A MINHA COCANHA PARTICULAR

Carolina Kesser Barcellos Dias[1]

Os limites imaginários são armaduras
apenas aparentes da realidade
pois repletos de possibilidades
(Souza, 1998, p. 134).

Eu não tinha a intenção de escrever um texto teórico, intelectual ou acadêmico demais, mas também não pensei que ele seria tão autobiográfico, saudosista e pessoal… Enfim, espero que vocês encontrem o caminho do meio ao longo da leitura.

Dos tantos quases acadêmicos que coleciono, um dos que mais gosto é o que quase me fez medievalista. No primeiro semestre da graduação em História, tive um professor legal e sarcástico, que fazia piadas ruins, mas dava aulas interessantes com discussões empolgantes na cadeira de História Medieval. Acontece que ele estava tapando um buraco, pois era especialista em Ensino de História, uma área ainda jovem, e que não existia como disciplina no currículo do meu curso. No segundo semestre daquele ano, entretanto, duas novas professoras chegaram na universidade para assumir as disciplinas nas quais eram especialistas, e foi aí que minha carreira acadêmica começou a se delinear.

Uma das professoras, a de História Antiga, tornou-se minha orientadora do TCC; segui sua trajetória acadêmica, justamente porque ela fez o que eu queria ter feito – Arqueologia Clássica, e essa história eu já contei muitas vezes (Dias, 2019). A outra era uma doutoranda orientada pelo grande medievalista brasileiro Hilário Franco Jr., a profa. Néri de Barros Almeida (atualmente professora titular da UNICAMP).

Néri chegou chegando para tomar as rédeas de sua disciplina, e algo me diz que fomos sua primeira turma de graduação na Universidade pública; ela era uma professora jovem, lindíssima, seríssima e bravíssima. Ela não estava para brincadeiras, dava aulas densas com base em uma bibliografia pesada, toda trabalhada na academia francesa. Até hoje me choco com a nota seis que ela deu ao meu trabalho final sobre a Terceira Cruzada e seu Coração de Leão – como assim, logo pra mim, que amava as Cruzadas?! (Aqui eu PRECISO fazer o comentário de como nós falamos uns negócios esquisitos: quem ADORA as Cruzadas? Dos mesmos criadores de “eu amo a Ditadura”, “eu amo a escravidão”, acho que é assim que nascem os especialistas. Mas imperdoável aquela nota seis, ainda mais porque mandei digitar o trabalho final. Não tinha computador para trabalhar em casa em 1995, escrevia-se tudo à mão… Internet? Jamais. Se existisse, eu estaria usando o ChatGPT, mas na época usei o Guia do Estudante impresso e a Barsa. Ou seja, mereci a nota seis, mas não me conformo…).

Mas voltando: a profa. Néri, naquele momento, não era minha pessoa predileta. Eu gostava da disciplina, mas achava a docente brava demais, exigente demais, talvez inacessível demais. Muito mais tarde, quando eu virei professora, que entendi: quando somos muito novas na docência universitária, e ainda estamos no doutorado de uma universidade de renome, sendo orientadas por celebridades com mais renome ainda, é difícil não reproduzir algumas das coisas pelas quais passamos. Não sei se era exatamente o caso dela, mas para mim essa explicação satisfaz: se éramos mesmo sua primeira turma, e ela ainda discente em um programa de doutoramento exigente, não teria como ela fazer diferente; ela iria buscar a excelência que provavelmente exigiram dela em todos os seus percursos acadêmicos.

Mas para mim e minha autocrítica, aquele semestre não foi nada fácil.

