Rory MacLellan[1]
No quadragésimo segundo milênio, do jogo de mesa Warhammer 40.000, quase toda a humanidade vive sob o domínio do Imperium of Man (o Império da Humanidade). Um regime horrivelmente opressivo – travado em uma batalha interminável por sobrevivência contra alienígenas e forças demoníacas – onde nenhuma resistência é tolerada e quase nenhum avanço ou progresso científico é permitido. Uma sombria Inquisição erradica a heresia e a mutação, condenando exércitos inteiros à morte pela menor infração, enquanto dez mil almas são sacrificadas todos os dias para sustentar o comatoso Imperador, mortalmente ferido, fundador divino do Império. Tudo no cenário é um exagero, uma efetiva caricatura. O slogan do jogo, “Na escuridão sombria de um futuro distante, só existe guerra” [In the grim darkness of the far future there is only war], deu origem ao termo grimdark, sinônimo de algo especialmente sombrio ou distópico, e atualmente um subgenênero literário de ficção especulativa.
As principais das inúmeras campanhas militares do Imperium são conhecidas como cruzadas e são lançadas apenas pelas mais altas autoridades do Imperium, os Grão-Senhores da Terra (High Lords of Terra) (Ultramarines 2nd ed,1993, p. 59). Desde a Grande Cruzada, dez mil anos atrás, que estabeleceu o Imperium, até a Cruzada Indomitus dos “dias atuais” do cenário, essas campanhas podem ser dirigidas contra todo e qualquer inimigo em toda a galáxia, são de grande escala e duram décadas ou mais. Alguns grupos dentro do Imperium levam as cruzadas ainda mais adiante, como o Capítulo[2] dos Templários Negros (Black Templars Chapter) dos Space Marines. Esses supersoldados geneticamente modificados têm travado uma cruzada sem fim desde a sua fundação, dez mil anos antes.
Os fãs do jogo e de seu mundo podem pensar que esta representação de cruzadas é exclusiva de Warhammer 40.000: guerras santas sem fim, apenas mais uma invenção do futuro grimdark do jogo, um exagero da história. Embora isso bem descreva a Grande Cruzada que durou séculos, e a escala dessas guerras como um todo, a ampla e constante cruzada do Imperium tem uma base histórica no movimento das cruzadas medievais.
Além de Jerusalém
A opinião popular sobre as cruzadas ainda interpreta essas guerras como sendo dirigidas principalmente à Terra Santa. Ela leva em consideração as nove cruzadas numeradas – desde a Primeira Cruzada em 1096, que terminou em 1099 com a captura de Jerusalém e o estabelecimento de quatro Estados Cruzados na Palestina e na Síria, até a Nona Cruzada em 1271-72, e termina em 1291, quando Acre, o último reduto dos cruzados, caiu nas mãos do Sultanato Mameluco. Mas os estudiosos das cruzadas, há muito, expandiram o âmbito dos movimentos, tanto geográfica como cronologicamente.
O historiador Giles Constable propôs que havia quatro escolas principais de historiografia de cruzadas, de formas de definir o que eram as cruzadas. As quatro escolas identificadas por Constable foram Tradicionalistas, Pluralistas, Generalistas e Popularistas. A definição Tradicionalista de cruzada é basicamente a visão de 1096 a 1291: Jerusalém e a Terra Santa detêm um status especial nas cruzadas e apenas as expedições dirigidas para lá realmente contam como cruzadas “reais”. A visão Pluralista é muito mais expansiva, afirma que qualquer expedição realizada com privilégios religiosos especiais do Papa, uma bula de cruzada concedendo a remissão completa dos pecados cometidos por aqueles que empreendem a cruzada, e com os participantes fazendo votos penitenciais, foi uma cruzada. Os Generalistas sustentam que as cruzadas eram apenas parte de uma tradição muito mais ampla de guerra cristã e rejeitam a definição das cruzadas como uma entidade separada. Finalmente, os Popularistas veem as cruzadas como movimentos populares de massa alimentados por crenças proféticas e apocalípticas, sendo a Primeira Cruzada o exemplo mais forte disso (Riley-Smith, 2009, p. xi-xii).
Tal como acontece com qualquer divisão estrita, existem nuances e complexidades que são suavizadas por estas quatro escolas e a maioria dos historiadores das cruzadas veria pontos fortes e fracos em cada uma delas. Hoje, a posição dominante é em grande parte Pluralista, tendo em conta a ampla cronologia e geografia dessa definição, ao mesmo tempo que reconhece a ênfase dos Tradicionalistas no estatuto especial de Jerusalém, o destaque que os Popularistas dão ao milenarismo e à participação das massas, e a posição dos Generalistas de ver as cruzadas dentro de um contexto mais amplo de guerra santa cristã e violência eclesiástica.
