Lembranças de cavaleiros: o medievo sonhado, celebrações da conquista e memórias de uma tradição do Brasil Central (séc. XX-XXI)
O acionamento à Idade Média no contexto posterior ao recorte arbitrado entre o século V e XV da Era Comum é uma constante em suportes diversos. De afrescos à charges, de referências em discursos políticos à canções de heavy metal, elementos, passagens, personagens e motifs são colhidos do largo repositório para atender aos mais diversos propósitos.
É assim que vemos o passado dito medieval como certo espectro recorrente na cultura visual. Seja no sentido negativo, como a lamentar que um contexto presente estaria se aproximando à “brutalidade” da Idade das Trevas, ou em um viés saudosista, que igualmente inventa um milênio idílico, território a ser evocado em utopias radicais de indivíduos que igualmente condenam o presente, a Idade Média é instrumentalizada. Da coleta, se avança à retirada, ao destaque, à invenção de elementos e, por fim, no retorno de tais Medievos inventados para o contexto, em um movimento conhecido como recepção.
Por trás de toda Idade Média inventada, vemos as irremovíveis impressões digitais do presente. Uma estátua criada no século XIX sobre uma figura do século IX se utiliza desta representação para versar sobre o próprio contexto. Um escritor de romance captura os motifs “medievalescos” abundantes na cultura de massas para escrever suas obras de High Fantasy que, apesar de situadas em mundos que não são necessariamente o nosso, e situá-los cronologicamente em Eras completamente diversas, não deixam de ser percebidas pelo público como “medievais”.
A percepção do público quanto a “acuidade histórica” deste ou daquele elemento poderia constituir, igualmente, elemento de análise do pesquisador que se volta (como eu) ao estudo da recepção da Idade Média. A forma como o medievo é acionado para a construção de itens como playlists em plataformas de streaming de áudio, por exemplo, aponta para um contexto que retoma o passado como uma espécie de “refúgio sonoro”, uma espécie de mecanismo de fuga que pode ser assemelhado ao consumo de jogos eletrônicos ambientados em cenários e imbuídos de discursos “medievais”.
Pensar sobre a relação do público com produções desta sorte é aproximar-se de dimensões profundamente interdisciplinares, como estudos de memória. A relação de indivíduos com o tempo está, necessariamente, conectada a processos de apropriação, seleção, apagamento de determinados detalhes para a consolidação de laços diacrônicos significativos para sua própria experiência no contexto. As identidades moldadas em uma trajetória individual são indissociáveis de sua vivência em conjunto. É assim que, por exemplo, a invenção de uma Idade Média como espaço nostálgico, em alternativa a um presente desconfortável (para todos os espectros políticos) é um processo que abarca simultaneamente contextos de comunidades do século XXI sob o capitalismo global e as relações de cada indivíduo submetido ao referido contexto.
A invenção do passado como lugar mítico, como Era de Ouro a ser lembrada com certo lamento por ter certeza de sua superação ou com esperança pelo anseio de certo “retorno” aponta para a problemática relação do presente consigo. Trata-se de uma dimensão que abarca estudos em humanidades como um todo e, há de se mencionar, outras epistemologias, considerando que, apesar de vivermos todos sob a égide do capital, a experiência, as vivências, as identidades e matizes culturais são profundamente distintas do centro às bordas do capital. Nesse sentido, o avanço em direção às teorias decoloniais e do Sul Global são fundamentais também na abordagem do fruir de indivíduos do lado de cá do mundo nas grandes correntezas culturais por vezes idealizadas no Norte Global.
Pensar em memória e em recepção do Medievo, em formas pelas quais, nos dizeres de Stuart Hall, o indivíduo se costura à estrutura no processo de criação de sua identidade cultural, nos leva a expandir nosso escopo de análise muito além de meros exemplos de recepção em recortes espácio-temporais específicos. Desde 2018, estudo especificamente as maneiras como a figura de Carlos Magno foi acionada por presentes diversos. Recorte surpreendentemente longo e amplo, o desta empreitada, pois o monarca dos francos, primeiro a utilizar o título Imperator et augustus desde o século V, foi relido desde pouquíssimas décadas após sua morte. Tornado um avatar dos discursos gestados nos mais de mil e duzentos anos depois de ter expirado, vemos a recepção do Medievo (pelo próprio Medievo, inclusive) em sua expressão mais nítida. Sua vida é apropriada por testemunhas oculares, constituindo sua memória. Contudo, uma dessas testemunhas, o cronista Einhard, é um dos primeiros a selecionar partes específicas da vida para a criação da Vita. Em seu empenho em imortalizar Carlos como fez Suetonius à Caio Júlio César, a obra de Einhard assevera que Carlos-homem, pereceu; surge, desde c. 840, Carlos-mito.
