AS ATIVIDADES COMERCIAIS NO ÁLBUM DE PELOTAS DE 1922[1]
Sidney Gonçalves Vieira[2]
Dione Dutra Lihtnov[3]
Apresentação
O presente texto faz uma análise dos anúncios contidos no Álbum de Pelotas de 1922, referentes às atividades de comércio, de serviços e outras de natureza semelhante ali anunciadas, bem como acerca da Associação Comercial de Pelotas e do Clube Comercial de Pelotas, também exibidos naquela edição. O tema ensejou uma análise, a partir da realidade atual, do setor terciário na cidade e sua importância para a formação do centro e de outras centralidades urbanas. Ficou evidente que a pujança das atividades comerciais observadas hoje no centro, possuem uma vinculação muito estreita com o desenvolvimento do setor já nos anos 1920. Fortemente impulsionado pela riqueza acumulada pelos grandes produtores de charque, a cidade assistiu, naquele tempo, à instalação de um grande aparato comercial, que lhe garantia o desenvolvimento cultural e o acompanhamento das grandes novidades apresentadas ao mundo. Em que pese os estabelecimentos já não serem mais os mesmos, a localização naquela época e a atual reforçam a importância do setor comercial na formação do centro da cidade. As mudanças nas tipologias, nas formas e nas próprias atividades denotam as transformações sociais e econômicas ocorridas na sociedade. Hoje, a popularização do centro e a formação de novas centralidades são consequências inevitáveis do crescimento populacional e físico da cidade, mas que, apesar de tudo, mantém o setor terciário com grande destaque para a economia local. Desse modo, foi possível uma análise dialética da realidade, fundamentada nas permanências e rupturas observadas no tempo e no espaço.
Do ponto de vista teórico e metodológico, a Geografia Histórica nos permitiu fazer uma análise do espaço com a finalidade de entender a lógica da organização espacial presidida por relações sociais de produção próprias daquele momento específico. A partir dos fundamentos da Geografia do Comércio e do Consumo se tornou possível analisar a evolução dos estabelecimentos comerciais a partir de várias teorias explicativas. Assim, com o uso desses referenciais, foi possível compreender melhor a realidade do passado, tornando possível entender a permanência de determinadas atividades e formas, bem como as rupturas que provocaram alterações substanciais nos usos, costumes e funções urbanas.
O comércio e a memória da cidade
A cidade e o comércio são, por excelência, extremamente mutantes. As formas comerciais na cidade ao longo do processo de produção histórica do espaço mudam, seus usos se alteram e a estrutura se modifica a cada novo período em que seja possível observar alterações nas qualidades da sociedade, sejam econômicas, sociais ou de outra ordem. E o comércio, como uma atividade extremamente vinculada ao espaço urbano, acompanha esse movimento, quando não se adianta a ele. As formas do comércio, sua localização na estrutura urbana e, sobretudo, o arranjo dos elementos da oferta dos produtos comercializados é muito sensível a esta temporalidade típica dos movimentos de moda, de estação, de temporalidades fugazes. Nesse sentido, é de se esperar que as lojas não sejam elementos duradouros na paisagem, pelo menos na sua apresentação enquanto forma. Além disso, a dinâmica urbana, propicia também uma dinâmica muito forte de localização, ensejando que os negócios se movam no interior do espaço urbano, ao sabor do acompanhamento dos lucros.
Via de regra, as áreas centrais se formam nas proximidades das áreas residenciais das pessoas de mais alta renda, fato que se justifica em função de que esses são os principais consumidores do centro (VILAÇA, 2000, p. 270 e segs.). Com o passar do tempo o espaço tende a se tornar deficitário em função das novas tecnologias e das mudanças ocorridas também na cultura da sociedade. A obsolescência do espaço provoca a busca por novas áreas no interior da cidade, ensejando a criação de outras centralidades e, em muitos casos, o abandono do centro por muitas atividades. Esse abandono ocorre, quase sempre, na sequência da mudança das classes mais ricas, que buscam locais onde seus valores de classe possam ser melhor usufruídos do que na área central que se transformou.
