A favela venceu: um ensaio sobre essa falácia

Felipe José Santos
Rafaél de Lima

Introdução

O tema racismo e sua relação com a ideia de meritocracia têm sido amplamente debatidos na sociedade contemporânea. Muitas vezes, a narrativa de que o esforço individual é suficiente para alcançar o sucesso é utilizada para justificar a desigualdade social e a falta de oportunidades para certos grupos, como a população negra. No entanto, essa perspectiva negligencia o contexto histórico e social que moldou a realidade brasileira.

Ao longo da história, o Brasil foi marcado por profundas injustiças e desigualdades decorrentes do período da escravização que moldou a base da sociedade atual. O mito da democracia racial e o da miscigenação das três raças contribuíram para a construção de uma narrativa de harmonia racial, mas que esconde a violência e a opressão sofrida pelo povo negro.

Este ensaio busca discutir a narrativa da falácia de que a “favela venceu”, ou seja, que alguns casos isolados de sucesso de pessoas negras seriam suficientes para afirmar que a igualdade de oportunidades foi alcançada. Através das perspectivas de autores sobre o tema, buscou-se fundamentar a desconstrução desse mito, trazendo à tona a realidade social, a má distribuição de renda e a história do Brasil construída sobre a escravidão. Neste contexto, é fundamental analisar as experiências e posicionamentos de importantes intelectuais e ativistas negros, como Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez e Guerreiro Ramos, que criticaram a falsa ideia de democracia racial no Brasil.

Por fim, o objetivo é discutir o tema e contribuir para uma compreensão mais crítica e sensível do racismoestrutural, assim como a importância de políticas inclusivas para promover uma sociedade mais justa e igualitária para todos os brasileiros, independente de sua origem étnica.

Desenvolvimento e discussão

A história do Brasil foi marcada por um sistema de desigualdades raciais, onde a população negra enfrentou discriminação e exclusão social. Como destacado por Gilberto Freyre em sua obra seminal ‘Casa-Grande & Senzala’ (1933), a miscigenação racial brasileira não apagou as diferenças raciais, embora fosse essa a perspectiva do autor; ao contrário da ideia de democracia racial, por ele defendida, criou-se um sistema de desigualdade racial complexo.

Atualmente a expressão “A Favela Venceu” é usada como uma forma de resistência e superação por parte das comunidades das favelas. No entanto, essa mesma expressão é frequentemente usada para construir uma narrativa que tem ganhado espaço na sociedade brasileira, sugerindo uma aparente ascensão do povo negro aos cargos de tomada de decisão e uma convivência harmoniosa entre as diferentes raças. Como Abdias Nascimento observou, o mito da democracia racial no Brasil é uma ilusão que mascara as profundas desigualdades raciais que persistem na sociedade.

Ao usar a narrativa “A Favela Venceu”, sugere-se uma ascensão generalizada do povo negro, ignorando-se a realidade de desigualdades enfrentadas por milhões de brasileiros que vivem em condições precárias nas favelas. Essa expressão pode reforçar estereótipos e mascarar as injustiças enfrentadas por essas comunidades. Nesse sentido, é necessário desmistificar a falsa impressão de que a população negra experimentou uma melhoria significativa de sua condição social e representatividade no país. Autores como Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e outros escritores têm desvendado as raízes históricas e culturais do racismo no país, estimulando a conscientização e o debate sobre a urgente necessidade de combater o preconceito racial.

Nesse contexto, o sociólogo, professor, escritor e intelectual brasileiro, Alberto Guerreiro Ramos foi um defensor da necessidade de uma educação que promovesse a igualdade de oportunidades para todos os brasileiros. Ele acreditava que a superação das desigualdades sociais e raciais no Brasil passava pela construção de uma sociedade mais justa e igualitária, em que as oportunidades fossem equitativamente distribuídas. Guerreiro Ramos também defendia a necessidade de uma administração mais eficiente e voltada para as necessidades da população, em especial das comunidades marginalizadas (RAMOS, 1950).

No final dos anos 1940, uma figura de destaque nesse cenário foi Abdias do Nascimento, um importante intelectual, militante negro brasileiro e um crítico ferrenho da ideia de democracia racial, enfatizando que a verdadeira igualdade só poderia ser alcançada com o enfrentamento do racismo e a garantia dos direitos fundamentais para todos os cidadãos, independentemente de sua origem étnica. Em suas obras e discursos, Abdias desmistificou o mito da harmonia racial e expôs as profundas desigualdades e injustiças enfrentadas pela população negra no país. Ele argumentava que a democracia racial era uma falsa narrativa criada para encobrir as disparidades raciais e para negar a existência do racismo estrutural no Brasil. Enfatizava também que, apesar de a miscigenação ser uma característica marcante da sociedade brasileira, isso não significava que as questões raciais estavam resolvidas ou que a igualdade havia sido alcançada.

