POR QUE POSTAMOS SOBRE HISTÓRIA ANTIGA? OS CASOS DA ESPARTA BRASILEIRA E DA EGIPTOMANIA NO TWITTER

Ygor Klain Belchior[1]

Por que postamos sobre História Antiga? Essa é a pergunta que a minha pesquisa vem tentando responder. Por mais que ela pareça uma “bobeira” simples de solucionar, não é. E por quê? Porque há uma infinidade de posts sobre História Antiga promovidos pelas pessoas mais diversas, sejam homens, mulheres, crianças, adultos, idosos, estudantes, professores, curiosos, militantes políticos, conspiracionistas ou, até mesmo, alguém que gostou de um meme referenciando, por exemplo, um evento da antiguidade [Fig.1].

[Figura 1. Meme Cavalo de Troia]

Para além da diversidade etnográfica, existe a abundância de mídias sociais. E, em cada uma delas, os usuários fazem um uso distinto de outra plataforma, mesmo que seja uma postagem sobre o mesmo conteúdo.

Não entendeu? Explicarei! No Instagram, é evidente a preferência por imagens (esteticamente “bonitas”), enquanto, no Twitter, é observável a opção por textos. Quando há a escolha por figuras, observamos a elaboração de memes, os quais são bem distintos das figuras “alegres” e “formosas” da outra rede. Isso significa que uma postagem sobre a divindade egípcia Anúbis é muito diferente em ambas as mídias [Figs. 2 e 3]. E, por serem muito díspares, revelam que os interesses na sua divulgação também dependem da plataforma selecionada, considerando ainda a pluralidade de autores(as).

[Figura 2. Anúbis e Bastet no Instagram] [Figura 3. Anúbis no Twitter]

Existe ainda outra dificuldade. E ela é bem mais complicada por envolver uma série de responsabilidades jurídicas: como pesquisar e responder à pergunta sem cometer algum crime?

Com base na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD — Lei 13.709/18), uma postagem em mídia social carrega consigo dados pessoais. E, o tratamento desses dados, conforme o artigo 7º, parágrafo IV, “somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses: para a realização de estudos por órgãos de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais.” [Grifo nosso]. Também é importante mencionar o §4 º do referido artigo da lei, o qual apresenta que “é dispensada a exigência do consentimento para os dados tornados manifestadamente públicos pelo titular”.

Em outras palavras, podemos fazer uma pesquisa com postagens públicas. Porém, é preciso, primeiramente, estabelecer parâmetros legais para a anonimização das pessoas. Pois, durante o estudo, não é permitido revelar dados sensíveis do(a) autor(a). Isto é, as informações sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, saúde ou à vida sexual.

Ainda com base na LGPD, mais especificamente o Art. 11., § 1º, a “divulgação dos resultados ou de qualquer excerto do estudo, ou da pesquisa de que trata o caput deste artigo em nenhuma hipótese poderá revelar dados pessoais”. Mencionamos ainda o § 2º, “o órgão de pesquisa será o responsável pela segurança da informação prevista no caput deste artigo, não permitida, em circunstância alguma, a transferência dos dados a terceiro”.

Por isso, para escrever este texto, as fontes digitais passaram por pseudonimização, que “é o tratamento por meio do qual um dado perde a possibilidade de associação, direta ou indireta, a um indivíduo”. Um procedimento que, muitas vezes, pode parecer estranho aos (às) historiadores(as), tão obcecados pelas referências e a “checagem” da informação.

Dito isso, comentarei os resultados de duas pesquisas desenvolvidas no Laboratório de Estudos e Pesquisas em História Antiga, Medieval e da Arte [LEPHAMA],[2] as quais trabalham com fontes digitais.

A primeira delas, intitulada “Comunistas ou guerreiros pela liberdade: as Espartas Integralista e Bolsonarista”, foi desenvolvida com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais [FAPEMIG] e pelo Programa de Produtividade em Pesquisa [PQ-UEMG].

Visando estudar as diferentes recepções da Esparta antiga para os integralistas da década de 1930 e para os bolsonaristas dos anos 2017 a 2022, teve como fontes, para a última temporalidade, postagens no Twitter cujo conteúdo faz referência aos 300 de Esparta.

Dada a quantidade de dados disponíveis, foi necessário delimitar uma amostragem. Assim, para a investigação, realizei o levantamento das menções a “Esparta”, “espartanos”, “300 do Brasil”, “Leônidas”, “Termópilas”, “Xerxes” e “Éforos”, a partir do uso da ferramenta de buscas do próprio Twitter, considerando o recorte temporal da pesquisa [Fig. 4].