Mesmo que não tenhamos a permanência de estabelecimentos específicos ao longo desses cem anos que transcorreram desde o lançamento do Álbum, é significativo para a memória social o fato de que o principal comércio da cidade ainda esteja instalado na mesma área. Mesmo que se reconheça o surgimento de novas centralidades, o centro permanece como referência de localização para lojas e serviços principais. Mudaram os formatos das lojas, mudaram os hábitos das compras, mas permanece o lugar como referência geral. O centro, historicamente formado nessa área da cidade, continua vivo.
O aparato comercial na atualidade
De acordo com o III Plano Diretor de Pelotas (PELOTAS, 2008) a área urbana do município está dividida em sete regiões administrativas, para fins de planejamento, englobando os bairros: Centro, Fragata, Barragem, Três Vendas, Areal, São Gonçalo e Laranjal. A Região Administrativa do Centro, por sua vez, comporta uma divisão em quatro mesorregiões, sendo que a mesorregião identificada como CE 3 é a mais importante área de comércio na cidade de Pelotas, e, dentro dela, a microrregião CE 3.3 apresenta a maior concentração desta atividade. A área de comércio mais intensiva (CE 3.3) está abrangida pelas ruas Major Cícero de Góes Monteiro, ao norte, e Gomes Carneiro, ao sul, e pelas ruas Marechal Deodoro, à oeste, e Almirante Barroso, à leste. Ao todo, são 88 quarteirões que perfazem um total de 979.432,58 m2. Aí está o centro de Pelotas.
A principal área de comércio da cidade, na atualidade, está inserida na chamada Zona de Preservação do Patrimônio Cultural de Pelotas, o que confere uma importante particularidade ao comércio local, que compartilha de interessante arquitetura composta por construções de diferentes épocas, mas cuja fisionomia é garantida por casarões de destacada arquitetura eclética datados do século XIX e princípios do século XX. Por outro lado, daí decorre também um conflito de interesse que contrapõem os desejos midiáticos do aparato publicitário com regras de valorização do patrimônio cultural (RIBEIRO; VIEIRA; 2014). A área, ademais, se caracteriza pelo traçado reticular das ruas.
Hoje, a principal rua de comércio no centro da cidade é a Rua Andrade Neves, no trecho situado entre as ruas General Telles, ao sul, e Major Cícero, ao norte. Parte da rua é exclusiva para pedestres, com alargamento de calçada e um trecho de calçadão, que se conecta, também na forma de calçadão, pela rua Sete de Setembro, com o calçadão da rua 15 de Novembro, formando uma área de intenso movimento de pessoas. Nesta parte da cidade estão instaladas as principais lojas, que se distribuem de acordo com uma lógica que vai das boutiques mais sofisticadas na rua Voluntários da Pátria, até às lojas mais populares na rua Tiradentes. O Calçadão é o espaço de comércio mais democrático e dinâmico que, além do comércio tradicional, comporta conflituoso relacionamento com a informalidade. A localização dos estabelecimentos, no início do século XX, apresentava uma concentração não muito diversa da atual, em termos gerais, cuja ocorrência se verificava principalmente na rua Félix da Cunha, primeiramente chamada de “Rua do Comércio”, depois na 15 de Novembro. A rua Andrade Neves só ganhará destaque a partir dos anos 1950.
Historicamente, o comércio tem sido o principal vetor de desenvolvimento do espaço urbano na cidade de Pelotas. No período compreendido entre os anos de 1960 e 2014, existiram 28.901 alvarás comerciais (documento legal que habilita a pessoa singular ou coletiva com capacidade financeira e civil ao exercício da atividade comercial e de prestação de serviços mercantis) cadastrados na área urbana. Destes, 1.285 estabelecimentos correspondiam ao comércio atacadista e 27.616 estabelecimentos ao comércio varejista. Os equipamentos comerciais predominantes nesse período, foram do gênero alimentício em ambos os setores. No que tange à diversidade tipológica, destaca-se o setor de construção no comércio atacadista, e de lazer e cultura no varejista. Nos níveis posteriores, ambas as atividades apresentam os setores de artigos pessoais e de prestação de serviços como os mais numerosos e diversificados (LIHTNOV; VIEIRA; 2016).
