Disputas discursivas e desinformação no Instagram sobre o uso da hidroxicloroquina como tratamento para o Covid-19

Principais pontos

  • Analisamos as publicações sobre a hidroxicloroquina que receberam mais interações no Instagram entre março e julho de 2020.
  • Identificamos o que entendemos por disputa discursiva, em que há dois grupos com discursos distintos que disputam a hegemonia da opinião pública: um discurso favorável ao uso da hidroxicloroquina para Covid-19 e outro, contrário
  • Enquanto o grupo anti-HCQ baseava seu discurso em conteúdo verificado, o grupo pró-HCQ reproduzia majoritariamente desinformação. Encontramos, portanto, assimetrias em uma disputa discursiva entre informação e desinformação

 

Overview

Na última semana, apresentamos nosso artigo “Disputas discursivas e desinformação no Instagram sobre o uso da hidroxicloroquina como tratamento para o Covid-19” no 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom). Neste estudo, analisamos a disputa discursiva sobre a hidroxicloroquina no Instagram. Apesar de ser uma plataforma popular no Brasil, ainda são poucos os estudos que olham para a desinformação no Instagram. Conforme dados da Reuters Institute, o Instagram é utilizado por 61% dos Brasileiros e quase metade destes utilizam para consumo de notícias e informações. Utilizamos o CrowdTangle para coletar publicações que mencionavam o medicamento entre março e julho de 2020 (n=5.124). Destas, selecionamos as 200 publicações com maior número de interações (=12.938.446, o que representa mais de 60% do total de curtidas e comentários do nosso conjunto de dados). Utilizamos a análise de conteúdo para identificar (1) se os discursos eram favoráveis ou contrários ao uso de hidroxicloroquina; (2) se produziram desinformação; e (3) que tipo de líder de opinião estava publicando a mensagem.

 

Identificamos um cenário de disputa discursiva que favorece a formação de discursos assimétricos. O grupo favorável ao uso do medicamento para Covid-19 (pró-HCQ) reproduz desinformação de forma articulada com líderes de opinião e conteúdo de fontes “alternativas”. O outro grupo, que se posiciona de forma contrária ao uso da droga (anti-HCQ), dá preferência ao discurso científico divulgando informações comprovadas sobre o tema. Assim, encontramos uma disputa discursiva entre informação e desinformação.

 

Método

A nossa análise foi realizada a partir da coleta de publicações do Instagram via CrowdTangle. Coletamos mais de 5 mil publicações, das quais selecionamos as 200 publicações que receberam mais interações. Para a análise destes dados, utilizamos a análise de conteúdo. Três analistas independentes classificaram as mensagens. Para a classificação final, utilizamos a concordância entre pelo menos dois analistas. Para todas as categorias, alcançamos bons níveis de concordância – calculados por meio de Kripendorff’s Alpha (entre 0,622 e 0,913).

 

Criamos três categorias de análise, em que buscamos identificar: (1) qual o discurso produzido em relação ao uso da hidroxicloroquina como tratamento para o Covid-19; (2) se a publicação continha desinformação; e (3) o tipo de usuário (líder de opinião) responsável pela publicação.

 

Para identificar tipo de discurso, dividimos as publicações em favoráveis, contrárias ou sem identificação clara. Neste último caso as mensagens apenas mencionavam a hidroxicloroquina como parte do contexto, mas não discutiam a eficácia da hidroxicloroquina. As mensagens favoráveis ao uso, reproduziam um discurso que apontava a hidroxicloroquina como tratamento eficaz para o Covid-19. Já as publicações contrárias, apontavam para estudos que atestavam a ineficácia da droga como tratamento. Para identificar a presença de desinformação, consideramos como desinformativas as publicações que incluíam informações distorcidas, manipuladas ou completamente falsas com a função de enganar.

 

Para identificar os líderes de opinião, criamos oito categorias após uma análise inicial dos dados. São elas: (1) políticos (exemplo: Jair Bolsonaro); (2) veículos de imprensa (exemplo: Estadão); (3) veículos hiperpartidários (exemplo: Conexão Política); (4) páginas de política (exemplos: Caio Coppola e Quebrando o Tabu); (5) páginas de saúde (exemplo: Medicina É); (6) jornalistas (exemplo: Luís Ernesto Lacombe); (7) páginas institucionais (exemplo: Ministério da Saúde); e (8) outros, para páginas que não se enquadravam em nenhuma das categorias acima (exemplo: Central da Fama).

