Bruna Gonçalves de Paula
Kamily Emanuele do Nascimento Araújo
Embora o Brasil declare no texto constitucional a laicidade do Estado, ou seja, que Estado é aberto às práticas religiosas de qualquer matriz, percebemos que algumas religiões são constantemente violentadas. A invasão e depredação de terreiros no Brasil acontece de forma constante, como é o caso do terreiro de candomblé Ilê Asè Airá Tolami, situado na Bahia, que já foi invadido e depredado mais de uma vez (Brasil de Fato, 2023, online). Só no ano de 2018, ocorreram 10 arrombamentos, e em fevereiro de 2023 foram destruídas as casas dos orixás, o que levou à constatação de que o objetivo desse vandalismo foi inviabilizar a prática religiosa. Esses atos de vandalismo fazem com que as pessoas fiquem receosas em praticar a sua fé.
No artigo 5°, inciso VI, da Constituição Federal, está expresso que: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (Brasil, 1988). Porém, observa-se um preconceito expressivo e atrelado às religiões de matriz africana, com elementos discriminatórios intrinsecamente associados ao racismo.
Mirando a história do país, verificamos que os escravizados, ao serem obrigados a professar a fé católica, participar de missas e receber os sacramentos, enfrentaram um apagamento não só histórico, mas cultural e político. A questão dos direitos humanos e a intolerância religiosa são temas intrinsecamente ligados quando se trata das religiões de matriz africana. Com base nisso, foi escolhido focar especialmente na Umbanda no âmbito deste texto.
O objetivo geral desta pesquisa foi: Contextualizar a violência histórica contra as religiões africanas e analisar a evolução dos direitos humanos e das políticas públicas para a proteção dessas religiões, com foco na umbanda. O objetivo específico desta pesquisa foi: realizar um levantamento bibliográfico das obras de Abdias Nascimento (1978), Kabengele Munanga (1999) e Nathalia Vince Esgalha Fernandes (2017), bem como realizar entrevistas semiestruturadas com Carlos Alberto, umbandista há mais de cinquenta anos, radialista e ativista na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul. O intuito é aprofundar a compreensão de suas experiências em relação ao racismo e à intolerância dirigidos às religiões de matriz africana, além de explorar suas percepções sobre essas questões.
1. Desenvolvimento e discussão
As religiões de matriz africana são um legado ancestral dos negros e surgiram a partir da contribuição de diferentes povos africanos, como os iorubás, bantos e cabindas, que trouxeram suas práticas espirituais e rituais. Ao longo do tempo, essas religiões, incluindo a Umbanda, enfrentaram discriminação e perseguição, o que destacou a necessidade de implementar políticas públicas eficazes. Essa situação revela uma conexão estreita com a luta pelos direitos humanos.
Lá em 1969, existia um pouco mais de resistência aos nossos cultos religiosos, era uma situação difícil, tempos difíceis. Pra tu fazer uma oferenda num cruzeiro, para fazer um evento aberto ao público, tu tinha que ter além da autorização de uma entidade associativa, tu tinha que ter autorização da delegacia de polícia, para fazer o evento. Existia, mas era mais leve. Hoje, atualmente, nós quimbandeiros e africanistas somos perseguidos. (Entrevista realizada com Carlos Alberto, , em de dezembro de 2023)
Não quero tolerância, eu quero respeito. Tolerar é uma forma de dizer que a minha religião está errada, mas dá para fingir que não. Preciso que respeitem o candomblé da mesma maneira que eu respeito todas as religiões. Já vieram na porta da minha tenda espiritual e disseram que o diabo estava aqui. Bom, eu sempre respondo duramente a esse tipo de coisa e falei que realmente o diabo estava lá porque a própria pessoa tinha trazido (Folha/PE, 2016, on-line).
Por conseguinte, a memória trazida por Carlos Alberto Pereira (entrevistado, 5 Dez 2023), conecta-se com o relato que Abdias Nascimento (2016) faz em sua obra. Sendo ele:
Por advertência de um tenente do DSV, as filhas-de-santo, trajadas à maneira baiana, desistiram de entoar os cânticos da seita”, como também, “Não só se negou a própria igreja da comunidade para o que seria uma prática “sincrética” como, além do mais, as pessoas que se dirigiram ao templo foram pela polícia proibidas de, ainda nas ruas, entoarem seus cânticos rituais- proibição que nunca é imposta aos celebrantes e participantes das missas ao ar livre e das procissões católicas (…) (Nascimento, 1978, p. 112).
Abdias Nascimento (1978) desempenhou um papel significativo na discussão sobre racismo e intolerância religiosa. Ele argumenta, denuncia e critica eloquentemente a necessidade de uma abordagem mais abrangente na promoção da diversidade religiosa e na garantia dos direitos fundamentais, posicionando a Umbanda e todas as religiões de matriz africana não apenas como práticas espirituais, mas como agentes essenciais na construção de uma sociedade mais justa.