Comércio e serviços no Álbum de Pelotas de 1922
Quando o Álbum de Pelotas foi publicado, em 1922, a cidade contava com pouco mais do que os 45.000 habitantes contabilizados no censo de 1920 na área urbana, além dos cerca de 37.000 que habitavam a zona rural, totalizando uma população para o município com cerca de 82.000 habitantes (DE BEM, In: LONER; GILL; MAGALHÃES; 2012, p. 218 e segs.). Era uma cidade em pleno crescimento não apenas populacional, mas também social e econômico. Desfrutava ainda dos últimos benefícios trazidos pela riqueza acumulada pela indústria saladeril, grande motor do desenvolvimento urbano desde o final do século XIX e ainda no primeiro quartel do século XX (VIEIRA, 2005). A cidade vivia o alvoroço da modernização, que chegava pela instalação da energia elétrica, pelo funcionamento dos bondes elétricos, pela pavimentação das ruas e, sem dúvidas, pela excelência de sua praça comercial. Mas era uma modernização de limites precisos, pois as ruas centrais, verdadeiras definidoras da cidade, eram poucas, no total das 59 ruas existentes, das quais menos da metade era dotada de calçamento (GONÇALVES, 2018). O projeto de urbanização de Cypriano Corrêa Barcellos, de 1912, ainda estava promovendo a experiência desses benefícios trazidos pelas novas tecnologias.
Uma vista aérea da cidade mostraria os claros limites entre o espaço urbano e a periferia ainda a ser explorada. Os arrabaldes eram mais efetivos no Porto, Fragata, Três Vendas e Areal, mas como núcleos em formação, sem qualquer das características experimentadas pelo centro. Assim, o centro seguiu a tendência de se concentrar no entorno da elite dominante que habitava a cidade, constituindo, em algumas de suas ruas, a maior densidade de estabelecimentos comerciais, de serviços e instituições públicas e privadas que atendiam às demandas da sociedade, sobretudo dos hábitos compartilhados pela elite dominante. Afirmava-se, assim, a lógica da “economia de escala”, quando atividades semelhantes buscam a proximidade, com o intuito de se aproveitarem dos benefícios de uma pequena escala espacial, onde um maior número de ofertas está disponível para todos. Essa lógica permanece até que os efeitos benéficos dessa localização privilegiada se tornem negativos, pelo excesso de pessoas, movimento e as dificuldades que isso traz. A lógica se transforma em uma “deseconomia de escala”, promovendo, então, o afastamento dessas mesmas pessoas e a tendência de que as atividades se dispersem. Mas aqui ainda estamos na gênese da formação do centro da cidade de Pelotas, que se dá não apenas pela concentração de atividades, que se traduzem pelos fixos no espaço, representados pelas lojas, cafés e espaços de sociabilidade, mas, e principalmente, pela capacidade dessas atividades gerarem fluxos em direção a essa área, fazendo com que esse seja o lugar onde todos queiram estar e para onde todos queiram se dirigir, quando se trata de suprir necessidades de comércio, de serviços e de consumo.
Desse modo, não surpreende que a localização dos estabelecimentos comerciais, naquela época, se desse preferencialmente em torno dos mesmos endereços. Algumas ruas serão privilegiadas em função de conterem atrativos que se multiplicam uns após os outros, como os já citados referentes ao calçamento, iluminação, transporte e facilidade de acesso. Sobretudo, também estava garantido outro fator essencial na formação do centro, a proximidade das camadas de alta renda, que representam os principais consumidores desse mercado (VIEIRA, 2020).
