Kauê J. Neckel[1]
Na Irlanda Medieval floresceu uma contínua tradição de escrita da História. Os chamados anais irlandeses variam em cronologia, mas constituem uma tradição interconectada de crônicas do período. As passagens, repetidas entre as crônicas, vão da “criação do mundo” até meados do século XVII. As crônicas compartilham registros de batalhas e escaramuças, obituários de figuras políticas dos principais clãs Irlandeses, óbitos e sucessões episcopais, fenômenos pseudo-históricos (relatos ficcionais, geralmente interpretações alternativas de eventos-chave do período) e demarcam posições políticas e eclesiásticas. Seu foco principal são os acontecimentos da ilha da Irlanda, mas também assinalam eventos de Gales e do norte Britânico, assim como algumas entradas sobre o centro-sul Britânico.
Nesse ensaio, produzo um breve manual de consulta aos locais de origem e respectivas temporalidades dessas documentações. Não pretendo fazer uma investigação de caráter científico, mas uma apresentação formal do que são essas fontes e qual seu papel dentro da história da Irlanda. Os anais irlandeses constituem um itinerário pelo espaço, pois foram construídos em localidades distribuídas pela ilha da Irlanda, e pelo tempo, pois seus recortes temporais de registro dos acontecimentos são variados e multifacetados.
Esses registros, como uma característica da escrita em crônica, são identificados ano a ano a partir do Anno Domini (AD) para o período após o nascimento de Cristo e do Anno Mundi (AM) para eventos anteriores a Cristo. Em termos de conteúdo, há uma variação entre datações escolhidas pelos cronistas para a criação do mundo por Adão até o ano 1616 AD. A tradição dos anais irlandeses é concebida a partir dos seguintes documentos:
- Chronicon Scotorum (CS), escrita em Clonmacnoise por volta do século XII em Latim, cujo manuscrito mais antigo é de 1660, sua entrada final é do ano de 1150;
- Anais de Tigernach (AT, em Irlandês, Annála Tiarnaigh), redigidos provavelmente por Tigernach Uá Bráin (? – 1088) em Clonmacnoise por volta de fins do século XII, cobrem os eventos entre os anos de 766 e 973, está parcialmente em Irlandês Antigo e parcialmente em Latim;
- Anais do Ulster (AU, em Irlandês, Annála Uladh), produzidos na ilha de Ballymacmanus por volta do século XV por Ruaidhrí Ó Luinín (? – 1528), relatam os anos entre 431 e 1540 e usam majoritariamente o Irlandês com poucas entradas em Latim;
- Anais de Boyle (AB, em Irlandês, Annála Mhainistir na Búille), escritos no século XIII em Boyle no idioma Irlandês, com alguns registros em Latim, têm entradas até 1253;
- Anais de Innisfallen (AI, em Irlandês, Annála Innis Faithlinn), escritos em Irlandês no século XV, no monastério da ilha de Innisfallen em Lough Lane na região de Munster, cobrem entre 433 e 1450;
- Anais de Connacht (AC, em Irlandês, Annála Connacht), redigidos em Tuam entre o século XV e XVI sob supervisão do clã Ó Duibhgeannáin em Irlandês moderno, cobrem os anos entre 1224 e 1544;
- Anais de Loch Cé (ALC, em Irlandês, Annála Lough Cé), escritos por volta da década de 1560 sob observação do clã MacDermott, em Loch Cé, cobrem os eventos da região de Connacht entre 1014 e 1590;
- Anais dos Quatro Mestres (AQM, em Irlandês, Annála na gCeithre Máistrí), escritos no século XVII na abadia de Donegal, em Irlandês moderno e Latim, com registros de 2242 AM até o 1616 AD;
- Anais de Clonmacnoise (AClon, em Irlandês, Annála Chluain Mhic Nóis), produzidos por volta de 1660 em Inglês moderno – uma tradução dos Anais de Connacht com algumas menções originais – atribuídos a Conall MacGeoghegan, cobrem os anos até 1408.
Existem, também, documentações amplamente derivadas dos registros cronísticos, mas com um formato literário não-cronístico, são o Lébor Gabála Éireann (O Livros das Invasões) e o Cogádh Gaedhel re Gallaibh (As Guerras dos Irlandeses contra os forasteiros). Além disso, também menciono os Anais Fragmentários e os Anais de Roscrea que, embora sejam registros em formato de crônica, não compartilham as mesmas fontes que os anais irlandeses principais.