Diferente de muitos colegas da faculdade, eu era uma aluna bem ruim no primeiro ano, tímida, permanecia sempre calada e tirava notas medíocres (e era pouco festeira, quase não saía de casa, sabia nem o que era álcool). Mas ao longo dos semestres fui melhorando consideravelmente as notas, com médias nove ou dez em algumas disciplinas. Também fui bebendo mais e indo em todas as festas – mas não tratemos disso agora.
O meu curso era de licenciatura e bacharelado, saíamos habilitados nas duas modalidades, o que sempre achei perfeito para uma formação em História. A grade curricular era fechada e, portanto, começávamos e terminávamos o curso na mesma turma, ao mesmo tempo, com as mesmas disciplinas, créditos e colegas. Só nos separávamos para as disciplinas optativas – “optatórias”, como chamávamos, porque era obrigatório escolher uma entre as ofertadas no segundo semestre. E foi em uma dessas matrículas que eu escolhi frequentar História da Igreja, ministrada pela brava profa. Néri. Mas isso foi já no sexto semestre, e daquela medíocre nota seis do primeiro ano, fui promovida (por mim mesma) à nerdzinha querida de média final 9; a aluna perfeita que lia todos os textos, participava das aulas e olhava feio para coleguinhas que conversavam e não contribuíam. E me tornei a que entendia *tudo* de Igreja Medieval, me sentindo muito pesquisadora, intelectual que lia textos em língua estrangeira, e os discutia, muito segura, com a especialista da área que não me assustava mais.

Foi um assunto que quase poderia ter alterado meus rumos acadêmicos, caso eu já não estivesse no segundo ano de pesquisa do TCC, cuja temática segui por toda a vida: a cerâmica grega que estudei nas pesquisas de mestrado, doutorado e nos trocentos pós-docs que fiz. E que inclui, ainda, o Laboratório de Estudos sobre a Cerâmica Antiga, o LECA, que criei, instalei e coordenei na UFPel, de 2011 a 2023. Laboratório esse que, por pelo menos seis anos, carregou também o nome e os primeiros pesquisadores do POIEMA, os bárbaros Maurício Albuquerque, Diego da Rosa e Ricardo Stone. Fomos LECA-POIEMA por muito tempo, e em várias atividades promovidas pelo LECA, pude contar com queridos colegas medievalistas para nos ensinar melhor sobre a área, como a coordenadora do POIEMA-UFPel, prof. Dra. Daniele Gallindo, os coordenadores do LAPEHME-UNIPAMPA, prof. Dr. Edison Cruxen; do LATHIMM-UFRJ/USP, prof. Dr. Gabriel Castanho; do Virtù-UFSM, prof. Dr. Francisco Mendonça; e a coordenadora do LEME-núcleo UFTM, profa. Dra. Claudia Bovo, além de tantos alunos com interesse nessa incrível área.

Mas meu caso medieval começou de verdade quando a profa. Néri deu uma palestra em 1997, intitulada “Festa, ociosidade e utopia na Terra da Cocanha (1567) de Pieter Bruegel”. O impacto que aquele quadro de Bruegel causou em mim é meio inexplicável – eu me lembro até hoje a disposição da sala de aula, onde eu me sentei e como eu vi a obra pela primeira vez. Não tinha datashow, tela, ou computador disponíveis; o que tinha ali na minha frente era uma reprodução da obra impressa em papel simples, talvez um sulfite A3, preso em um daqueles cavaletes de pintor.

A palestra seguiu, basicamente, os estudos do prof. Hilário que foram publicados em seu livro de 1998, “Cocanha: A história de um país imaginário”. A professora fazia uma análise da imagem, dos significados, das representações naquele quadro específico, contextualizado em meio a uma vasta documentação sobre a Cocanha, um país imaginário composto pelos ideais de abundância, ociosidade, juventude e liberdade. Me lembro que, por mais que esse país fosse essa maravilha toda, ficou clara na fala da professora a crítica existente na obra: as disputas religiosas, as diferenças sociais e as crises da monarquia, nobreza, burguesia, Igreja e campesinato nos períodos finais da Idade Média. Hoje, consigo ver a importância dessa palestra também em relação à diversidade de fontes, do estudo comparado entre períodos, contextos e momentos históricos, do diálogo multidisciplinar, entre tantas abordagens possíveis que fui aprendendo e procurando desenvolver ao longo de minha formação de pesquisadora e, principalmente, de docente.