Lélia Gonzalez também foi uma crítica contundente da ideia de democracia racial, destacando como essa narrativa mascarava as desigualdades raciais e negava a existência do racismo no país. Intelectual, antropóloga, e uma das principais referências do feminismo negro no Brasil, questionava a narrativa de harmonia racial e apontava para a persistência do racismo estrutural e da opressão enfrentados pela população negra brasileira, afirmando que democracia racial era uma construção ideológica que mascarava as desigualdades raciais e servia para manter as estruturas de poder que perpetuavam a exclusão e a marginalização dos negros (GONZALEZ, 1984). Ela defendia a importância de dar visibilidade e voz às mulheres negras, que frequentemente eram ignoradas e silenciadas nas discussões sobre igualdade de gênero e raça (GONZALEZ, 2001).

A ativista, filósofa e escritora Sueli Carneiro, em sua obra “Mulheres Negras no Poder”, também aborda a questão da democracia racial no Brasil ao apontar para a falsidade e inadequação desse conceito frente às experiências vividas pelas mulheres negras no país. A democracia racial é uma narrativa que sugere uma convivência harmoniosa entre as raças no Brasil, desconsiderando as desigualdades raciais e as estruturas de opressão que ainda persistem. No entanto, ao abordar a questão das mulheres negras e seu acesso ao poder, Sueli Carneiro expõe como essa ideia é falaciosa e não reflete a realidade (CARNEIRO, 2009).

Sinhoretto e Morais (2018), em seu texto “Violência e racismo: novas faces de uma afinidade reiterada”, mostram como o racismo é um elemento estrutural que permeia diversas instâncias da sociedade, incluindo o sistema de justiça criminal, criando estereótipos e preconceitos que levam a uma maior criminalização e vulnerabilidade das pessoas negras. Além disso, destacam as disparidades nas taxas de encarceramento e mortes violentas de pessoas negras em comparação com a população branca, revelando como a falácia da democracia racial não se sustenta diante dos dados concretos.

Esses estudos, análises, conceitos e esforços mostram como a população negra brasileira sempre buscou resistir e lutar por sua inclusão na educação formal, mesmo diante das adversidades históricas e estruturais. Essas lutas e conquistas representam uma importante trajetória de resiliência, resistência e busca por igualdade na sociedade brasileira.

Considerações finais

É evidente que a história do Brasil é marcada por profundas desigualdades raciais e a negação da população negra de acesso a direitos fundamentais, como a educação. A expressão “A Favela Venceu” representa a resistência e a superação das comunidades das favelas, porém, ao ser utilizada como uma narrativa de uma suposta democracia racial, acaba por ocultar as graves desigualdades enfrentadas pelos brasileiros negros.

Torna-se imprescindível desmistificar a noção de democracia racial e reconhecer a realidade do racismo estrutural que ainda persiste no país. A busca pela igualdade racial é uma luta que exige esforços conjuntos da sociedade, das instituições e do poder público. As contribuições de intelectuais, ativistas e movimentos sociais são fundamentais para conscientizar a população sobre a importância de combater o preconceito racial e promover mudanças efetivas.

A educação surge como uma das principais ferramentas de transformação e mobilidade social, sendo essencial para a ascensão da população negra aos espaços de discussões e poder. O acesso igualitário à educação é um direito básico que deve ser garantido a todos os brasileiros, independentemente de sua origem étnica. Assim, é fundamental que políticas públicas igualitárias sejam implementadas, visando a promoção da igualdade racial e o enfrentamento das desigualdades socioeconômicas que historicamente afetam a população negra. A educação desempenha um papel central nesse processo, permitindo a formação de uma sociedade mais justa, inclusiva e respeitosa com a diversidade étnica e cultural do Brasil.

Portanto, é dever de toda a sociedade brasileira reconhecer a importância das lutas e conquistas da população negra, valorizar suas contribuições para a construção do país e, acima de tudo, trabalhar incansavelmente para que a igualdade racial seja uma realidade concreta. Somente assim poderemos avançar em direção a uma sociedade verdadeiramente justa, equitativa e plenamente inclusiva para todos os cidadãos.

Encerramos este ensaio com a triste e real constatação: enquanto brancos forem maioria na política, todo e qualquer projeto para negros só passa se eles acharem que os negros merecem. Enquanto brancos forem maioria na tomada de decisões, qualquer projeto proposto por negros, só será aprovado se passar pela aprovação branca.

Referências

CARNEIRO, Sueli. Mulheres Negras e Poder. Revista do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2009.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Editora: Global. 1933.

GONZALEZ, Lélia. Cultura Negra e Ideologia Racial no Brasil. Editora Ática, 1984.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. In: Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 9, n. 2, 2001.

GONZALEZ, Lélia. Lugar de Negro. Editora: Marco Zero, 1982.

NASCIMENTO, Abdias do. O Genocídio do Negro Brasileiro. Editora Paz e Terra, 1978.

RAMOS, Alberto Guerreiro. Apresentação da negritude. Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro, Rio de Janeiro, v. 2, n. 10, jun./jul. 1950b.

SINHORETTO, Jacqueline; MORAIS, Danilo de Souza. Violência e racismo: novas faces de uma afinidade reiterada.Revista de Estudios Sociales, n. 64, p. 15-26, 2018.