Sob esta definição Pluralista dominante, as cruzadas expandem-se de um pequeno número de campanhas ao Oriente Próximo, para abranger o Norte de África, o Norte da Europa, a Espanha, a França e a Europa Oriental. A chamada Reconquista em Espanha e Portugal, que viu os estados cristãos conquistarem os governantes muçulmanos do sul da península Ibérica, foi tratada como cruzada. Ela foi apoiada por bulas de cruzadas e alguns papas até rogaram aos cavaleiros espanhóis a permanecerem em casa e lutarem por lá, em vez de irem para Jerusalém. Urbano II, cujo discurso em Clermont em 1095 levou à Primeira Cruzada, ofereceu aos que lutavam na Espanha a mesma remissão de pecados que aos que iam à Palestina. Seu sucessor, Pascoal II, tentou proibir os cavaleiros espanhóis de viajar para o Oriente, pois isso poderia prejudicar o esforço de guerra na Península Ibérica (Riley-Smith, 2009, p. 16).
No Norte da Europa, os povos pagãos do Báltico foram alvo de cruzadas a partir do final da década de 1140. Ao longo de três séculos, os pagãos prussianos, livonianos, estonianos e lituanos seriam cristianizados na ponta de uma espada por homens que recebiam indulgências das cruzadas (Riley-Smith, 2009, p. 17). A conquista das Ilhas Canárias, iniciada por dois cavaleiros normandos em 1402, foi apoiada por uma bula cruzada e a crônica da sua campanha apresenta a guerra como uma cruzada (Jensen, 2007, p. 182, rodapé 103). A conquista de Ceuta, em Marrocos, por Portugal, em 1415, também foi tratada como uma cruzada.
Os alvos não eram apenas os não-cristãos. Os cátaros do sul da França, nos séculos XII e XIII, e os hussitas da Boêmia, no século XV, eram ambos grupos cristãos que o Papa considerou heréticos, lançando várias expedições cruzadas contra eles. Antes da Quarta Cruzada saquear Constantinopla em 1204, então governada pelos cristãos ortodoxos, alguns dos cruzados argumentaram que eles seriam um alvo legítimo, pois rejeitavam o Papa (Riley-Smith, 2009, p. 18). Na década de 1290, quando o Papa lutou contra os seus inimigos políticos em Roma, a família Colonna, convocou uma cruzada contra eles. Em 1421, o Parlamento inglês pediu a Henrique V que apresentasse uma petição ao Papa para uma cruzada contra os irlandeses devido à sua resistência ao domínio inglês. Na década de 1290, quando o Papa lutou contra os seus inimigos políticos em Roma, a família Colonna, convocou uma cruzada contra eles (Riley-Smith, 2009, p. 20). Em 1421, o Parlamento inglês pediu a Henrique V que apresentasse uma petição ao Papa para uma cruzada contra os irlandeses devido à sua resistência ao domínio inglês.
A passagem do período medieval para o moderno, por volta do início do século XVI, faz com que as cruzadas continuem no Mediterrâneo e se expandam muito além, levadas pela colonização europeia em todas as direções. A invasão de Marrocos por Portugal em 1578 foi apoiada por bulas cruzadas, tal como a Armada Espanhola enviada contra a Inglaterra protestante em 1588. Ligas cruzadas lutaram contra o Império Otomano pelo controle do Mediterrâneo até 1697. Os diários de Cristóvão Colombo mostram que ele esperava que uma rota ocidental para a Índia e a riqueza que ela traria levassem à recaptura de Jerusalém (Hamdani, 1979). Em 1514, Cristiano II da Dinamarca e Noruega recebeu do Papa uma bula de cruzada para uma expedição à Índia através do Oceano Ártico (Jensen, 2007, p. 195). Na África, o reino do Kongo, convertido ao cristianismo pelos portugueses, assumiu as vestimentas dos cruzados, inclusive portando uma bandeira com uma cruz que havia sido abençoada pelo Papa contra seus inimigos. Em 1509, o Rei Afonso I do Kongo afirmou que uma cruz e São Tiago apareceram no céu antes dele lutar contra o seu irmão pagão pelo trono, um episódio que não estaria fora de lugar numa crónica da Terceira Cruzada (Simmons, 2022). Tiago foi por muito tempo considerado um santo cruzado, tornando-se conhecido na Espanha como Santiago Matamoros, “matador de mouros”. Quando a Espanha iniciou a conquista das Américas, surgiu uma nova variante, Santiago Mataindios, “matador de índios”. Embora estas campanhas não fossem apoiadas por bulas papais, a retórica e as imagens das cruzadas continuaram, e as novas colónias de Espanha pagariam impostos das cruzadas para apoiar as campanhas na Europa (Tyerman, 2019, p. 431).