Quando o Extremo Ocidente Eurasiático busca no passado as legitimações para suas campanhas contra os “pagãos”, surge o Carlos-cruzado. Quando um monarca precisa reafirmar sua linhagem, aparece o Carlos-santo. Avançando os séculos, o Carlos-santo é o patrono do ensino. Em outra vertente, é Carlos-genocida, como o acusam aqueles que veem na campanha contra os saxões uma verdadeira limpeza étnica. Apesar das efígies em moedas mostrarem um Carlos de cabelos curtos, o Carlos-cruzado é aquele da “Barba Florida” que alcança muito além dos limites de seu território.
É esse Carlos-mito que, via o corpus de canções e romances, traduções, prequelas e sequências da Chanson de Roland (c. 1100), o Legendário Carolíngio, alcança o mundo colonial. A travessia do mito pelos Pireneus leva, no interior das mesmas naus que carregaram as armas para os invasores ibéricos que ocuparam Tahuantinsuyo, Anáhuac e Abya Yala a partir de fins do século XV – um dos limiares atribuídos posteriormente ao Medievo – e, posteriormente, abastece outros conjuntos literários, como a literatura de cordel.
A presença de Carlos-mito no mundo colonial ocorre em dupla apropriação, já que, somando-se ao cordel, uma das últimas representações do Legendário, a Historia del Emperador Carlomagno y de los Doce Pares de Francia, de Nicolás de Piemonte (c. 1525), alcança a América, ao lado de obras como Don Quixote. Carlos (e outros heróis do Legendário, como Roland e Oliver) encontram terreno profícuo e não é impossível imaginarmos que sua presença no campo literário está atrelada ao contexto de violência colonial.
Contexto que leva a celebrações da Conquista. Nelas também vemos o acionamento a Carlos e, principalmente, ao confronto entre duas cosmogonias, expressas pela dualidade cristãos e mouros (com os segundos representando toda identidade que não faz parte do conjunto Cristandade). Os autos-dramáticos conduzidos nos dois Impérios Coloniais buscam evocar um mundo no qual o triunfante cristianismo derrotou por completo o outro.
Nesse sentido, a Idade Média é acionada quase como um plano de fundo acidental: não importa, necessariamente, a “acuidade histórica” no relato que alimentou toda a tradição de recepções de Carlos Magno (a derrota dos francos diante dos bascos – ambos cristãos – no desfiladeiro de Roncevaux, em 778). Importa, ao contrário, que se identifique em um plano narrativo a mesma dualidade que se denota no contexto corrente e o resultado esperado (a submissão do outro).
Tradições como os Moros y Cristianos (que não recebem, necessariamente, a figura de Carlos Magno) e, principalmente, as Cavalhadas dos Brasis, ambas idealizadas ainda na península ibérica, são representações da forma como o contato com o outro, da vitória da violência colonial, da (ambicionada) construção de um mundo unificado pela fé.
Não se tratam, contudo, de mera transposição de referenciais culturais da Eurásia para nosso contexto, assim como sua manutenção (pois algumas dessas celebrações possuem alguns séculos) também não implica em um processo de apropriação unilateral e preservação completa dessas celebrações do lado de cá. Tratar tais tradições como evidências de que a Idade Média segue viva no nosso continente é ignorar a emergência de personagens, narrativas e especificidades que demonstram o protagonismo não somente do contexto colonial, mas também de grupos que não são necessariamente as elites coloniais e seus descendentes. Percebe-se, ao menos desde o século passado, a emergência da agência dos subalternos em tradições cada vez mais distintas de matrizes transcontinentais ou mesmo nacionais (esse construto por si só imaginado).
E este é o estado corrente de minha pesquisa. Pois tais tradições tem um impacto sobremaneira na comunidade que as mantém e há de se verificar o quanto esta ou aquela referência medievalesca faz (ou não) parte da identidade cultural de um grupo. É então que retomo o papel da memória nesse estudo e, principalmente, da contribuição de membros de uma comunidade específica para identificar o papel do componente local, deslocado da elite, na manutenção de uma tradição que possui a recepção do medievo como um dos elementos significativos – mas não só. Com a análise de relatos sobre as Cavalhadas de Pirenópolis, pretendo perceber a maneira como o contexto regional levou a construção de uma verdadeira reinvenção da tradição e, em outro sentido, procuro perceber a forma como a tradição faz parte das lembranças que membros da comunidade possuem de suas próprias celebrações.
Ainda nessa pesquisa, percebemos o medievo como um repositório, a partir do qual o presente – por mais distante física e temporal do referencial – percebe no passado um potencial instrumentalizável para representar seus próprios discursos e, principalmente, sua identidade cultural.
GRADUANDO GREGORY RAMOS OLIVEIRA
Graduado em História (Bacharelado) pela UFPel.
Mestrando em História pela UFPel.
Integrante do POIEMA desde 2018.