Modelagem Urbana: crescimento da cidade de Herval/RS

Por: Mônica Machado dos Santos

O presente trabalho aborda o assunto de modelagem urbana por meio de autômatos celulares para a simulação de crescimento urbano. Propõe-se a analisar as variáveis ambientais e urbanas que influenciam no desenvolvimento de uma cidade como estudo de caso. Também simula o crescimento futuro a partir do modelo calibrado e de experimentação de outras alternativas. O estudo permite visualizar e analisar prováveis evoluções urbanas a partir de aspectos morfológicos e da acessibilidade. A cidade escolhida para o estudo foi Herval no Rio Grande do Sul, próximo à fronteira com o Uruguai. Será abordada a influência de fatores como topografia, matas nativas e a BR de acesso à cidade no desenvolvimento horizontal urbano.

Modelagem urbana

Modelos urbanos são representações simplificadas de uma cidade concebida como um sistema. A construção dos modelos possibilita que planejadores urbanos manipulem seus objetos de estudos, permitindo compreender, explicar e experimentar possíveis cenários. Os modelos podem ser classificados de acordo com a finalidade em descritivo, preditivo, exploratório ou de planejamento. O modelo descritivo busca compreender a realidade ou um fenômeno, sendo primordial às outras finalidades. A função preditiva busca uma configuração futura, ou seja, previsões. Enquanto que o modo exploratório, realiza experimentos, buscando possibilidades. Já o modelo de planejamento tem em vista metas fixadas de planejamento.  Os modelos também podem ser classificados de acordo com o modo em que são concebidos em físico (projetos de arquitetos, desenhos e planificações), conceitual (centrado nas relações entre os componentes, ilustrados em diagramas ou expressão verbal) ou matemático (aplicado na modelagem urbana). Em relação ao tempo, podem ser estáticos ou dinâmicos. (ECHENIQUE, 1975; LIU, 2009). O presente estudo utiliza-se de modelagem matemática e possui abordagem descritiva, preditiva e exploratória, em tempo dinâmico.

 Autômatos celulares e o programa CityCell

Echenique (1975) indica que para trabalhar com um modelo matemático é necessário ter um objeto de estudo, uma intenção, um processo de observação e abstração, tradução para os meios de representação, verificação e obtenção de conclusões. Para a simulação do crescimento urbano utilizou-se o software CityCell – Urban Growth Simulator, desenvolvido por Saraiva e Polidori (2014). O programa foi concebido com base no modelo de autômatos celulares que consiste em um modelo matemático que simula o desenvolvimento urbano no espaço e no tempo. Trata-se de uma simplificação da realidade, composta por principais características eleitas pelo observador. O modelo de autômato celular pode ser construído a partir de simples células e por regras de transições implementadas no modelo que exercendo a auto organização e reproduzindo padrões semelhantes, permite expressar o complexo desenvolvimento urbano ao longo do tempo, em um espaço celular. Autômato celular é uma entidade que possui características próprias espaciais e mecanismos para processar suas características próprias e as externas. Os autômatos individuais são arranjados em um espaço regular tesselado, o grid (LIU, 2009).

O uso da plataforma CityCell implica em três etapas. Inicialmente inserem-se as variáveis consideradas relevantes para o estudo, traduzindo-as para a linguagem da plataforma. Essa etapa consiste na entrada de dados, os chamados inputs. As variáveis adicionadas, também chamados de atributos, recebem um parâmetro, ou seja, um valor relacionado ao seu peso de interação. A segunda etapa consiste no processamento. No grid do CityCell as células dos atributos interagem entre si a partir de tensões de atração ou resistência à urbanização, geradas pelos atributos. O acúmulo dessas tensões provoca diferenças de centralidade, que indicam o potencial de mudança de estado da célula. A mudança de estado da célula promove o crescimento urbano. A última etapa constitui na obtenção e análise dos resultados, os outputs (BAUMBACH, 2020).