[Figura 4. Espartano anticomunista]

As evidências encontradas foram cadastradas no banco de dados em Microsoft Access, a partir do preenchimento de uma ficha com as seguintes informações: i. código da postagem (número/ano — ex. 01/2017); ii. palavra-chave pesquisada; iii. endereço eletrônico da postagem; iv. endereço permanente da postagem; v. data da postagem; vi. data da coleta; vii. uso de espartana postagem; e viii. texto da postagem (se houver).

E por que fazer um banco de dados? Segundo Almeida (2011, p. 16 – 17), no estudo de fontes digitais, “o historiador torna-se responsável pela análise e pela preservação da informação”. Isso porque as postagens nas mídias sociais são muito voláteis, podendo desaparecer a qualquer momento, seja por exclusão do próprio conteúdo ou do perfil pessoal do autor, seja por ordem judicial ou até mesmo por violar as políticas da rede social na qual foram veiculadas.

E isso é um grande problema. Pois, no Twitter, existe uma enormidade de referências a Esparta a serem utilizadas para uma diversidade de estudos históricos. Uma qualidade documental que arrisca se perder, caso não seja resguardada para a posteridade. Assim, foi realizada a “arqueologia de salvamento” da documentação digital, a partir do arquivamento das evidências coletadas.

Ao longo da pesquisa — e considerando o recorte cronológico dos anos 2017 a 2022 —, foram catalogadas duzentas e cinquenta e duas referências a Esparta. As quais dividi em dezoito “formas”:[3] i. o espartano patriota; ii. o espartano antidemocrático; iii. o espartano monárquico; iv. o espartano anti-imigrante; v. o espartano anticomunista; vi. o espartano líder guerreiro; vii. o espartano homofóbico; viii. o espartano anti-STF; ix. o espartano conservador; x. o espartano cristão; xi. o espartano defensor do ocidente; xii. o espartano anticentrão; xiii. o espartano empreendedor; xiv. O espartano anti-traidores; xv. as espartanas antifeministas; xvi. o espartano anti-deputados do “centrão”; xvii. o espartano anti-Dória; e xviii. o espartano de Curitiba.

Por que, então, os bolsonaristas postaram sobre História Antiga? Para defender as bandeiras políticas da extrema-direita brasileira dos anos 2000. A Esparta antiga foi transformada por esses extremistas em uma sociedade onde indivíduos com valores neofascistas e neonazistas lutaram heroicamente pela liberdade do seu país. O que observamos, portanto, é a defesa de valores históricos da extrema-direita, como o anticomunismo, o conservadorismo e o nacionalismo autoritário, agregados as modernas teorias da conspiração (como o “globalismo” ou o “QAnon”), junto ao projeto e discurso ultraliberal na economia, assim como o apoio a Israel e aos Estados Unidos da América [EUA].

A segunda pesquisa, “A Egiptomania no Twitter: uma proposta de banco de dados (2008 a 2023)”, financiada pelo Programa Institucional de Apoio à Pesquisa da [PAPq / UEMG], objetiva, como o próprio nome diz, construir um banco de dados das referências “egiptomaníacas” no Twitter. O procedimento de coleta é muito semelhante ao que foi usado para estudar os espartanos brasileiros, carregando ainda consigo a mesma preocupação: resguardar tais evidências históricas digitais de serem apagadas e esquecidas com o tempo. Uma qualidade documental que, nesse caso, interessa muito aos educadores.

Bakos (2004) entende a egiptomania como uma poderosa ferramenta para mostrar para o(a) aluno(a) que a História não se trata apenas de fatos do passado, mas de compreender e interagir com o mundo que o(a) cerca. Em outras palavras, quando o(a) estudante aprende a olhar para a História dessa maneira, acaba entendendo a sua própria realidade [Fig. 5].

[Figura 5. Debate racial acerca do Egito antigo]

Quanto à “arqueologia de salvamento”, isto é, o armazenamento da documentação, foi realizado o arquivamento das evidências coletadas, construindo um banco de dados digital. Os tweets, assim, foram inseridos em um documento Microsoft Access, a partir do preenchimento de uma ficha contendo as seguintes informações: i. código da postagem (número/ano — ex. 01/2008); ii. palavra-chave pesquisada; iii. endereço eletrônico da postagem; iv. endereço eletrônico permanente da postagem; v. data da postagem; vi. data da coleta; vii. uso do Egito na postagem (classificação por assuntos); viii. texto da postagem (se houver); e ix. responsável pela coleta (discente bolsista). Em conjunto com o preenchimento da ficha, foi conservada a captura da tela de cada postagem. A imagem é identificada pelo código da postagem, tal como consta na ficha.