Por ser uma tradição contínua, não existem evidências de um único grupo político interessado na construção dos anais irlandeses, entretanto, o historiador Dáibhi Ó Cróinín (1983) acredita que as mesas de Páscoa impulsionaram a fabricação dos anais. Houveram consideráveis disputas eclesiásticas sobre o cômputo da Páscoa nessas mesas, com mais intensidade até 664, quando parte das divergências encontraram um ponto de eclosão no sínodo de Whitby. Tais disputas se deram entre a datação pelo método irlandês e aquela pelo método romano, uma vez que a contagem do tempo pelo Anno Mundi era rechaçada pelos romanos e reconhecida pelos irlandeses. Após Whitby, parte da cristandade irlandesa foi expulsa dos monastérios ingleses. Os povos Gaélicos ainda mantiveram a Páscoa irlandesa até 716, quando Iona começou a considerar a Páscoa romana. Nesse sentido, os anais irlandeses provavelmente figuraram como um elemento fortalecedor da perspectiva irlandesa de datação pascal. A questão pascal foi abandonada a partir de meados do século VIII, mesmo assim, o reconhecimento do Anno Mundi continuou nos anais irlandeses.
Todos eventos do início do medievo (431 – 911) dos anais irlandeses foram registrados na chamada Crônica da Irlanda, o documento inaugural da tradição. Essa crônica é uma reconstituição historiográfica da sequência comum de todos esses anais até 911. A Crônica da Irlanda foi escrita entre 431 e 740 no mosteiro de Iona (cujo nome nesse momento é Crônica de Iona) e, após 740, foi movida para Armagh, onde ficou até 911. Em suma, a Crônica da Irlanda é o ponto de partida dessa tradição.
Ao menos no início do medievo, a Igreja dos Irlandeses não tinha um centro eclesiástico único. Embora Armagh tenha sido um centro de aprendizado relevante durante toda Idade Média, não exercia poder vertical sobre os outros monastérios irlandeses. Nessa perspectiva, a organização da paruchia se destaca como um elemento fundamental dessa multiplicidade espacial e temporal dos anais irlandeses. A paruchia era um sistema eclesiástico próprio da Irlanda, composta por diversos monastérios autônomos espalhados pela ilha. Sua estrutura se evidencia nos anais irlandeses dado que eles se separaram em diversas localidades após 911 e continuaram em textos com conteúdo divergente. Os textos, portanto, reproduzem essa autonomia eclesiástica.
Muitos registros dos anais irlandeses entre 431 e 911 simbolizam a recepção de outras crônicas do período pelos cronistas irlandeses. As crônicas de Eusébio de Cesareia (260 – 339), Jerônimo de Estridão (342 – 420), Paulo Orósio (375 – 420), Próspero da Aquitânia (390 – 455), Isidoro de Sevilha (560 – 636) e Beda (673 – 735) são citadas ou têm seus conteúdos incluídos. Muitos dos eventos de fora da Irlanda são registrados nos anais irlandeses a partir dessas fontes. Por isso, ainda que esses anais sejam irlandeses em sua origem, têm conexões globais com outras territorialidades se vistos a partir da recepção desses eruditos.
Para Daniel McCarthy (1998), os anais irlandeses se separam em três grandes grupos: o grupo Clonmacnoise (AT e CS), o grupo Cluana (AU e AI) e o grupo Connacht (AC, ALC, AClon e AQM). Esses grupos constituem-se de tradições independentes, embora com diversos elementos entrecruzados. Seu ponto principal de diferenciação de conteúdo são as entradas a partir de 911, quando os anais começam a diferir seus registros, o que indica um momento de separação entre as produções documentais. Provavelmente em 911, ou logo depois, uma cópia da então Crônica da Irlanda foi movida para Clonmacnoise, o que evidencia a divisão da tradição em grupos.
Com exceção de dois anais (AClon e AQM), todos os anais começam com as iniciais K.I. ou K (Kalendas Ianuarii, os calendários de janeiro) para referir ao ano descrito. Assim, os anais irlandeses são compostos por duas subtradições. Em primeiro lugar, a subtradição calendas, que seguia os K.I. baseados no calendário lunar romano. Em segundo lugar, a subtradição real-canônica, dos AClon e AQM, que tinham o objetivo maior de registro das sucessões reais.
