Texto: Guilherme IX, Duque da Aquitânia e Conde de Poitiers: O Primeiro Trovador

Nilton Mullet Pereira[1]

 

Em torno do século XII, na Europa Ocidental, surgiu uma série de trovadores e de trovadoras, que escreviam versos para serem cantados. Um dos primeiros trovadores foi Guilherme IX, duque da Aquitânia e Conde de Poitiers (1071-1127), ele era avô de uma mulher proeminente na sociedade europeia de sua época, Leonor da Aquitânia (1122-1204), que fora matrona de muitos trovadores, como por exemplo, um dos mais conhecidos, Bernard de Ventadour.

Guilherme IX pode ter sido um paradoxo, daqueles que a História procura explicar como parte de um contexto determinado, mas que, ao mesmo tempo, foge e escapa desse contexto, fazendo desmoronar as sínteses e as caracterizações gerais. Este artigo poderia se ocupar da própria Leonor, neta de Guilherme, para mostrar como uma sociedade masculina e misógina, conviveu com uma mulher, cujo poder atravessou os nascentes reinos de França e Inglaterra; ou se ocupar das trovadoras – Trobairitz – poetisas que inverteram a corte do amor, dando protagonismo para as mulheres, mas essas são histórias que já vem sendo contadas pela medievalística, ainda que pouco conhecidas nas salas de aula da Escola Básica.

Por que a ideia do paradoxo? Para pensar uma escrita da história em que os contextos não possam diminuir a força de formas de existência que destoam das caracterizações gerais que fazemos dos períodos históricos. Existências como as Trovadoras, Leonor ou mesmo Guilherme.

Quando nos pomos a contar uma história, seja na sala de aula ou fora dela, tendemos a expor um fragmento de vida, que adquire sentido quando explicado por um contexto. Ou seja, o contexto como um conjunto de elementos sociais, econômicos, ideológicos, culturais que explica e dá sentido à existência daquele fragmento de vida (fenômeno ou acontecimento). Aprendemos assim e repetimos, como se essa fosse a única forma existente de relação com o passado e de produção do sentido.

Contudo, pensamos, hoje, em uma descrição histórica menos preocupada em apresentar apenas e simplesmente fenômenos explicáveis pelos seus contextos. A escrita da História e sua expressão na sala de aula está mais atenta a ultrapassar o limite de sentido e mostrar que os contextos são construções, repletas de figuras de razão, que integram e sistematizam os acontecimentos de forma sempre arbitrária. Esse processo de integração e sistematização, realizado pelas historiadoras e professores de História, deixa rastros que são existências, formas de vida, práticas sociais, pessoas, que, ou foram esquecidas em função de questões políticas e de poder ou foram simplesmente excluídas porque eram simulacros estranhos à lógica e à sistematização realizada.

Então, se construímos a ideia de que o mundo medieval era dominado pela moral cristã/católica e que não havia espaço para desvios, esquecemos e excluímos, pessoas e práticas que foram deixadas pelo caminho, não somente inexplicáveis ou vistas como “a frente de seu tempo”, mas também esquecidas e invisibilizadas, como é o caso, por exemplo, das mulheres trovadoras.

Contudo, faz muito que a medievalística, a pesquisa em Idade Média, tem se ocupado de vidas pouco explicadas pela ideia geral que temos, hoje, sobre o medievo (misoginia, moral cristã, guerras e pestes – ainda que esses elementos fizessem parte sim da vida das pessoas daquela época, assim como também de outros momentos históricos). A pesquisa tem se ocupado em descolonizar a Idade Média; em pensar a raça na Idade Média; em tematizar as relações entre os sexos; em realizar uma história das mulheres e uma infinidade de questões, estranhas a ideia de medievo que ainda hoje transita, mesmo nas escolas, mas também em jogos, em séries ou no cinema.

Guilherme IX era um personagem fugidio. Explicável pelo contexto em que a sistematização histórica criou para ele, e, ao mesmo tempo, fora e exteriorizado em relação tanto à moral cristã, quanto às próprias regras do amor cortesão.

Guilherme não era apenas um trovador, o primeiro, talvez, que se tenha notícia, ele era também um grande senhor, tinha domínios mais extensos do que o rei da França, superando esse em poder e riqueza. Ademais, Guilherme era um senhor da França meridional, sempre em rota de colisão com o Clero Católico. Fora excomungado por duas vezes dos quadros do catolicismo. Em uma das vezes em que foi excomungado, conforme se lê na Vida[2] do trovador, satirizou o bispo, em função do fato de o religioso ser careca. Visto como desordeiro e brincalhão, escreveu versos sensuais, jocosos, mas, também, delicados, que deram forma ao amor fino, ao amor cortês.

Temos 11 cansos de Guilherme IX, escritas em Lingua D’oc e traduzidas para o português. Nessas 11 cansos, Guilherme foi, ao mesmo tempo, fanfarrão, sensual e cortês. Ele criou versos que podem ser vistos como satíricos, sensuais, corteses e um canto de arrependimento. O senhor da Aquitânia, portanto, vai do burlesco ao amor fino; da crítica à Igreja ao arrependimento. A organização das cansos, do número 01 até o número 11, em três grupos, sendo o primeiro grupo de poesias satíricas, o segundo grupo de versos corteses e o último grupo de cansos de arrependimento, não demonstra uma evolução do lirismo do trovador, nem nos permite supor uma sequência de criação, pois essa organização foi feita pelo crítico Alfred Jeanroy, na primeira metade do século XX.