O Álbum de Pelotas conta com 252 páginas, para fins desta análise, foram considerados 61 anúncios, sendo 47 referentes às atividades do comércio varejista de modo geral e 14 relativos a outras atividades, principalmente de prestação de serviços. Alguns estabelecimentos possuíam atividades que muitas vezes abarcavam o comércio varejista e o atacadista ao mesmo tempo, bem como realizavam também serviços (principalmente conserto, reparação e manutenção) e atividades de confecção de roupas, abrangendo outras classificações, além da comercial. Como se observou, por exemplo, no ramo da venda de confecções, que em muitos casos também oferecia o serviço de alfaiataria. Do mesmo modo, as livrarias, além do comércio tradicional de livros e artigos de papel em geral, em alguns casos, ofereciam serviços de impressão, típicos da indústria de transformação e tipografia, classificada como uma atividade técnica, entre outras atividades.
Como metodologia de classificação das atividades anunciadas no Álbum, se utilizou a CNAE 2.0 (Classificação Nacional das Atividades Econômicas, Versão 2.0), elaborada pela CONCLA (Comissão Nacional de Classificação), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) (IBGE, 2021b). Para este fim, foram consideradas as classificações da Seção G (Comércio, Reparação de Veículos Automotores e Motocicletas), Divisão 47 (Comércio Varejista) e os respectivos Grupos, Classes e Subclasses, sempre que as informações permitiram o maior detalhamento da atividade. As atividades não correspondentes ao comércio varejista foram classificadas em suas respectivas Seções, que corresponderam aos seguintes resultados: C (Indústria de Transformação); H (Transporte, armazenagem e correio); M (Atividades profissionais, científicas e técnicas); e, S (Outras atividades de serviços).
As 47 atividades classificadas na Seção G, Divisão 47, referente ao comércio varejista, estão distribuídas da seguinte maneira: 19 atividades se referem ao comércio varejista especializado de tecidos e artigos de cama, mesa e banho; 5 de comércio varejista de ferragens e ferramentas; 3 de comércio varejista de livros, jornais, revistas e papelaria; 2 destinadas ao comércio varejista de cosméticos, produtos de perfumaria e de higiene pessoal e as demais divididas entre diversos ramos com uma atividade em cada.
Portanto, a maior parte dos estabelecimentos anunciantes se referia às atividades de roupas, confecções, peças do vestuário e acessórios ligados à moda de vestimenta pessoal. São comuns os destaques nos anúncios referentes à atualidade dos produtos comercializados e seu alinhamento ao que era ofertado na Europa, sobretudo em Paris. Tratava-se, como se vê, de um comércio fino e refinado destinado àqueles que podiam ostentar a riqueza de suas origens sociais. Mais do que atender necessidades essenciais, o que se observa aqui é um comércio que atende ao consumo da moda para a elite.
O anúncio “Aos Grandes Armazens Herminios”, localizado na rua 15 de Novembro, deixa evidente, já pelo nome, o vínculo com a origem portuguesa de seu proprietário, Sr. J. A. Carvalho, e o estabelecimento presta uma homenagem a um dos mais destacados estabelecimentos de comércio da cidade do Porto, em Portugal, os Armazens Hermínios, que seguia a forma comercial dos grand magasins de Paris, ao melhor estilo do Bon Marché, cuja fama chega até nós. O anúncio da casa, fundada em 1902 em Pelotas, destaca que é a “que primeiro recebe as grandes variedades e modas de Paris”.
Figura 1 – Anúncio “Aos Grandes Armazens Herminios”
Fonte: Álbum de Pelotas, 1922.
“A Moda Elegante” é outro anúncio que destaca a variedade e luxo das casas de modas da cidade, destacando que “cuja vitrine bem iluminada nada fica a dever às grandes montras Européas”. Também localizada na rua 15 de Novembro, “em pleno centro do movimento comercial e social”, como frisa o anúncio no Álbum.
Figura 2 – Anúncio “A Moda Elegante”
Fonte: Álbum de Pelotas, 1922.
