O MONGE NEGRO EM O NOME DA ROSA

Richard Utz (Ivan Allen College of Liberal Arts at Georgia Tech)

Aqueles acostumados com as representações atuais de temáticas medievalistas em filmes e programas de TV tomam por garantida a inclusão de personagens e atores negros. O Cavaleiro Verde, filme de 2021 do diretor David Lowery, escala o ator anglo-indiano Dev Patel como Sir Gawain; a série da Netflix The Witcher (2019 – ) escala a atriz negra britânica Mimi Mimî Michelle Ndiweni (desde 2021 creditada como Mimî M. Khayisa) como Fringilla Vigo; Os Anéis do Poder da Amazon (2022 – ), escala um porto-riquenho de ascendência africana, Ismael Cruz Córdova como Arondir, um elfo silvano, e Sophia Nomvete, uma atriz de ascendência irano-africana, como a princesa Disa, uma anã; finalmente, Casa do Dragão (2022 – ) apresenta a Casa Velaryon de Driftmark, uma família inteiramente negra, notadamente escalando Steve Toussaint, um ator de origem barbadiana, como seu patriarca Lord Corlys.

Esta inclusão de personagens não brancos em Casa do Dragão marca um afastamento consciente do universo original de Game of Thrones que, apesar de ser uma obra de fantasia, apresentava um mundo medieval povoado quase inteiramente por atores brancos. Esta mudança deliberada lembra-nos que a indústria cinematográfica e televisiva se subscreveu, até recentemente, à noção de que todas as representações da Idade Média histórica, ou narrativas situadas em mundos medievais, precisavam de ser exclusivamente eurocêntricas. Sempre que tais noções e normas de elenco eram desafiadas, essas obras eram acusadas de serem representações, alegadamente, anacrônicas de histórias europeias medievais. Uma desses ocorridos foi em 1991, quando o diretor Kevin Reynolds incluiu o personagem Azeem, interpretado por Morgan Freeman, no filme de aventura Robin Hood: Príncipe dos Ladrões. Dado o contexto do filme na Inglaterra do século XII, críticos argumentaram que a inclusão de um mouro era licença poética demais. E alguns leem, uma das cenas mais cativantes do filme, como uma mensagem política dirigida mais ao público americano do início da década de 1990, do que representativa da Inglaterra medieval:

Azeem : Salaam, pequenina.

Menina: Deus pintou você?

Azeem: Deus me pintou? [risos] Com certeza.

Menina pequena: Por quê?

Azeem: Porque Allah ama a maravilhosa variedade.

Como a lenda de Robin Hood é uma tradição narrativa ficcional, sem qualquer fonte “original”, é ridículo afirmar que a inclusão de um único personagem negro torna a história anacrônica. Além disso, pesquisas realizadas nas últimas três décadas, como por exemplo os estudos de William Chester Jordan sobre os convertidos do Islam na França do século XIII, reconheceram como mais provável a existência de pelo menos algumas pessoas não brancas no contexto. A maioria dos filmes e séries de TV atuais reconhecem essa possibilidade em toda a Europa medieval.

Mesmo antes de Robin Hood: Príncipe dos Ladrões, de 1991, a adaptação cinematográfica do romance best-seller de Umberto Eco, Il nome della rosa (1980, tradução para o português, O Nome da Rosa, 1983), deu um sinal para outros meios de comunicação modernos. Embora baseado em uma narrativa inteiramente fictícia, os produtores e diretores da versão cinematográfica anglófona, The Name of the Rose (1986) – estreladando Sean Connery, F. Murray Abraham e Christian Slater como detetives que investigam uma série de assassinatos em um mosteiro medieval – exigiram o mais alto grau de “autenticidade” para criar uma verossimilhança histórica: as tomadas internas foram feitas na abadia cisterciense de Eberbach, na Alemanha. Para as tomadas externas, incluindo a torre da biblioteca de 30 metros de altura, a Constantin Film ergueu um dos maiores cenários da história do cinema europeu. Na verdade, os designers de produção e os cineastas criaram um grau tão elevado de minúcias – desde os mais pequenos utensílios de cozinha e hábitos de monge tecidos à mão até às grandes cubas de banho, enormes candelabros de ferro, bancos e mesas – que os educadores científicos, mais tarde, escolheriam o filme como uma fonte confiável para o ensino do nascimento da ciência moderna. As páginas manuscritas visíveis durante o filme foram consideradas por especialistas tão bonitas e historicamente precisas que algumas estão agora em exibição em museus europeus.

