Texto: Vikings? Entre o senso comum e a construção historiográfica

Vikings? Entre o senso comum e a construção historiográfica

 

Lukas Gabriel Grzybowski (UEL)

 

O equívoco mais comum em torno do tema dos chamados vikings é considerar que o termo se refira a um grupo étnico, um povo, e que ser um viking apresenta algum tipo de identidade cultural ou mesmo nacional. Pelo contrário, o termo viking se refere a uma atividade, qual seja, a pirataria e pilhagem, e assim como “advogado” não se refere a um povo, “viking” também não. Essa confusão entre os piratas escandinavos – que podemos chamar de vikings propriamente ditos – e os povos germânicos que ocupavam o território da Escandinávia entre o fim da Idade do Ferro e o início da Idade Média ocorre parcialmente em virtude dos autores das narrativas que tratam dos contatos entre os habitantes do continente europeu e os escandinavos, que foram intensificados quando os escandinavos ampliaram seus espaços de pilhagem sobre os territórios ocupados por esses autores. Nesse caso, tratavam-se em geral de vikings.

Além disso, é preciso lembrar que quando olhamos para os relatos da época medieval – aquilo que entre historiadores chamamos de fontes – os escandinavos raramente são chamados “vikings”, exceto talvez nas fontes em nórdico antigo. A preferência é pelo emprego de etnônimos, ou seja, os nomes dos grupos étnicos aos quais esses indivíduos pertenciam. Assim, os autores falam em dani (dinamarqueses), nortmanni (normandos/homens do norte) e, em menor grau, sueones (suecos). Paralelamente, uma vez que os autores do continente europeu eram majoritariamente associados às instituições eclesiásticas, as quais eram também um alvo preferido pelos piratas escandinavos graças à riqueza das instituições, esses escandinavos não raramente eram tratados apenas como pagãos e bárbaros.

A preferência pelo termo “viking” para designar os escandinavos de modo geral é, do contrário, uma invenção bem recente. Proposta no século XVIII por alguns historiadores e antiquaristas que encontraram tal designação em documentos oriundos da Inglaterra medieval, a designação “viking” se popularizou no século seguinte, sobretudo na historiografia britânica, e daí partiu para conquistar o mundo. Nesse processo, todavia, muito mais que o conhecimento acadêmico, foram as artes do período romântico que sedimentaram a ideia de que todo escandinavo era um viking (na verdade, a maioria dos escandinavos eram camponeses empobrecidos) e que o termo “viking” designava uma determinada cultura ou povo da época medieval.

É difícil tentar estabelecer uma causa única para esse fenômeno, mesmo porque ele não é único, mas múltiplo. Diferentes grupos e pessoas se interessam e buscam conhecimento em relação aos escandinavos e aos vikings por razões distintas, que são moldadas pelo contexto em que cada um se encontra. Os vikings do grande público também são diferentes dos personagens históricos que a academia se dedica a estudar e as intersecções entre esses universos são multifacetadas e nem sempre pacíficas. Alguns grupos buscam nos assuntos da Escandinávia da Era Viking os fundamentos da sua identidade nacional – como na Noruega, Suécia, Dinamarca ou Islândia modernas. Outros procuram através do conhecimento do passado fundamentar suas práticas religiosas atuais. Ainda outros indivíduos são atraídos pelo ambiente de violência, bravura ou virilidade que uma época marcada por constantes saques e incursões bélicas sugere. Aqui, há também aqueles que procuram se aproximar de uma noção de raça pura e demais tipos de preconceitos associados à ideia de uma Escandinávia germânica e ariana – o que é um mito inventado no século XIX, que fique bem claro. Por fim, existem os acadêmicos, que se interessam por diferentes aspectos dessa sociedade por encontrarem ali respostas para suas inquietações. Se todas essas reações são expressão de apreço é um tema a ser debatido. Afinal, eu não creio ser uma grande homenagem ou uma postura muito reverente ao passado escandinavo quando um supremacista branco sai espalhando mentiras sobre aquele povo, por mais que esse indivíduo acredite que sim. Mas, tirando esses casos extremos, acredito que muito do interesse pelo passado escandinavo surge da alteridade desse povo nas interpretações contemporâneas que lhes são atribuídas.

Como um alter ego, muitos procuram nos escandinavos aquilo que não encontram em si mesmos, mas que consideram desejável. Como exemplo mais tácito nesse sentido talvez o caso da liberdade feminina possa ser evocado, ou a ideia de liberdade e aventura que permeia as ações dos saqueadores que vêm do mar. Certo é, contudo, que poucos procuram essas informações por apresentar um interesse genuíno no conhecimento acadêmico sobre o tema, caso contrário, os livros que meus colegas e eu escrevemos, estariam constantemente nas listas de best-sellers. Somente uma parcela pequena dos consumidores do “produto vikings” acaba indo além e se engajando com a investigação do passado escandinavo. E está bem assim. Jamais devemos nos esquecer que se trata de produtos de entretenimento e, nesse contexto, oferecem ao público hoje a possibilidade de escapar de rotinas enfadonhas através da imaginação de grandes aventuras, batalhas e conquistas. Interessantemente, muitas das informações que possuímos dos vikings se originam de um interesse similar pelo lúdico. As sagas, as poesias míticas e heroicas, as artes da Era Viking que são tão importantes para nosso conhecimento dessa cultura também tinham como objetivo ocupar e distrair as pessoas nos longos invernos do norte escandinavo. Quem sabe não é essa a conexão que nos liga aos “vikings”?

 

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Referências:

ELLIOTT, Andrew B.R. Medievalism, Politics and Mass Media: Appropriating the Middle Ages in the Twenty-First Century: Boydell & Brewer Ltd, 2021.

GEARY, Patrick, 2013. “A Europa Das Nações Ou a Nação Europa: Mitos De Origem Passados E Presentes.” RLEC 1 (1): 21–35.

KRÜGER, Jana. „Wikinger“ im Mittelalter. Die Rezeption von víkingr m. und víking f. in der altnordischen Literatur. Berlin: Walter de Gruyter, 2008.

VALENCIA-GARCÍA, Louie Dean. Far-Right Revisionism and the End of History: Alt/histories / Edited by Louie Dean Valencia-García. 1st. London: Routledge, 2020.

WAWN, Andrew. The Vikings and the Victorians Inventing the Old North in Nineteenth-Century Britain. Cambridge: D.S. Brewer, 2002.

Fonte da imagem: Frank Bernard Dicksee (1853–1928), “Vikings Heading for Land” (1873) Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Frank_Dicksee_-_Vikings_Heading_for_Land.jpg