No canto I, Guilherme mostra aos seus companheiros de mesa e bebida, elementos de luxúria, de prazer e de adultério, reforçando suas desavenças com o Clero Católico e estando bem longe do que se convencionou chamar de amor cortês (uma forma de amor pura e delicada, caracterizada pelo enaltecimento da Dama e por um amor puro, quase sem relação carnal). Diz ele: “I. Companheiro, farei um verso conveniente,/Que terá mais loucura, não sensatez,/E será todo mesclado de amor, de alegria e de juventude”.

Na canso V, o caráter luxurioso assume protagonismo, pois Guilherme conta a história de duas mulheres casadas com um peregrino supostamente mudo. O tom luxurioso pode ser observado pelas seguintes estrofes:

VI./ “Irmã”, disse Dona Agnes à Dona Ermesina,/
“Encontramos o que queríamos!”/
“Irmã, pelo amor de Deus, o alberguemos,/
Pois ele é totalmente mudo,/
E por ele nosso propósito/
Não será conhecido”./

VII./ Uma me tomou sob seu manto/
E me colocou em seu quarto, perto da lareira./
Saibais que a mim foi bonito e belo,/
O fogo foi bom,/
E me esquentei à vontade/
Junto aos grossos carvões./

O canto X, considera-se ser a obra prima do trovador e senhor, Guilherme IX, em função do seu caráter cortês. É nessa canso que Guilherme, diferentemente da canso I e da canso V, abandona a fanfarronice e a luxúria, e constrói um poema lírico e delicado, enaltecendo um amor puro por uma Dama inatingível. E na promessa do amor da Dama, que tem seu nome mantido em segredo, que o trovador se torna virtuoso, como se a espera, talvez infinita, pudesse regular seus sentidos e suas aventuras, fazendo do amor uma experiência de sofrimento alegre.

I. Com a doçura do novo tempo,/
O bosque se cobre de folhas, e os pássaros/
Cantam, cada um em seu latim,/
Conforme o verso do novo canto,/
Quando está bem que cada um se torne,/
Aquilo que mais deseja./

II./ Do lugar que me parece bom e belo,/
Não vejo chegar nem carta, nem mensageiro./
Por isso, meu coração não dorme, nem ri,/
Nem me atrevo a seguir adiante,/
Até que esteja certo do fim,/
Se ele será assim como eu desejo./

III./ Com nosso amor ocorre o mesmo/
Que o galho branco do espinheiro/
Que está queimando sobre a árvore,/
De noite, com a chuva congelada,/
Até que no dia seguinte o Sol se ponha,/
Pelas folhas verdes e a relva./

IV./ Ainda me lembro de uma manhã,/
Em que nós pusemos fim à nossa guerra,/
Ela me deu um dom tão grande/
Que se deu a mim como amante, e também seu anel./
Que Deus me deixe viver ainda,/
Para que eu ponha minhas mãos sob seu mantel!/

V./ Que eu não me preocupe com estranhos latidos/
Que me separem de meu Bom Vizinho;/
Pois sei como as palavras vem e vão,/
E, como diz um breve sermão/
“Que outros se gabem de seus amores,/
Que nós temos o pão e a faca.”

A breve demonstração da obra do primeiro trovador é revelador de um grande senhor, acostumado com as festas de corte, com os tribunais de amor e, sobretudo, com o caráter singular dos grandes senhores do mundo Occitânico, de suas desavenças com a Igreja e da singularidade de suas relações feudais. Mas, Guilherme ultrapassa os limites contextuais e compõe versos às vezes satíricos, outras vezes, corteses e também de arrependimento, transitando em um mundo no qual está, ao mesmo tempo, dentro e fora, ora apaziguado por um contexto que lhe dá sentido, ora, exteriorizado em relação à lógica predominante.

Referências bibliográficas:

Guilherme IX de Aquitânia. Poesia.           Tradução e introdução de Arnaldo Saraiva.      Lisboa:      Assírio & Alvim, 2008.

JEANROY, Alfred. La poesie lyrique des troubadours. Paris:      Henri Didier, 1934. 2v.

PEREIRA, Nilton Mullet. Amor e interioridade no Ocidente Medieval: as cansos de Guilherme IX     , Ler História [Online], n. 57,      2009, pp. 33-57. Acesso      em 17/04/23. Disponível em      http://journals.openedition.org/lerhistoria/1818. DOI: https://doi.org/10.4000/lerhistoria.1818.

RIQUER, Martin. Los trovadores: historia literaria y textos. Tomo I. Barcelona: Editorial Ariel,            2001.

[1] Doutor em Educação (UFRGS). https://lattes.cnpq.br/2674881975631801

[2] As Vidas são pequenas crônicas que narram elementos biográficos, dispostas antes das cansos de um trovador.


Publicado em 08 de agosto de 2023.

 

Como citar: PEREIRA, Nilton Mullet. Guilherme IX, Duque da Aquitânia e Conde de Poitiers: O Primeiro Trovador. Blog do POIEMA. Pelotas 08 ago 2023. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/texto-guilherme-ix-duque-da-aquitania-e-conde-de-poitiers-o-primeiro-trovador/ Acessado em: data em que você acessou o artigo.