A presença dos imigrantes no comércio local é uma tônica importante desde esse período, quando se observa o nome de estabelecimentos, como “A Portuguesa”, no Mercado Central, ou “Flor da Syrya”, na Praça da República (atual Praça Coronel Pedro Osório), ou mesmo o nome dos proprietários como Aziz Al-Alan, da casa “A Favorita”, na rua Marechal Floriano, ou da casa “Vva. F. Behrensdorf & Cia”, outro estabelecimento da rua 15 de Novembro. Evidencia-se assim, que sempre foi comum o comércio praticado pelos imigrantes portugueses, sírios, libaneses, alemães, entre outros que vieram a constituir a elite do comércio em Pelotas.
A presença das livrarias no Álbum é outro ponto que merece destaque, não apenas pela oferta de variada bibliografia nacional e internacional, como também pela edição de obras locais e de outros lugares. As livrarias desempenharam um papel importante no desenvolvimento cultural da cidade e gozavam de grande prestígio pela importância que tinham no cenário social (ARRIADA, 2012; SEGOVIA, 2014). No Álbum, os anúncios da “Livraria Universal”, da “Livraria do Globo” e da Livraria Commercial” evidenciam a variedade de produtos disponíveis aos consumidores, bem como a diversidade de serviços incluindo tipografia, impressão, douração, encadernação, entre outros. As livrarias cumpriram um importante papel no acesso à leitura e na produção editorial, permitindo o desenvolvimento intelectual e a difusão da cultura na cidade.
Figura 3 – Anúncio “Livraria Universal”
Fonte: Álbum de Pelotas, 1922.
Em termos de localização dos estabelecimentos comerciais, a organização do mapa mostrado na Figura 4, a partir da fonte propiciada pelo Álbum de Pelotas, demonstrou, em 1922, a preferência pela rua 15 de Novembro, desbancando a rua Félix da Cunha na localização dos principais comerciantes. Observa-se que em seguida aparece a escolha das ruas Marechal Floriano, General Osório e 7 de Abril (atual D. Pedro II), entre outras destacadas no Álbum. Nesses logradouros irá se concentrar boa parte da atividade de comércio e de serviços, configurando o centro da cidade de Pelotas. Aliás, em estudos anteriores, se demonstrou que essa tendência à concentração nessa mesma área, perdurou até os anos 1960 e que somente a partir dos anos 1970 é que começa a surgir, ainda que de forma incipiente, o deslocamento de atividades centrais para o exterior da área original, processo que continuará até a formação de novas centralidades (LIHTNOV; VIEIRA, 2016).
Alguns endereços, como os da rua Andrade Neves, não puderam ser georreferenciados, tendo em vista que os anúncios não continham informações completas, ou as ruas onde se localizavam tiveram sua nomenclatura e numeração alteradas. Além disso, muitos lotes passaram por alterações, desde então, na forma do parcelamento do solo. Devido à impossibilidade imposta pelas restrições sanitárias decorrentes da pandemia por Covid-19, não foi possível a consulta às fontes primárias que poderiam esclarecer tais discrepâncias.
Figura 4 – Mapa de localização e da distribuição de estabelecimentos comerciais no centro de Pelotas, conforme anunciado no Álbum de Pelotas, de 1922, de acordo com sua classificação.
Fonte: Mapa base da Prefeitura municipal de Pelotas, 2021, editado pelos autores.
Além dos 47 anúncios que tratam de atividades comerciais, dos quais 30 aparecem no mapa, aqui também foram arrolados os anúncios cuja atividade principal anunciada não corresponde à atividade comercial varejista ou atacadista O total de anúncios dessa tipologia corresponde a 14, dos quais 9 aparecem no mapa. O principal ramo de atividade encontrado nesses anúncios diz respeito à alfaiataria, cuja classificação, apesar de ser uma atividade diretamente ligada ao comércio de roupas e de tecidos, tecnicamente, está entre as atividades industriais, mais especificamente relativa à indústria de transformação, que diz respeito, entre outras, às atividades de confecção, sob medida, de peças do vestuário. Nesse segmento foram encontrados 7 anúncios. Depois, seguem as atividades de serviços propriamente ditas, correspondentes às atividades de serviços pessoais, caracterizados por 2 barbearias. Outros anúncios se referem às atividades de ourives, importação e exportação, consultório médico entre outras.