Aquela palestra definiu muita coisa que eu só reconheci bem depois. Definiu meu amor pelos artistas medievais dos Países Baixos. Definiu minha veia iconografista, que neguei por muito tempo enquanto ceramóloga e arqueóloga. Definiu o amor pela História da Arte e as horas chorando em frente dos quadros de Bruegel que vi ao vivo em alguns museus. Definiu minha conta bancária, sempre que achava algum novo livro, souvenir, quebra-cabeça dedicado ao pintor ou a alguma de suas pinturas…


***

Corta para os anos 2021-2022.

Ainda em meio ao distanciamento social provocado pela pandemia da Covid-19, quando eu já não mais ia ao ICH-UFPel, pois as aulas eram remotas, também atuei como professora substituta de História Antiga e Medieval, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Dei aulas às turmas de graduação de História, Filosofia e Ciências Sociais, e precisei enfrentar a experiência de encarar o medievo. Estudei horrores sobre o período, me atraquei a uma bibliografia que não lia desde a graduação, e me apoiei na produção e gentileza dos professores citados anteriormente, que me ajudaram em muitos momentos com textos, temas, discussões.

Fiz o programa da disciplina, e decidi incluir uma aula de materialidade e iconografia (Fig. 1) para discutir práticas econômicas e sociais do período, e com uma intenção mui específica: usar o quadro do Bruegel, e recorrer à memória daquela palestra. Foi uma das aulas mais legais que dei, que chamou a atenção dos alunos, que trouxe outras abordagens e discussões em sala de aula. Eu tenho o livro do Hilário, eu li uns trechos; eu tenho muitas reproduções e análises do quadro do Bruegel; eu tenho vários textos discutindo várias coisas sobre aquela sociedade, aquele período. Mas o conteúdo ‘bruegeliano’ da minha aula saiu todinho da memória daquela incrível palestra da profa. Néri, um quarto de século atrás.


Figura 1: Aula 5 – Sociedade Medieval: materialidade, práticas sociais e econômicas. Slide 9, Arquivo Pessoal.

Bem, e nessa minha aula estava esse aluno. Como tudo mais no período pandêmico, até o calendário das festas estava alterado, e o carnaval carioca estava todo bagunçado e fora de época. O aluno trabalhava no barracão da escola de samba, fazia parte da bateria e ornamentação da escola e, naqueles meses, chegava muito tarde em sua casa, exausto dos monta/desmonta, ensaia, desfila, arruma tudo pra hoje e pro próximo ano… Ele faltou em algumas aulas e pediu para que eu o ajudasse com alguns dos temas mais complicados. Mas naquele dia da Cocanha, ele estava lá.

Ele gostou do tema, da análise, das questões sociais abordadas, da discussão, participou dela, inclusive. Depois pediu para conversar comigo após a aula para resolver como fazer o trabalho final da disciplina, já ele não conseguiria ler toda a bibliografia e, embora fosse tentar assistir às aulas gravadas que eu deixava disponíveis durante o curso todo, estava com muita dificuldade de escolher um tema que conseguisse desenvolver no tempo que teria disponível. Eu sugeri que ele fizesse uma tentativa de discussão sobre as questões sociais (e religiosas, e festivas, e utópicas) medievais aproximando-as de seu contexto pessoal de vida: o carnaval carioca.

Ele me mandou seu arquivo com um pouco de atraso. O documento foi nomeado “trabalho mais corrido da vida !!!”. Falta em seu texto a formalidade acadêmica. Falta a citação apropriada da bibliografia, dos autores, e demais referências. Falta a formatação adequada. Mas é um trabalho emocionante e brilhante, em que o aluno conseguiu traçar os paralelos entre as estruturas sociais, entre os que dominam e os que são dominados – ele trata como nobreza e igreja as famílias que detêm os territórios e as agremiações e que, portanto, em suas palavras, mantêm o “controle comercial e cultural dos locais que comandam”. Ele pontua os bairros e as escolas, as famílias tradicionais e personagens que determinam não apenas o carnaval, mas algumas outras questões econômicas – como as que fizeram bastante sucesso numa minissérie de um streaming, recentemente. Ele fala das relações entre presidentes e cartolas – a monarquia, dona daquele território –, e os ‘vassalos’ – carnavalescos e diretores, que decidem e organizam todo o desenho do carnaval. Ele demonstra como esses não são tão poderosos quanto os primeiros, mas suficientemente responsáveis para dominar outros estratos daquela sociedade, como senhores feudais que determinam a vida dos “camponeses de menor prestígio”, como ele os chama. De exemplo em exemplo, o aluno desfilou toda a máquina carnavalesca do Rio de Janeiro, elencando nomes muito conhecidos, mas destacando os braçais anônimos que fazem, de fato, tudo acontecer. Ele fala sobre quão pesada é a vida da festa para aqueles que doam tantas horas de trabalho para as escolas, que pagam suas próprias fantasias, e que às vezes recebem alguma pequena gratificação apenas para que continuem se dedicando. Ele finalizou seu texto demonstrando como toda a reflexão sobre a organização da vida carnavalesca o fez “lembrar o momento da aula em que a professora disse que ‘Os plebeus precisam existir, assim como as suas necessidades, para que as classes acima deles possam se vangloriar das suas caridades’”.

