Violência política de gênero: do que tratamos?

Mari Fagundes

Em épocas eleitorais termos como gênero, política e violência são seguidamente mobilizados pelas mídias sociais. Porém, você sabe exatamente do que se trata? Neste ensaio acadêmico buscamos abordar, de forma suscinta, no que consiste violência política de gênero e como ela pode impactar a democracia brasileira. Para tanto, além de agenciarmos autoras e autores especialistas na temática, abordaremos alguns dados que demonstram a recorrência desse tipo de violência e seus impactos no fazer político brasileiro.

De início, importante destacar que entendemos gênero como uma construção social e não algo biológico, isto é, o gênero é construído conforme características atribuídas como femininas ou masculinas, levando em consideração o momento histórico, político e cultural em que está sendo analisado. Logo, não se trata de algo natural e essencializado, mas fruto de disputas de poder situadas em um momento histórico específico (Pinho, 2019). Entretanto, historicamente, essas construções colocaram as mulheres em posições de subordinação em relação aos homens, uma vez que estes foram sistematicamente vistos em posições de mando, enquanto mulheres em posição de subordinação (Scott, 1995).

Justamente em razão desse espaço de subordinação, inúmeras violências foram e são proferidas às mulheres em razão do gênero. Atualmente, após a promulgação da Lei Maria da Penha – lei 11.340/2006 (Brasil, 2006) – a violência contra a mulher tomou contornos mais precisos, pois esta não consiste apenas na violência física, conforme prevê o texto legal, se desdobrando em violência sexual, psicológica, moral e patrimonial. O reconhecimento pelo legislativo e a sua pulverização social, possibilitou estabelecer um debate que ultrapassa o âmbito doméstico e familiar, uma vez que a violência contra mulher era vista, rotineiramente, como algo pertencente ao âmbito doméstico. Você já deve ter ouvido a seguinte frase: “em briga de marido e mulher, não se mete a colher!”, não é mesmo?

Com o advento da referida Lei, esse debate ultrapassou o âmbito privado, possibilitando identificar essas violências em diferentes espaços, como é o caso do espaço público, mais precisamente, o espaço político, o que impacta sobremaneira a participação equitativa das mulheres na sociedade brasileira. Nesse sentido, Flávia Biroli (2016, online) conceitua violência de gênero pontuando que:

Essa tipologia engloba agressões, ameaças, diferentes tipos de assédio, estigmatização, exposição da vida sexual e afetiva, restrições à atuação e à voz das mulheres, tratamento desigual por parte de partidos e outros atores e organizações no que diz respeito a recursos econômicos para campanha política, entre outras formas de violência. O diagnóstico é de que essa violência é uma forma de reação ao aumento da participação das mulheres na política – ou, adiciono, a uma participação mais qualificada e mais efetiva.

A Lei Maria da Penha foi um importante passo para esse debate no Brasil. Porém, quando tratamos da discussão no campo político, o país tardou em enfrentar essa problematização de forma mais sistematizada e com o devido rechaço. Como veremos a seguir, apenas em 2021 foi aprovada uma legislação que busca prevenir, reprimir e combater a violência política de gênero (Brasil. 2021).

Um debate necessário: o reconhecimento jurídico da violência de gênero

Importante dizer que esse debate não se limitou ao Brasil. Aliás, alguns países da América Latina já haviam trazido para o campo político, legislações ou projetos de lei visando enfrentar a violência política de gênero. Como sinaliza Tassia Rabelo de Pinho (2019), o primeiro país a prever como crime o assédio e a violência política contra mulheres fora a Bolívia, em 2012. O Equador, no mesmo ano, propôs um projeto de lei visando criminalizar as referidas condutas, mas não teve êxito na aprovação, restando a proposta arquivada. Costa Rica, México e Peru, em 2013, também propuseram projetos de lei visando criminalizar a violência política de gênero, porém nem todos os países deram prosseguimento às iniciativas.