O Imperium promovendo cruzadas em todas as direções – contra hereges e aliens, ou internas para acertar contas políticas – é pouco diferente do panorama da Europa medieval e do início da era moderna, de cruzadas contra alvos muito para além do Oriente Médio. Um dos livros-fonte do jogo, da década de 1990, Codex Ultramarines, é uma das poucas fontes que oferece uma definição direta de uma cruzada em Warhammer 40.000, e ela se parece muito com a interpretação Pluralista:
Somente os próprios Grão-Senhores da Terra podem declarar uma Cruzada […] Quando uma Cruzada é declarada, é provável que seja contra Senhores hereges, governos planetários rebeldes que se voltaram contra o Imperium pelas suas próprias razões egoístas. Uma Cruzada também pode ser declarada contra mundos alienígenas ou planetas recém-descobertos que estão além da luz do Imperador (Ultramarines 2nd ed,1993, p. 59).
Tal como na Europa medieval, o lançamento de uma Cruzada Imperial é autorizado por uma autoridade suprema, com um componente religioso, uma vez que entre os Grão-Senhores está o Eclesiarca, chefe do Adeptus Ministorum, a igreja estatal e burocrática do Imperium, e estas campanhas podem ser dirigidas contra todos e quaisquer seus oponentes.
Uma sociedade baseada em cruzadas
As cruzadas são difundidas em toda a sociedade Imperial, é o método padrão de travar grandes campanhas, enquanto os indivíduos podem assumir voluntariamente um voto de cruzada ou ter um imposto sobre eles como punição ou penitência. A pregação e a tributação maciça utilizada para recrutar e financiar as cruzadas significariam que mesmo os não-combatentes seriam afetados.
As cruzadas estavam igualmente arraigadas na sociedade medieval. Tornaram-se uma parte central das ideias de cavalaria e realeza, sendo a cruzada o sinal de um bom cavaleiro ou governante. No Báltico, cavaleiros de toda a Europa podiam juntar-se aos Cavaleiros Teutónicos no seu reisen de verão, uma espécie de pacote de férias medieval com os cavaleiros visitantes participando em festas e torneios antes de saquearem a Lituânia pagã. Os impostos das cruzadas foram instaurados em toda a Europa e mesmo fora dela. Urnas de coleta seriam colocadas nas igrejas paroquiais, apoiados pela pregação pública. Começando com o Segundo Concílio de Lyon em 1274, os impostos das cruzadas foram expandidos até nas colônias nórdicas da Groenlândia. Em 1327, eles pagaram isso na forma de dentes de morsa (Jensen, 2007, p. 161-162). Mesmo na morte, as cruzadas continuaram, com pessoas deixando heranças para a Terra Santa. No seu testamento de 1355, Elizabeth de Burgh, condessa do Ulster, deixou 100 marcos para cinco homens armados irem para o Oriente “ao serviço de Deus e à destruição dos seus inimigos” (Nichols, 1780, p. 30).
Terras que não estavam na fronteira das cruzadas até inventaram ou exageraram a existência de vizinhos não-cristãos para reivindicar o seu lugar no movimento mais amplo. Várias fontes dinamarquesas e norueguesas dos séculos XV e XVI afirmam que enfrentavam a sua própria zona fronteiriça que rivalizava com aquela que ficava do outro lado do Mediterrâneo. Mapas e cronistas retratam a Escandinávia como acuada ao norte por pagãos fictícios, incluindo amazonas, gigantes, unipedes e pigmeus, bem como por culturas reais deslocadas, como tártaros, cumanos e carelianos, todos vivendo muito ao norte e sempre prontos para atacar (Jensen, 2007, p. 180, 190-191).