Até o momento (abril de 2024), foram coletadas 2.415 evidências, considerando onze categorias, a saber, i. Egito antigo; ii. faraó; iii. Cleópatra; iv. pirâmide; v. esfinge; vi. hieróglifo; vii. obelisco; viii. deus do Egito; ix. religião egípcia; x. egiptomania; e xi. Nilo. A respeito dos dados, para Egito antigo, 443 posts (18,3%), para Faraó, 743 (30,7%), para Cleópatra, 316 (13%), para Pirâmide, 145 (6%), para Esfinge, 247 (10,2%), para Hieróglifo, 116 (4,8%), para Obelisco, 141 (5,8%), para Deuses do Egito, 31 (1,3%), para Religião Egípcia, 29 (1,2%), para Egiptomania, 2 (0,08%), e, por fim, para Nilo, 202 (8,62%).

Por que postamos sobre o Egito? Por vários motivos, dentre eles, para debater o nosso mundo, tal como apresentado na figura 5.

E por que temos que pensar no porquê postamos sobre História? Bem, nos últimos anos, os(as) historiadores(as) começaram a utilizar as mídias sociais como canais de comunicação para ensinar e divulgar suas pesquisas. Apesar dos resultados muito positivos — basta atentar perfis de grupos de pesquisas — esse tipo de abordagem ainda considera que o conhecimento histórico é propriedade das Universidades e deve ser repassado por uma via única: dos(as) pesquisadores(as) — quem tem um diploma — em direção a quem deve ser ensinado/tutelado — muitas vezes entendido como público leigo. Assim, perpetuamos as mesmas “bolhas” sociais (agora digitais), encurralando o conhecimento histórico no meio universitário, mesmo que alcançando lugares longínquos.

A internet, bem mais especificamente, os ambientes das mídias sociais, tornaram-se campos de disputas e de estudos. Basta pesquisar no Google, “o meu professor de História mentiu para mim”, que qualquer um encontrará aproximadamente 467.000 resultados (acesso em 18 fev. 2024) sobre diversas temáticas históricas, as quais vão desde a mais remota antiguidade até agora. Para mim, é indicativo que a História e os(as) historiadores(as) são muito importantes para a sociedade brasileira contemporânea. Afinal, estamos a todo momento falando da disciplina e dos seus profissionais.

Afora os casos comentados, podemos elencar uma enormidade de referências a História Antiga nas mídias sociais: Jair Bolsonaro foi comparado a Nero, os bolsonaristas se autointitularam espartanos, Donald Trump foi reconhecido como Leônidas, Javier Milei identificado como Calígula, múmias são usadas como adjetivos designando discriminação etária, faraó é um vocábulo empregado para designar pessoas ricas e poderosas, obeliscos são confundidos com órgãos sexuais (ex. “pirulitão”; “pirocão”).

Enfim, a antiguidade está nas mídias sociais. E para quem acreditava no fato de ela não pertencer ao presente, tais exemplos permitem dizer que essa(s) pessoa(s) estava(m) errada(s).

Referências

 ALMEIDA, F. C. O historiador e as fontes digitais: uma visão acerca da internet como fonte primária para pesquisas históricas. Aedos. Porto Alegre, v. 3, n. 8, p. 9-30, jun., 2011.

BAKOS, M. (Org.). Egiptomania: O Egito no Brasil. São Paulo: Paris Editorial, 2004.

BRASIL. Lei n° 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Diário Oficial da União: Brasília, DF, n. 157, p. 59, 15 ago. 2018. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm> Acesso em 09 mai. 2024.

GUARINELLO, N. L. Uma Morfologia da História: As Formas da História Antiga. Politeia: História e Sociedade, v. 3, n. 1, p. 41–61, 2010.

[1] Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Professor de História do Mediterrâneo Antigo na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG-Campanha) e Coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em História Antiga, Medieval e da Arte (LEPHAMA). Bolsista de Produtividade em Pesquisa PQ-UEMG. http://lattes.cnpq.br/1078533149935776.

[2] Conheça o LEPHAMA: https://drive.google.com/file/d/10j2wKXytSYp6QXDVlE2MyOnpw7q9EUvQ/view

[3] Conceito elaborado por Guarinello (2010, p. 45–49). “Forma” nos ajuda a entender as imagens de Esparta como construções arbitrárias, que englobam vestígios descontínuos do passado, permitindo a construção, no presente, de novas interpretações e narrativas sobre esse passado. Nesse sentido, a forma “Esparta” brasileira deve ser entendida como o produto de diversas percepções das fontes, da tradição interpretativa, realizadas em contextos temporalmente muito distantes. Mas que, no presente, alude à percepção de que os espartanos compartilhavam os valores do presente, como o militarismo da sociedade, o patriotismo, a xenofobia e o ódio à democracia.


Publicado em 18 de Junho de 2024.

Como citar: BELCHIOR, Ygor Klain. Por que postamos sobre História Antiga? Os casos da Esparta brasileira e da egiptomania no Twitter. Blog do POIEMA. Pelotas: 18 jun. 2024. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/por-que-postamos-sobre-historia-antiga-os-casos-da-esparta-brasileira-e-da-egiptomania-no-twitter. Acesso em: data em que você acessou o artigo.