A rua 15 de Novembro foi eternizada na memória social pelas vivências experimentadas pela sociedade da época e traduzidas nas crônicas de jornais e fotografias recorrentes, sempre destacando a modernidade e o desfrute da rua por uma elite que dela se apropriou. O pequeno trecho desta rua, entre a praça da República (atual Praça Coronel Pedro Osório) e a rua Voluntários da Pátria, foi onde se concentrou o principal comércio da cidade nos idos de 1922, conforme os anúncios observados no Álbum. Ali estavam lojas de modas, relojoarias, alfaiatarias, bazares, cafés, restaurantes e livrarias. Foi o local preferido para a realização dos passeios, dos encontros e de festas, como o carnaval. O trabalho de Devantier (2013) ao analisar a sociabilidade desta rua é uma descrição precisa da apropriação da rua por uma parte da sociedade identificada com os ideais da modernidade da época. A rua 15 de Novembro concentrou não apenas os estabelecimentos fixos, mas, sobretudo, mobilizou os fluxos de deslocamentos tanto para o consumo no espaço das lojas ali localizadas quanto o consumo do espaço, representado pelo acesso ao lugar por onde transitava a sociedade dominante na época.
A Associação Comercial de Pelotas
Outro fato importante de se referenciar entre os anúncios contidos no Álbum de Pelotas de 1922 é a alusão à Associação Commercial de Pelotas. Respondendo aos anseios da época, um distinto grupo de mercantes locais se articulou em prol do comércio e da indústria instituindo, em 7 de setembro de 1873, a Associação Comercial de Pelotas. Por decreto, esta mesma instituição viria a ser considerada de utilidade pública pelo governo federal em 2 de janeiro de 1918. Ao longo de sua história, a entidade trouxe proeminentes contribuições ao espaço terciário pelotense, atuando como impulsionadora da estrada de ferro na província, uma poderosa alavanca de desenvolvimento do comércio à época. Considerada um dos órgãos de defesa de comerciantes mais antigas do país, a associação atuou em benefício de projetos que viabilizassem o desenvolvimento econômico e social da região sul do estado do Rio Grande do Sul, com destaque para a fundação da Gráfica Diário Popular Ltda.; o Centro da Legião Brasileira de Assistência de Pelotas; a incorporação em seu quadro de sócios, em 1919, da Companhia Telefônica Melhoramento e Resistência (CTMR), atualmente extinta do mercado; a sugestão ao Banco do Brasil da criação de uma Câmara de Compensação de Cheques, em 1952; a inauguração do tráfego mútuo entre a CTMR e a Companhia Telefônica Nacional; além da reivindicação do asfaltamento da rodovia Pelotas-Rio Grande e a construção da ponte sobre o canal São Gonçalo, entre outros de relevância regional (IBGE, 2021). Desde a inauguração de sua sede, em 1942, a associação passou a figurar no Edifício Palácio do Comércio, situado à rua Sete de Setembro, 274. Atualmente, a entidade atua em diferentes segmentos do comércio local, sendo participante ativa nos Conselhos Municipais e no grupo Aliança Pelotas, que reúne liderança empresariais da cidade. Cabe destacar ainda a filiação da instituição à Federação de Entidades Empresariais do Rio Grande Sul (FEDERASUL) além da criação da Diretoria do Jovem Empreendedor e a Diretoria das Mulheres Empreendedoras, em 2017, ações que tiveram por objetivo aproximar jovens empreendedores do protagonismo empresarial e comercial da região. (ACP, 2021).
A associação, desde seu início mostrou a força do empresariado comercial local, sendo capaz de articular não apenas o desenvolvimento do comércio, propriamente dito, mas também de uma série de melhorias para a cidade e a região. Por outro lado, há que se destacar, que pouco se vê na obra em análise acerca dos comerciários, importante força de trabalho imprescindível para o sucesso das atividades aqui destacadas.