Cruzados profissionais
Os cruzados profissionais e vitalícios de Warhammer 40.000, os Templários Negros, também têm contrapartes medievais, principalmente nas ordens religioso-militares que lhes deram o nome. Surgidas no início do século XII, as ordens militares combinavam a vida monástica com a de cavaleiro. Os mais famosos deles foram os Cavaleiros Templários, que dão o nome aos Templários Negros, embora o símbolo da cruz de Malta e o uniforme preto e branco do capítulo sejam retirados de outra ordem militar: os Cavaleiros Hospitalários, enquanto seus nomes e títulos germânicos são uma referência a uma terceira ordem: os Cavaleiros Teutônicos. Estas três ordens medievais levaram a cabo algo similar à eterna cruzada dos Templários Negros. Embora não fossem tecnicamente cruzados, já que os membros das ordens militares geralmente não faziam votos de cruzada, eles continuaram a lutar nas fronteiras da Europa muito depois das principais expedições cruzadas terem regressado à casa ou terem cessado completamente. Elas foram originalmente criadas em resposta à escassez de mão de obra nos Estados Cruzados, que precisavam de uma força militar permanente lá, que não entrasse e saísse com cada expedição. O seu papel militar não terminou com a perda do Acre em 1291. Os Hospitalários mudaram-se primeiro para Chipre, depois para Rodes e então Malta, onde permaneceram até a sua conquista por Napoleão em 1798. Durante todo o tempo, travaram uma guerra naval contra o Império Otomano e os seus aliados, os Corsários da Barbária. Os Cavaleiros Teutónicos estabeleceram-se no Báltico no início do século XIII, governando o seu próprio estado durante mais de trezentos anos, durante os quais guerrearam contra a Lituânia pagã. Mesmo depois que a Reforma os expulsou do Báltico, a ordem continuou a formar um regimento no exército austro-húngaro até 1918. Essas são apenas as três maiores ordens militares, muitas outras proliferaram por toda a Europa, particularmente na Espanha e Portugal. Propostas para novas ordens militares ocorreram ao longo dos séculos XVI e XVII, tendo a última sido fundada em 1891. Tal como o Imperium, essa foi uma sociedade permeada pela ideia de guerra santa.
Em termos de seu escopo – ao atingir todo e qualquer inimigo em toda a galáxia – e sua difusão – seja nas cruzadas como um ato de penitência ou na existência de cruzados permanentes como os Templários Negros – as cruzadas imperiais têm muito em comum com as cruzadas medievais e do início do mundo moderno. Embora possa ter sido concebido como uma caricatura do fanatismo medieval, ela está surpreendentemente próxima do passado real.
Bibliografia selecionada
CONSTABLE, Giles. Crusaders and Crusading in the Twelfth Century. Abingdon: Routledge, 2009.
HAMDANI, Abbas. Columbus and the Recovery of Jerusalem. Journal of the American Oriental Society, vol. 99, no. 1, 1979, p. 39-48. JSTOR, https://doi.org/10.2307/598947. Accessed 20 Sept. 2024.
JOHNSON, Jervis; MERETT, Alan; PRIESTLEY, Rick. Ultramarines. Games Workshop; Nottingham: Reino Unido, 1993.
JENSEN, Janus Møller. Denmark and the Crusades, 1400–1650. Leiden; Boston: Brill, 2007
NICHOLS, John (ed.). A Collection of all the Wills, Now Known to be Extant, of the Kings and Queens of England, Princes and Princesses of Wales, and Every Branch of the Blood Royal, from the Reign of William the Conqueror, to That of Henry the Seventh Exclusive. London: J. Nichols, 1780.
RILEY-SMITH, Jonathan. What Were the Crusades? London: Ignatius Press, 2009.
SIMMONS, Adam. The African Adoption of the Portuguese Crusade during the Fifteenth and Sixteenth Centuries. The Historical Journal, v. 65, n. 3, p. 571-590, 2022.
TYERMAN, Christopher. World of the Crusades. Yale: Yale University Press, 2019
Recordings of panels from the inaugural Warhammer Conference at the University of Heidelberg, Sept. 2024: https://www.youtube.com/@WarhammerConference
[1] Doutor em História Medieval pela University of St Andrews rafmaclellan@gmail.com.
[2] NT: Os Space Marines, originalmente divididos em Legiões, foram reorganizados em capítulos de natureza quasi monástica após o fim da Grande Cruzada
Publicado em 08 de Outubro de 2024
Como citar: MACLELLAN, Rory. Cruzada Grimdark: Warhammer 40.000 e o movimento da cruzada medieval. Tradução: Luiz Guerra. Blog do POIEMA. Pelotas: 08 out. 2024 Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/cruzada-grimdark-warhammer-40-000-e-o-movimento-da-cruzada-medieval. Acesso em: data em que você acessou o artigo.