A cidade de Herval

Utilizando-se de modelagem urbana realizou-se um estudo de crescimento horizontal do município de Herval. Localizado no estado do Rio Grande do Sul, na latitude de 32° Sul e longitude 53° Oeste. Limita-se com a cidade uruguaia Melo e outras cidade brasileiras, como Pedras Altas, Arroio Grande e Jaguarão. Consiste em uma cidade de pequeno porte com 6972 habitantes, conforme censo demográfico de 2010 (IBGE, 2021). Possui topografia irregular, seu principal acesso ocorre por meio da BR 473 e seu nome é originado da existência de ervais nativos na região.

Simulação do modelo no CityCell

O CityCell apresenta um plano de trabalho com células quadradas dispostas em um grid. Para este estudo configurou-se a dimensão da célula em 100 metros e utilizou-se referência geográfica em Projeção UTM, zona 22, hemisfério Sul. Os inputs, ou dados de entrada, foram modelados com base em imagens de satélite e em antigos desenhos urbanos. Observaram-se inicialmente os seguintes atributos urbanos como importantes para o desenvolvimento do estudo: BR 473 (principal acesso à cidade), estradas de acessos, configuração urbana de 2019, 1977 e 1898 e os naturais: altitudes, matas nativas e cursos d’águas, além de um atributo de aleatoriedade.

Figura 1: Inputs. a) topografia em escala de 1 a 5. b) matas nativas (verde) e cursos d’água (azul). c) configurações urbanas (amarelo), acessos (laranja) e BR (marrom). Fonte: autora

Na figura 1a é apresentada a topografia, sendo legendada em quatro níveis. O número 1 representa o nível mais baixo e o 5, o morro, ainda não ocupado pela urbanização. A ocupação urbana encontra-se nas zonas numeradas por 4 e 3. Essas foram as zonas adotadas como mais favorável ao crescimento urbano para esse estudo. A mata nativa e os cursos d’água estão representados, respectivamente, em verde e azul na figura 1b. Os atributos urbanos estão apresentados na figura 1c. Em tons de amarelo encontram-se as configurações urbanas de 2019 (mais claro), 1977 e 1898 (mais escuro). A BR encontra-se na cor marrom e os demais acessos em laranja. Os atributos naturais foram considerados como resistência e os urbanos como atração ao crescimento.

Em seguida, iniciou-se o processo de calibração do modelo. Esse procedimento visa encontrar valores, aplicados aos atributos, que definam a magnitude das relações entre as células, visando uma configuração próxima à realidade. Utilizando a regra de interação “Threshold Potencial”, ou potencial de crescimento limiar, realizou-se uma série de processos de quarenta interações buscando um resultado próximo à configuração urbana de 2019. Considerou-se a configuração urbana de 1977 com valor 1; atração de 0,3 para a BR; 0,1 para os demais acessos; valores de resistência para altitudes de 0,3 a 1 e com valor igual a 1 para os demais atributos (matas nativas, cursos d’água e aleatório). Nessa simulação inicial observou-se um crescimento maior que o esperado e principalmente exagerado nos pontos circulados em vermelho na figura 2. Nessa figura representa-se em verde a configuração da cidade de 2019 (alvo da simulação) e em marrom, a evolução urbana resultante da simulação.

Figura 2: Herval em 2019 e simulação 1. Fonte: autora

Figura 3: topografia favorável ao crescimento. Fonte: autora

 

 

 

 

 

 

 

Identifica-se, observando a figura 3 que as regiões em que houve maior crescimento em relação ao alvo adotado encontram-se nas altitudes mais favoráveis ao desenvolvimento (representadas nas cores laranja e roxo). Na figura 3 também estão representadas, em amarelo, as configurações urbanas de 1977 e 2019. Nas simulações seguintes variou-se os valores de resistência de acordo com os níveis de topografia, buscando conter o avanço nos pontos identificados anteriormente.

Figura 4: simulação com valores de 1 a 1,9 para topografia. Fonte: autora

Figura 5: simulação com valores de 1 a 4 para topografia. Fonte: autora

 

 

 

 

 

 

 Na simulação da figura 4 foram utilizados parâmetros de 1,5 a 1,9, para a topografia em escala de mais a menos favorável. Enquanto que na simulação da figura 5 adotou-se valores com maior intervalo, tais como: 1; 3; 3,5 e 4. Em ambos casos persistiu o crescimento nos pontos circulados em vermelho. Em outra tentativa de calibrar o modelo, optou-se por considerar também o princípio de cidade, configuração urbana de 1898, utilizando os demais parâmetros da simulação da figura 4.