 

Resultados

Nossos resultados mostram a existência de discursos assimétricos, já que o grupo favorável a hidroxicloroquina frequentemente reproduziu desinformação, enquanto o discurso contrário ao uso do medicamento para Covid-19 foi baseado em informações verificadas.

 

Encontramos uma maioria de publicações que produziam discurso favorável ao uso da hidroxicloroquina como “cura” ou profilaxia para Covid-19 (90), seguida pelas que produziam produziram discurso contrário (76) e uma minoria que não apresentava posição clara (34). Entre as mensagens pró-HCQ, quase três quartos reproduziam desinformação, o que indica a associação do discurso favorável ao medicamento a produção de conteúdo falso. Os gráficos abaixo detalham estes resultados.

 

Figura 1. Publicações pró-hidroxicloroquina

 

Alguns resultados são importantes para a nossa pesquisa. O primeiro é o enquadramento político da discussão. A apropriação da hidroxicloroquina como tema político reflete nos atores centrais da disputa discursiva. Políticos são os atores com a maior parte de interações no grupo que reproduz discurso favorável ao medicamento, enquanto páginas políticas e veículos hiperpartidários são os atores com o maior número de interações entre os que reproduzem discurso contrário ao uso da droga.

 

Os políticos são também os principais disseminadores de desinformação. Descobrimos que os políticos não só são aqueles que publicam mais mensagens desinformativas sobre o tema, mas também os que alcançam maior número de interações em suas publicações. A média de interações nas publicações de políticos que reproduzem desinformação é de quase 100 mil, o que representa a maior média entre todos os diferentes tipos de líderes de opinião que identificamos. Estes dados indicam o impacto dos políticos na disseminação de desinformação.

 

Em particular, vemos uma influência central do discurso de Jair Bolsonaro, que publicou oito mensagens sobre o tema (entre as 200 analisadas), todas favoráveis ao uso do medicamento. Destas oito mensagens, apenas uma não contém desinformação. Suas mensagens geraram 3.229.344, das quais 2.800.248 de interações são oriundas de publicações que produzem um discurso desinformativo. O discurso desinformativo também foi reproduzido em uma publicação do Ministério da Saúde, o que mostra que a própria comunicação governamental reproduz um discurso favorável ao uso do medicamento e que fortalece a desinformação.

 

De forma geral, os nossos resultados apontam para assimetrias nos discursos na disputa sobre a hidroxicloroquina. Enquanto o discurso anti-HCQ é baseado em informações verificadas, o discurso pró-HCQ majoritariamente reproduz desinformação. Além disso, identificamos como o tema foi apropriado pelo discurso político e são estes atores os principais disseminadores de informações falsas.

 

Relevância

A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem destacado a relevância de acesso a informações confiáveis sobre a pandemia do Covid-19. Temos visto nas nossas pesquisas que a desinformação sobre a doença tem gerado impacto na mídia social no Brasil. Este contexto dificulta a ação coletiva, já que há excesso de informações, polarização nos discursos e mesmo circulação de desinformação.

 

Os nossos resultados mostram um contexto do que a OMS chama de “infodemia, já que encontramos uma disputa discursiva entre grupos com posições opostas e na qual o grupo pró-HCQ reproduzia desinformação. Além disso, identificamos um papel central dos políticos e outros atores políticos no espalhamento da desinformação. Além de enquadrarem o tema como disputa política, a presença destes atores legitima um discurso desinformativo. Este resultado ajuda a explicar como 18% dos brasileiros acreditam que hidroxicloroquina é a cura do Covid-19.

 

Autores e financiamento

Agradecemos ao CrowdTangle pelo acesso aos dados que utilizamos na nossa análise. Os autores deste artigo são Felipe Soares (UFRGS), Carolina Bonoto (UFRGS), Paula Viegas (UFRGS), Igor Salgueiro (UFPEL) e Raquel Recuero (UFPEL/UFRGS). O estudo contou com o apoio da CAPES, do CNPq e da FAPERGS.