E, ao contrário da maioria dos filmes e séries de TV medievalistas das décadas de 1960 a 1990, o diretor francês Jean-Jacques Annaud estendeu seu desejo de autenticidade à seleção de seu elenco. Quando as agências de elenco dos EUA propuseram apenas “rostos brancos”, ele insistiu em incluir “um mouro” para um dos papéis. Seu raciocínio simples, que explicou ao ator escolhido para interpretar o tradutor Venantius de Salvemec, foi que na Idade Média, “[os mouros] eram os intelectuais”. Na narrativa, Venâncio traduz obras gregas para o latim, habilidade que o torna um especialista muito procurado. O diretor Annaud fez uma leitura substancial de estudos relevantes e recebeu conselhos de especialistas mundiais na Idade Média (Jacques Le Goff, Michel Pastoreau), e por isso manteve a decisão de incluir um “mouro” em seu mosteiro fictício.

O ator negro escolhido para interpretar Venantius foi o suíço Urs Althaus. Enquanto muitos dos atores contratados para interpretar a heterogênea comunidade de monges do filme foram claramente selecionados porque representavam várias deformidades fisionômicas para evocar choque e repulsa, Althaus era exatamente o oposto, um ex-modelo atraente que no passado havia trabalhado para empresas como Yves Saint Laurent, Calvin Klein, Valentino, Armani, Gucci e Kenzo. Aos 21 anos, Althaus se tornara o primeiro modelo negro a aparecer na capa da revista de moda americana GQ. Aos 30 anos, em O Nome da Rosa, ele também se tornou um dos primeiros atores negros escalados para um grande longa-metragem ambientado na Europa medieval. Surpreendentemente, os questionamentos levantados contra a legitimidade histórica da inclusão da personagem de Morgan Freeman em Robin Hood: Príncipe dos Ladrões não foram postos contra Althaus. De alguma forma, seu personagem não-branco não alienou os telespectadores e críticos, considerando-o irrealista e necessitando explicação. Talvez O Nome da Rosa, com seu foco em tradições intelectuais menos acessíveis (nominalismo e realismo medievais, a sobrevivência do segundo livro da Poética de Aristóteles, o conflito entre o papado medieval e a ordem franciscana), tenha sido protegido de tais ataques, porque o público o abordou sem as expectativas que tinham para uma releitura da tradicional narrativa de Robin Hood.

Em 2009, Urs Althaus publicou uma autobiografia, provocativamente intitulada Ich, der Neger. Mein Leben zwischen Highlife und Pleiten (“Eu, o Negro. Minha biografia entre a alta vida e os fracassos”), que se tornou um best-seller na Suíça. No livro, que discute abertamente a sua descida ao consumo de drogas, Althaus nega alguma vez se ter sentido excluído ou discriminado quando cresceu num país majoritariamente “branco”. Filho de pai negro nigeriano e mãe suíça branca, ele afirma ter sua primeira experiência com racismo depois de se mudar para Nova York, aos 21 anos. Ele percebeu que chamar um táxi era um desafio e foi informado com naturalidade que nunca seria colocado junto com uma modelo branca na mesma sessão de fotos. O que ele mais lembra de seu primeiro trabalho como ator, em O Nome da Rosa, foi quando o já mundialmente famoso Sean Connery, em uma coletiva de imprensa, se aproximou e cumprimentou o completamente desconhecido Althaus, dizendo: “Você deve ser Venantius. Eu sou Sean.”

Further reading:

Althaus, Urs. Ich, der Neger. Mein Leben zwischen Highlife und Pleiten. Glockhausen: Wörthersee Verlag, 2009. An Italian translation, by Alessandra Lorenzioni, Io, Aristoteles, il negro svizzero: la mia vita attraverso successi e fallimenti, was published by Bibliotheka Edizioni (Rome) in 2020.

Clark, R. E. “Azeem and the Witch: Race, Disability, and Medievalisms in Robin Hood: Prince of Thieves.” Open Library of Humanities 9(1) (2023). doi: https://doi.org/10.16995/olh.9796

Guerra, Andrea, and Marco Braga. “The Name of the Rose: A Path to Discuss the Birth of Modern Science.” Science and Education 23.3 (2012): 643-54.

Jordan, William Chester. The Apple of His Eye: Converts from Islam in the Reign of Louis IX. Princeton: Princeton University Press, 2019.

Salih, Sarah. “Cinematic Authenticity-Effects and Medieval Art: A Paradox.” In Medieval Film, ed. Anke Bernau and Bettina Bildhauer. Manchester: Manchester University Press, 2009. 20-39.

Utz, Richard. “Authenticity, Neoliberalism, and Socialism: The Name of the Rose (1986).” In Kevin J. Harty and Scott Manning, eds. Cinema Medievalia. New Essays on the Reel Middle Ages. Jefferson, NC: McFarland, forthcoming: 2024, 270-287.


Publicado em 24 de Setembro de 2024.

Como citar: UTZ, Richard. O Monge Negro em O Nome da Rosa. Tradução: Luiz Guerra. Blog do POIEMA. Pelotas: 24 set. 2024. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/o-monge-negro-em-o-nome-da-rosa/. Acesso em: data em que você acessou o artigo.