Figura 6: simulação considerando o princípio da cidade. Fonte: autora

Observa-se na figura 6 que a alternativa gerou um desenvolvimento mais centralizado e mais distante do crescimento real em relação às simulações anteriores. A alternativa de considerar a configuração urbana de 1898 como atributo com valor de atração igual a um não se mostrou colaborativa com a calibragem, sendo desconsiderada para as simulações seguintes. Diante das dificuldades encontradas para calibrar o modelo com os atributos considerados inicialmente, optou-se pelo acréscimo da variável declividades como um novo atributo com duas classificações: mais (representada na cor vermelha) ou menos favorável (cor azul) ao desenvolvimento urbano, como pode ser observado na figura 7.

Figura 7: atributo declividades: favorável (vermelho) e desfavorável (azul). Fonte: autora

Figura 8: simulação considerando o atributo declividades com peso igual a um. Fonte: autora

 

 

 

 

 

 

 

Inicialmente o atributo declividades considerado com peso igual a um, não demonstrou um bom resultado como pode ser observado na figura 8. Entretanto, quando se utilizou valores maiores obteve-se simulações de crescimento mais próximos ao real. Para melhor controle do crescimento urbano durante o período escolhido alterou-se a configuração de lambida externo de 2 para 3. A seguir é apresentado o resultado mais satisfatório de calibração. Nessa configuração utilizou-se valor de resistência igual a 4 para o atributo de declividades; 0,3 a 1 para topografia; 0,40 para a BR; 0,1 para as estradas de acesso e um para os demais atributos ambientais e o aleatório.

Figura 9: modelo calibrado. Fonte: autora

Observa-se na figura 9 que houve menor desenvolvimento nas áreas côncavas, que apresentavam crescimento excessivo nas simulações anteriores. Em todas simulações realizadas, há duas regiões em que não se atingiu o crescimento, demarcadas pelas circunferências em branco nessa figura do modelo calibrado. Sobre esse fato, constatou-se que não haviam indícios de urbanização nesses pontos, dificultando que a simulação contemplasse esses crescimentos. A calibragem apresentou bom resultado para a precisão de 200 metros.

Figura 10: acertos com precisão de 100 e 200 metros. Fonte: autora

Figura 11: total de células alcançadas com precisão de 200 metros. Fonte: autora

A figura 10 apresenta na cor verde escuro os acertos com precisão de 100 metros, em verde claro, os acertos com precisão de 200 metros. Na figura 11, apresenta-se em verde, o total de células alcançadas com precisão de 200 metros e na cor rosa, em ambas figuras, as células que não foram alcançados na simulação. A partir do modelo calibrado e da configuração de 2019, simulou-se o possível crescimento futuro de Herval.

Figura 12: crescimento urbano futuro. Fonte: autora

Observa-se na figura 12, em marrom a configuração urbana e em verde, a mata nativa. A simulação demonstrou uma tendência em ocupar as áreas de matas nativas, principalmente nas áreas côncavas. O desenvolvimento se dá de modo distribuído nas bordas, mas com maior ocupação nas proximidades da BR, caracterizando-se como uma potente ferramenta de acessibilidade. Há uma exceção no crescimento nas regiões mais ao norte (localizada na região superior da figura). Ressalta-se que há maiores limitações nesses locais devido ao conjunto de características naturais e baixa atração. Em seguida simulou-se a hipótese de ter uma nova ocupação, tangente a um atributo de atração, a BR. Optou-se por um local que não possui mata nativa e que apresenta menor declividade, localizada na figura 13 pela circunferência em branco e na cor laranja, na figura 14, apresentando o resultado da simulação.