Para mim, o trabalho cumpriu o que propôs. E foi além: trouxe para a realidade contemporânea, a lógica e as discussões de um período anterior, de um contexto completamente diverso, de uma linguagem diferente. Informou, discutiu, colocou em discussão a alteridade, as identidades, as particularidades, as fronteiras. Validou a reconstrução histórica tanto das sociedades do passado como as da atualidade, daquelas imaginárias e das concretas.

O que, afinal, um historiador procura, ao olhar para o passado?

***

Na resenha do livro de seu mestre, a profa. Néri diz que

O autor foi sensível ao perceber a oscilação da obra entre mito e utopia – entre presente eterno e proposta de futuro, entre o gozo presente e o retorno ao passado –, entre o comum e o particular, e sobretudo, sua colocação ambígua entre a crítica e o desejo, enfim, em suas próprias palavras, como “catarse em relação ao presente” e “utopia em relação ao futuro” (p.164) (Souza, 1998, p. 142).

A Cocanha é essa fartura.
Ela reúne os encantamentos, as memórias, as trocas. Ela é aquela palestra, vista e enraizada em mim por muitos anos; ela é a coleção de experiências visuais, de todas as leituras e discussões acadêmicas; ela é a área específica que segui, e também aquela que quase; ela é a experiência daqueles dias em sala de aula; daqueles dias dentro do computador, em classes interestaduais; ela está nas reflexões e escritas de um aluno; nas minhas leituras e correções de trabalhos.
É a catarse e a utopia do ofício e da vida desta pesquisadora e docente que vos escreve .[2]

Referências:

DIAS, C. K. B. Vai voltar pra escola sim! A interação necessária entre a academia e a comunidade. In: ____, _____; OGAWA, M. R. A.; SANTOS, D. F. dos. (org.). A universidade vai à escola: uma experiência de professores universitários no Cursos Popular UP. Porto Alegre: Casaletras, 2019, v. 1, p. 17-28.

FRANCO JR., H. Cocanha: A história de um país imaginário. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.

SOUZA, N. A. Cocanha: A história de um país imaginário. Revista de História, São Paulo, n. 139, 1998, p. 139-144.

[1]  Doutora em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia, da Universidade de São Paulo (MAE-USP).  Membro do Laboratório de Estudos sobre a Cerâmica Antiga, LECA – UFPEL. (carol.kesser@gmail.com). Lattes: http://lattes.cnpq.br/1927341823687401.

[2] Agradeço ao convite feito pela Comissão Organizadora do Blog do POIEMA, e pela paciência com meus atrasos. À profa. Daniele Gallindo, porque não soltou nunca a minha mão. À profa. Néri, pelo meu medievo, e pelo Bruegel que ela me apresentou. Aos alunos de todas as épocas, e lugares, e laboratórios unidos. Ao Leonardo e seu carnaval carioca. Aos quase, e aos que são.

 


Publicado em 22 de Outubro de 2024.

Como citar: DIAS, Carolina Kesser Barcellos. A minha Cocanha particular. Blog do POIEMA. Pelotas: 22 out. 2024. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/a-minha-cocanha-particular. Acesso em: data em que você acessou o artigo.