No Brasil isso só ocorreu em 2021, quando foi promulgada a lei 14.192, em 4 de agosto (Brasil, 2021). O intuito dessa legislação é romper com a normalização da violência política de gênero no país, pois, além da criminalização, busca construir uma cultura que repudie todo e qualquer tipo de violência. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e outros órgãos buscaram construir campanhas de conscientização tanto das instituições e seus agentes, quanto da comunidade em geral (CNJ notícias, 2022).

Bom, você pode estar se perguntando se homens também sofrem violência política de gênero, pois, se o gênero é uma construção, eles também podem ser atingidos, não é mesmo? De fato, a partir da conceituação mobilizada neste texto, o gênero é uma construção, entretanto, historicamente homens ocupam um papel de gênero que lhes coloca em posição de privilégio e não de opressão como ocorre em relação às mulheres. Nesse sentido, podemos observar as cadeiras ocupadas no Congresso Nacional brasileiro: em termos percentuais, mesmo após o crescimento da bancada feminina na Câmara Federal, por exemplo, dos 513 parlamentares, apenas 91 são mulheres; no Senado, das 81 cadeiras, as mulheres ocupam apenas 15 delas e; no que se refere aos Estados brasileiros, apenas dois são governados por mulheres (Senado, online; Agência Senado, online).

Importante dizer, que não estamos tratando aqui de mulheres em um sentido biológico, mas todas aquelas que performam o gênero feminino. Logo, mulheres trans também podem sofrer violência política de gênero. Um outro ponto que precisamos distinguir é a violência eleitoral e a violência política de gênero. No âmbito da violência eleitoral, homens e mulheres podem ser atacados por seus posicionamentos políticos durante o pleito eleitoral, isto é, em razão das suas propostas, alinhamento político, etc. No que se refere a violência política de gênero, a violência ultrapassa o pleito eleitoral, podendo se prolongar durante a atuação no mandato da candidata eleita (Pinho, 2019).

Considerações finais

Embora tenhamos avançado na ocupação de cargos eletivos, bem como elaboração de legislações que buscam prevenir e coibir a violência política de gênero, há um longo caminho a ser percorrido para que haja efetividade do proposto juridicamente. Importante destacar que ações de violência política de gênero quando perpetradas, além de impactar individualmente a vítima, também reverbera na coletividade de mulheres, uma vez que as violências também possuem impacto simbólico, construindo a ideia de que o espaço político eleitoral não é destinado às mulheres. Assim, a denúncia dessas violências e a fiscalização sistemática por parte das autoridades responsáveis se faz imprescindível para que possamos avançar na construção de uma democracia mais participativa e efetiva.

Referências

AGÊNCIA Senado. Apesar de maior presença de mulheres na disputa ao Senado, bancada feminina diminui.Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/10/03/apesar-de-maior-presenca-na-disputa-ao-senado-bancada-feminina-reduz-tamanho. Acessado em: Setembro de 2024.

BIROLI, Flávia. Violência política contra as mulheres. Blog da Boitempo, 2016. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2016/08/12/violencia-politica-contra-as-mulheres/. Acessado em: setembro de 2024.

BRASIL. Lei 11.340, publicada em 7 de agosto de 2006. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acessado em: setembro de 2024.

BRASIL. Lei 14.192, publicada em 4 de agosto de 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14192.htm. Acessado em: setembro de 2024.

CNJ notícias. Violência política de gênero: Brasil registra sete casos a cada 30 dias. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/violencia-politica-de-genero-brasil-registra-sete-casos-a-cada-30-dias/. Acessado em: setembro de 2024.

PINHO, Tássia Rabelo de. Debaixo do Tapete: A Violência Política de Gênero e o Silêncio do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, n. 28 (2). p.p. 1-14. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/3L8QwtCMJYN7xktYqSQsbXJ/?format=pdf&lang=pt. Acessado em: setembro de 2024.

SCOTT, Joan. Gênero: Uma categoria útil para a análise histórica. 2ª ed. Recife. S.O.S Corpo, 1995. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1737847/mod_resource/content/1/Scott_gênero%20uma%20categoria%20útil%20para%20a%20análise%20histórica.pdf. Acessado em: setembro de 2024.

SENADO. Procuradoria Especial da Mulher – Bancada Feminina. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/bancada-feminina-do-senado. Acessado em: setembro de 2024.