É importante destacar que a destruição e impedimento de cultos em terreiros são violações dos direitos humanos e manifestações de intolerância religiosa. Até hoje, há relatos de destruição de templos religiosos africanos. Por exemplo, o Caso em Duque de Caxias (2017): um terreiro de candomblé foi incendiado e destruído em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro (Nascimento, 2019). O crime foi noticiado por veículos de imprensa locais e gerou indignação pela intolerância religiosa. No Caso em Florianópolis (2018), a imagem de Iemanjá foi alvo de vandalismo; o tradicional espelho de Iemanjá foi arrancado e o carro de um funcionário que faz a vigilância do templo, que estava ao lado da imagem, teve os vidros quebrados (Poncio, 2018). No Caso em Salvador (2023), um terreiro de candomblé em Salvador, Bahia, foi alvo de vandalismo e depredação. A casa, em Dias D’Ávila, já foi alvo de diversos ataques, mas o Estado não registra atos como intolerância religiosa (Amorim, 2023).
Contudo, os exemplos citados fazem parte da realidade enfrentada pelos religiosos há séculos. Assim, para combater o racismo religioso, foi necessário fortalecer a construção da identidade coletiva dos movimentos religiosos afro-diaspóricos, como sugere Munanga (1999). Ademais, para superar os obstáculos, é necessário criar uma autodefinição, estabelecendo uma consciência coletiva para o enfrentamento das repressões existentes, afirmando sua própria identidade, origem e posição na sociedade (Munanga, 1999, p. 13-14). Logo, alinhando-se aos ideais de Munanga, é necessário que a comunicação dentro da comunidade religiosa esteja cada vez mais presente, tornando urgente a criação das Federações de Umbanda e Cultos Afro-Brasileiros, como destaca Carlos Alberto (entrevistado em 5 de dezembro de 2023). Muitas vezes, atuando como uma voz coletiva para seus membros, isso pode ser particularmente relevante em questões sociais, políticas ou legais, e, não menos importante, para a preservação das tradições e práticas religiosas.
Por fim, Carlos Alberto (entrevistado, 5 Dez 2023), se posiciona em uma reflexão quanto a religião e ancestralidade:
Aquele que chegar na umbanda e for cobrado dentro da umbanda, não estou falando nem em nação, nem em quimbanda, aquele que chegar e for cobrado na umbanda, corre que é fria. Não funciona assim. A umbanda é amor, a umbanda é caridade. A umbanda é um pronto socorro espiritual aberto vinte e quatro horas do dia só pra praticar a caridade. Minha mãe fez várias vezes e eu faço o que ela faz.
A religião, de acordo com Carlos Alberto (entrevistado, 5 Dez 2023), é algo que perpassa gerações, sendo algo hereditário, demonstrando ser uma herança ancestral. E não só isso, como também traz lembranças de repressão, comparando com os tempos atuais.
Considerações finais
Diante da problemática sobre a violência que as religiões de matriz africana sofrem há séculos, ao longo desta pesquisa foi possível perceber que os umbandistas se mantêm firmes em sua fé. Este trabalho evidenciou como a formação de consciência e identidade coletiva possibilitou a abertura de espaço para o acesso ao culto livre aos Orixás e entidades cultuadas. Assim, eles têm conseguido ressignificar seu meio combatente com organização, diálogo e posicionamento estratégico, gerando a possibilidade de que suas pautas sejam levadas em consideração pelo meio político, influenciando a formulação de políticas públicas. Mesmo com as ameaças e a violência enfrentadas, a preservação da religiosidade e da ancestralidade, se mantém, em sua maioria devido à memória afro-diaspórica transmitida por diversas gerações, como é possível observar no relato de Carlos Alberto (entrevistado em 5 de dezembro de 2023): “Minha mãe fez várias vezes e eu faço o que ela faz”. Assim, a herança religiosa é reproduzida por ele e por muitos umbandistas, uma vez que a Umbanda, assim como outras religiões de matriz africana, é um legado ancestral oriundo dos africanos.
O fato de que as religiões trazidas pelos africanos serem frequentemente as mais discriminadas, atacadas, marginalizadas e desrespeitadas evidencia que, até na expressão da fé, que deveria ser respeitada por ser algo pessoal e individual, o racismo não dá trégua, manifestando-se constantemente através de vandalismo, julgamentos ou alegações como “o diabo está aqui” (Folha/PE, 2016).
Referências
________. Como viviam as pessoas escravizadas pela Igreja no Brasil. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-57099524. Acesso em: 01 março 2024.
ALBERTO, Carlos. Entrevista sobre a resistência aos cultos religiosos. 5 dez. 2023.
AMORIM, Gabriela. Terreiro é novamente invadido e depredado na região metropolitana de Salvador (BA). Brasil de Fato, Salvador, 14 fev. 2023.
FERNANDES, N. V. E. A raiz do pensamento colonial na intolerância religiosa contra religiões de matriz africana. Revista Calundu, 2017.
FOLHAPE. Não quero tolerância, eu quero respeito. 2016. Disponível em: [URL]. Acesso em: 01 março 2024.
LYRA, Roberto. Racismo religioso: GT Racismo do MPPE acompanha apresentação de resultados de pesquisa. Ministério Público de Pernambuco. 17 set. 2022.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem: identidade nacional versus identidade negra. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 1978.
PONCIO, Eveline. Imagem de Iemanjá é alvo de vandalismo em Florianópolis. G1, Florianópolis, 02 nov. 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2018/11/02/imagem-de-iemanja-e-alvo-de-vandalismo-em-florianopolis.ghtml. Acesso em: 01 março 2024.