referido padrão geométrico, pois enquanto um deles tende ao extremamente magro, o outro é gordo. Parece existir uma referência ao boxe na imagem, pois um dos atletas (o gordo) segura uma tira de couro – os himántes, cuja utilidade era firmar a articulação dos pulsos e estabilizar os dedos da mão (Lessa, 2017, p. 108).
Talvez o pintor tenha desejado realçar que o corpo hegemônico, com as formas mais definidas, estivesse mais próximo dos cidadãos que praticavam o lançamento do disco e do dardo, modalidades que colocavam mais em relevo o movimento e a flexibilidade corporais e que, metaforicamente, representariam a dinâmica da pólis, em um contexto mais geral, e da democracia ateniense, em um plano mais específico.
A singularidade dessa imagem, conforme mencionado, é nos permitir visualizar tipos variados de corpos. No momento, nos deteremos na discussão acerca dos dois atletas que estão posicionados à esquerda da cena: o extremamente magro e o gordo. Isto porque eles não representariam o ideal estético da beleza helênica.
Uma das primeiras explicações para essa opção poderia ser a necessidade de pôr em relevo as diferenças entre a idealização e a realidade na representação dos corpos dos atletas. Nesta concepção, tais corpos estariam mais próximos daqueles encontrados no cotidiano grego. Porém, outras hipóteses podem ser levantadas. No boxe, o atleta mais pesado teria mais chances de vencer uma competição (Yalouris, 2004, p. 239). Esta afirmação pode explicar a representação de corpos diferenciados por modalidade, tendo os boxeadores corpos mais pesados. Mas isso não explica a proeminência do abdômen do atleta na imagem que estamos analisando, pois tal situação pode vir a impedir a flexibilidade dos movimentos em qualquer das modalidades. Também não encontramos, dentre as modalidades praticadas pelos gregos, uma em que o atleta fosse representado extremamente magro, como também vemos na imagem.
Assim como no mundo contemporâneo, a representação dos corpos idealizados também esteve presente entre os gregos antigos. Os corpos eram plurais, assim como as identidades. Porém, o fundamental é observar que a pluralidade não impediu (assim como continua não impossibilitando) a constituição de identidades coletivas. E os agônes atléticos atuaram fortemente na demarcação do grego em oposição ao não-grego.
Como conclusão, podemos defender que as competições atléticas produziam: a identificação social, marcando-se bem o eu e o outro; uma ocasião para a promoção social individual, familiar ou de grupo, isto é, eles implicavam em prestígio público; a integração da família e da sociedade como um todo; materializavam a identidade sociocultural; intensificavam a mobilização e a participação sociais; promoviam a situação de comunidade, de unidade, diminuindo a situação de dispersão social e, por fim, propiciavam uma comunicação direta, promovendo a coesão política/cívica; no mundo antigo e no contemporâneo.
Bibliografia:
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[1] Professor Titular de História Antiga do Instituto de História (IH) e dos Programas de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) e de Letras Clássicas (PPGLC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro do Laboratório de História Antiga (LHIA-UFRJ) e Membro Colaborador do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq e Bolsista Cientista do Nosso Estado da FAPERJ. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4829-6651.
Publicado em 16 de Julho de 2024.
Como citar: LESSA, Fábio de Souza. As competições atléticas helênicas e a relação passado-presente. Blog do POIEMA. Pelotas: 16 jul. 2024. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/as-competicoes-atleticas-helenicas-e-a-relacao-passado-presente. Acesso em: data em que você acessou o artigo.