O Clube Comercial de Pelotas
Ainda, atesta a grandiosidade do empresariado comercial local o Clube Comercial de Pelotas. O Clube Comercial tem como marco de fundação a data de 17 de agosto de 1881, tendo na figura de Francisco Alsina seu primeiro presidente. Cabe destacar que a instituição foi concebida com o propósito de ser um espaço eminentemente masculino, pressuposto que foi superado ao longo do tempo. A primeira sede do Clube localizava-se na antiga Praça D. Pedro II, 106 (atual Praça Coronel Pedro Osório) onde atualmente está situado o Clube Caixeiral, espaço utilizado até outubro de 1888, quando se transferiu para a sua atual sede, situada na rua Félix da Cunha, 663, esquina com a rua General Neto. Transcorridos quase um século e meio de história, o clube viu seus dias gloriosos ficarem no passado.
Tombado no ano de 1983 como patrimônio cultural da cidade de Pelotas, o prédio histórico que abriga a sede da instituição sofre com a ação do tempo e falta de reparos adequados. O clube que chegou a ter milhares de sócios, já no ano de 2015, contava com apenas 80 sócios efetivos, fator que afetou diretamente sua monetização de modo que, em novembro de 2019, o clube foi forçado a fechar suas portas. Atualmente o clube enfrenta inúmeras adversidades em busca de recursos que viabilizem as reformas estruturais necessárias à reabertura de sua sede (DIÁRIO POPULAR, 2020).
No Álbum de 1922 as fotografias exibem o luxo e a beleza do Clube, expondo seus suntuosos salões de baile, de leitura, de bilhar, entre outros. A vista geral do clube exalta a beleza da fachada de esquina, com destaque para o local onde funcionava o correio. As belas colunas internas da Grande Galeria aparecem adornadas por exuberantes cortinas, tapete e mobiliário destacado. O saguão e a escadaria da entrada são mostrados também em destaque. Até mesmo os corredores do clube ostentam mobiliário digno de nota.
Figura 5 – Clube Comercial de Pelotas
Fonte: Álbum de Pelotas, 1922.
Trata-se de um conjunto de fotografias que representam muito bem a importância do comércio para a cidade e da atividade dos comerciantes, enaltecidas em seu principal clube.
Considerações Finais
Os anúncios contidos no Álbum de Pelotas permitem uma análise muito rica não apenas das atividades comerciais e correlatas, ali presentes, mas também da formação do centro da cidade. Do mesmo modo, são reveladoras de importantes aspectos da sociedade pelotense à época, deixando claro seus hábitos com relação ao consumo e o aparato a ele associado. A riqueza de detalhes das fotografias ao revelar as fachadas dos prédios, o entorno no qual estão inseridos, permite concluir acerca da qualidade do espaço urbano. Por outro lado, a imagem do interior dos estabelecimentos, permite inferir sobre a organização e a forma de apresentação dos produtos, entre outros elementos do consumo. Tudo isso, constituiu um raro exemplar de memórias da cidade, que nos permite, então, analisar as relações sociais existentes no período e melhor compreender as permanências que encontramos na atualidade e as rupturas que se geraram ao longo do tempo.
Certamente que as imagens contêm muito mais informações do que foi possível revelar neste espaço, deixando claro para estudiosos e pesquisadores que o Álbum de Pelotas de 1922 se constitui em uma fonte muito rica, que merece ser profundamente explorada.
Referências
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[1] Trabalho realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico–CNPq
[2] Professor Titular do Departamento de Geografia, Coordenador do Laboratório de Estudos Urbanos e Regionais, UFPEL, Membro da Rede Brasileira de Estudos Geográficos sobre Comércio e Consumo.
[3] Coordenador do Laboratório de Estudos Urbanos e Regionais, UFPEL, Membro da Rede Brasileira de Estudos Geográficos sobre Comércio e Consumo.