Figura 13: escolha do local para hipótese de nova ocupação. Fonte: autora

Figura 14: simulação da hipótese. Fonte: autora

Na figura 13 representa-se em vermelho as áreas com menor declividade e em verde, as matas nativas. A evolução urbana com base nessa hipótese, demonstrada na cor marrom na figura 14, apresentou semelhanças com o modelo de crescimento anterior, ocupando áreas côncavas e de mata nativa e com desenvolvimento distribuído pelas bordas. Entretanto, como esperado, apresentou maior desenvolvimento próximo a BR e a nova ocupação, reduzindo o crescimento na área mais ao sul, abaixo na figura. Considerando a tendência de crescimento sobre áreas de mata nativa e a observação de que a cidade de Herval parece respeitar essas áreas ambientais, simulou-se também a hipótese de evolução urbana sem interferir nessas áreas. Para isso utilizou-se da ferramenta freezing, não permitindo o avanço urbano sobre as matas.

Figura 15: simulação da hipótese preservando as matas nativas. Fonte: autora

Observa-se na figura 15 que o desenvolvimento urbano atingiu distâncias maiores em relação aos casos anteriores, devido a necessidade de desviar as matas. A ocupação urbana atingiu os limites com as áreas verdes, provocando inclusive o isolamento de uma área em meio ao atributo urbano (representado em marrom na figura). Essa área verde “isolada” possui potencial para implantação de um parque, diante das observações realizadas no estudo.

Considerações

Esse estudo simulou possíveis crescimentos urbanos na cidade de Herval/RS, por meio de modelagem computacional baseada em autômatos celulares. O processo de simulação permitiu analisar hipóteses de crescimento, relacionando-as com aspectos morfológicos e de acessibilidade. A calibragem demonstrou que provavelmente a topografia não é um fator limitante ao crescimento horizontal urbano. Assim como o princípio de cidade não consiste em um fator de atração ao desenvolvimento. Os atributos vegetação e declividades, variáveis ambientais, apresentaram relevante influência no desenvolvimento urbano.

A expansão urbana de Herval contemplou a ocupação de áreas convexas e evitou bordas côncavas. Possivelmente as áreas convexas, ocupadas na configuração urbana de 2019 e que não se atingiu na etapa de calibragem, estejam em áreas desmatadas nos últimos anos. Também encontrou-se dificuldade em conter o avanço sobre áreas côncavas, o que só foi possível quando se restringiu o crescimento sobre as áreas de matas nativas.

A evolução urbana de Herval parece respeitar os elementos naturais, como as matas nativas, mas há uma tendência em ocupá-las. A simulação de possíveis cenários demonstrou uma forte probabilidade de ocupar áreas contíguas, inclusive sobre recursos naturais, apontando a fragilidade das áreas ambientais. Esse indicativo aponta para a necessidade de proteção a essas áreas, se for desejável preservá-las.

A variável urbana BR apresentou relevante influência no desenvolvimento da cidade, enquanto que os demais acessos não resultaram em novas ocupações em suas proximidades. Identifica-se que a existência dessa infraestrutura representa maior propensão a expandir e formar novas ocupações próximas, evidenciando o impacto da acessibilidade no crescimento urbano. A inserção de uma nova ocupação próxima a BR potencializou o efeito da acessibilidade. Para a cidade estudada constatou-se a relevância de aspectos naturais, que requerem mais atenção, e da acessibilidade, que pode ser mais estudado em outros trabalhos, no desenvolvimento urbano.

Referências:

BAUMBACH, Flávio Almansa. Simulações de crescimento urbano em planícies de inundação nas cidades de fronteira entre Brasil e Uruguai. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2019.

ECHENIQUE, Marcial. Modelos matemáticos de la estructura espacial urbana, aplicaciones en América Latina. Buenos Aires: Ediciones SIAP/ Ediciones Nueva Visión, 1975.

INSTITUTO BRASILERO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). IBGE, 2021. Cidades. Disponível em:< https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/herval/panorama>. Acesso em: 15 de maio de 2021

LIU, Yan. Modelling Urban Development with Geographical Information Systems and Cellular Automata. Estados Unidos: Taylor & Francis Group, 2009.

SARAIVA, Marcus Vinicius Pereira; POLIDORI, Maurício Couto. CityCell: Urban Growth Simulator (software). LabUrb – Laboratório de Urbanismo da FAUrb. Pelotas: UFPel, 2015.