A continuidade da tradição quintessencialmente medieval dos anais irlandeses até o século XVII sugere como as fronteiras temporais entre o medievo e a modernidade são flexíveis no caso irlandês. O fim dessa tradição de registro (1616 nos AQM e 1660 nos AClon) foi precedido pelo início da plantation inglesa no Ulster (1609), e pelas Guerras Confederadas Irlandesas (1641 – 1653), que marcam os primeiros confrontos entre Católicos e Protestantes na Irlanda. Em função da colonização forçada dos Ingleses, estes eventos simbolizam o confisco da terra dos Irlandeses e, no aspecto cultural, da língua Gaélica. Os elementos identitários foram centrais tanto no nascedouro da tradição cronística pela perspectiva conectada com as ilhas Britânicas quanto no seu fim. Em síntese, o fim da tradição de registro dos anais irlandeses sugere um lento processo de subalternização da identidade Irlandesa por aquela dos Ingleses, imposto por meio da colonização. A estrutura linguística dos AClon, por exemplo, é uma evidência, pois os anais estão escritos já no Inglês moderno.
De forma geral, ainda se necessita de investigações mais aprofundadas no campo das crônicas irlandesas – cujo esforço realizo em minha tese de doutoramento. Busco por conexões com outras crônicas insulares a partir dos padrões de conteúdo entre a Crônica da Irlanda, a Crônica Anglo-Saxônica escrita por volta de 892 em Winchester, no reino de Wessex, e com os Anais de Gales, escritos em St. Davids, reino de Dyfed, até 955. Com isso em mente, os anais irlandeses são uma tradição fértil para investigação historiográfica pelo método conectivo. Com diferentes localidades e momentos de produção, sem dúvida, os registros dos anais irlandeses concebem um itinerário pela Irlanda no espaço e no tempo.
Referências bibliográficas
CHARLES-EDWARDS, T. M. The Chronicle of Ireland. Liverpool: Liverpool University Press, 2004.
DUMVILLE, David. GRABOWSKI, Kathryn. Chronicles and Annals of Mediaeval Ireland and Wales. Woodbridge: The Boydell Press, 1984.
DUMVILLE, David. On editing and translating medieval Irish Chronicles: the Annals of Ulster. Cambridge Medieval Celtic Studies, v. 10, 1985. p. 67-86.
EVANS, Nicholas. The Past and the Present in Medieval Irish Chronicles. Woodbridge: The Boydell Press, 2010.
MCCARTHY, Daniel P. The Irish Annals: their genesis, evolution and history. Dublin: Four Court Press, 1998.
MAC NIOCAILL, Gearóid. The Medieval Irish Annals. Dublin: Dublin Historical Association, 1975.
MÚLTIPLOS AUTORES. CELT: Corpus of Electronic Texts of Medieval Ireland (University College Cork). Acessado em 15 de fevereiro de 2022. Disponível em < https://celt.ucc.ie/publishd.html >. (Contém a maioria dos anais aqui citados na íntegra em traduções para o Inglês).
NECKEL, Kauê J. A Crônica da Irlanda entre tradições historiográficas, cronológicas e manuscritas (740 – 911). Dossiê: Visões do tempo no medievo e a escrita da História (org. por Elton Medeiros e Isabela Albuquerque). Revista Clio, v. 40, n. 2, 2022. p. 44-70.
Ó CRÓINÍN, Dáibhi. Early Irish annals from Easter tables: a case restated. Peritia, n. 2, 1983, p. 74-86.
SMYTH, A. P. The Earliest Irish Annals: Their First Contemporary Entries, and the Earliest Centres of Recording. Proceedings of the Royal Irish Academy, v. 72, 1972. p. 1-48.
[1] Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisa os anais irlandeses, galeses e ingleses em sua tese de doutoramento, com foco no movimento da etnicidade a partir das repetições dos conteúdos desses anais. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4026417535421365
Publicado em 16 de maio de 2023.
Como citar: NECKEL, Kauê J. Os Anais Irlandeses: Um itinerário pela Irlanda Medieval no espaço e no tempo. Blog do POIEMA. Pelotas 16 mai 2023. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/texto-os-anais-irlandeses-um-itinerario-pela-irlanda-medieval-no-espaco-e-no-tempo/ Acessado em: data em que você acessou o artigo.