Ariane de Godoy Stramare
Deise Mari Pereira Silveira
Elizandra Fernandez Rodrigues
Kethlen da Silva Dias
Luciana Alves
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu a doença causada pelo novo coronavírus 2019 (COVID-19) em nível pandêmico. Tornando-se um dos maiores desafios do século XXI. Revelou-se como um grave problema de saúde pública em escala mundial, acometendo mais de 100 países nos cinco continentes, com aproximadamente 250 milhões de pessoas infectadas e cerca de 5,1 milhões foram a óbito.
Os impactos foram devastadores, afetaram direta e/ou indiretamente a saúde e a economia da população mundial. Em novembro de 2021, a (OMS) organizou uma convenção internacional para sistematizar as respostas no enfrentamento às pandemias. No Brasil, a gestão da saúde pública no enfrentamento a Covid – 19 foi catastrófica e decepcionante, visto que, o País era tido como referência internacional no enfrentamento de endemias e desenvolvimento e aplicação de vacinas.
Em junho de 2020, o Ministério da Saúde fez alterações profundas na metodologia de divulgação dos dados referentes à pandemia de Covid-19. Uma das mudanças foi a alteração do horário da divulgação dos dados, das 19h para as 22h, impossibilitando que fossem divulgados nos principais telejornais da noite. O site que, até então, divulgava a evolução da pandemia foi retirado do ar. Paralelamente a isso, o empresário Carlos Wizard, cotado para assumir o Ministério da Ciência e Tecnologia, declarou publicamente que o Ministério da Saúde pretendia recontar os mortos da Covid-19, sugerindo, desse modo, que os números divulgados até então estariam errados.
Oito meses após registrados os primeiros casos da covid-19, o Brasil encontrava-se entre os piores países no desempenho e enfrentamento à doença, e com números assustadores relativos a óbitos. A situação foi um resultado desastroso devido à falta de planejamento estratégico por parte do governo brasileiro. O governo de Jair Bolsonaro, desestabilizou e causou uma crise no Ministério da Saúde, pois, enquanto a pasta tentava orientar a população para a imunização coletiva/“imunidade de rebanho”, Jair se utilizava de diversos instrumentos para estimular a intensificação da contaminação, recorrendo para à disseminação de dados incorretos e inteiramente falsos, Mandetta (2020).
O presidente usou da estratégia da desqualificação da pandemia, atribuindo adjetivos como (“histeria”, “história mal contada”, “gripezinha”, “neurose”). Com essas atitudes controversas acabou estimulando e induzindo à aceleração do ritmo de contaminação (aglomeração, uso incorreto da máscara, defesa da abertura de academias, salões de beleza e escolas) e a propagação de falsas soluções, com anúncios enganosos de medicamentos comprovadamente ineficazes, Calil (2021).
O então presidente da República, Jair Messias Bolsonaro (PL) declarou na mesma época que “Acabou matéria do Jornal Nacional”, em franca referência a divulgação dos dados da pandemia, que era realizada diariamente nas edições do Jornal Nacional da Rede Globo.
Para piorar o quadro, as mídias sociais e demais meios de comunicação, difundiram a uma velocidade superior à propagação do próprio vírus, um excesso de conteúdos falaciosos que contribuíram para a desinformação e a fake news, gerando ansiedade na população e criando uma situação de pânico global. A (OMS), chegou a declarar que havia uma luta não apenas contra a pandemia do novo coronavírus, mas também contra uma infoendemia nas redes sociais, Bottós (2021).
A crise sanitária gerou alterações significativas no comportamento e na saúde da população, que sustentada no medo e no insuficiente conhecimento científico sobre o tema, acompanhada de conteúdos de fake news, adotou condutas não saudáveis, como o uso de medicamentos não prescritos, e a resistência ao uso da máscara de proteção a doença, Ventura (2023).
A falta de ferramentas, estratégias e a incapacidade das pessoas em discernir as informações verdadeiras das falsas, levaram a situações exacerbadas e incontroláveis, contribuindo para o aumento de pacientes em hospitais com crises de ansiedade, prateleiras de mercados vazias e a busca por medicamentos sem prescrição como tentativa de prevenção, deixaram os indivíduos mais expostos, e em condições ainda mais vulneráveis ao contágio da Covid-19.
A partir disso, os partidos políticos Rede Sustentabilidade (Rede), Socialismo e Liberdade (P-Sol) e Comunista do Brasil (PCdoB), ingressaram no Supremo Tribunal Federal (STF) com três ações de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (690, 691 e 692) nas quais apontavam a violação de Preceito Fundamental do Direito à Vida e à Saúde, a partir da não divulgação adequada dos dados relativos à pandemia, o que descumpria, ainda, conforme a arguição dos requerentes, os princípios da publicidade, eficiência e da razoabilidade, previstos, no art. 37, caput, da CF e no art. 2º, caput, da Lei do Processo Administrativo Federal.
Em suas arguições iniciais, os requerentes argumentaram que houve, por parte do Governo Federal, especialmente do Ministério da Saúde: “(…) injustificável mudança na prática adotada pelo Ministério da Saúde no que tange à divulgação dos dados referentes à pandemia decorrente do novo coronavírus”, o que “inviabiliza o acompanhamento do avanço da Covid-19 no Brasil, além de […] atrasar a correta implementação de política pública sanitária de controle e prevenção da doença”, ADPF (690).
A partir disso formularam uma série de pedidos que incluíram: a divulgação diária, até às 19h30, de compilação dos dados estaduais, sem manipulação, tais como o número de casos confirmados nas últimas 24 horas. Com o número de recuperados, óbitos e sepultamentos diários por município e estados, contagem de óbitos em investigação de confirmação e casos suspeitos da Covid-19.
Os requerentes solicitaram, ainda, ao STF que garantisse, ainda, a divulgação de casos suspeitos e confirmados categorizados por idade, sexo, raça, número de testes realizados e aqueles que ainda aguardam resultados, bem como curas, taxas de letalidade, além do número de profissionais da saúde contaminados.
Constou, também, no pedido da ação inicial a obrigatoriedade de o Governo Federal justificar detalhadamente qualquer alteração dos dados estaduais, se abster de fazer propaganda que desinformar a sociedade a respeito da pandemia e, elaborar e tornar pública metodologia capaz de estimar o número de subnotificações diárias.
O relator das ações iniciais foi o ministro Alexandre de Moraes, que no dia 8/6/2020 concedeu parcialmente a medida cautelar aos requerentes determinando ao ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello manter, integralmente, “a divulgação diária dos dados epidemiológicos relativos à pandemia (covid-19), inclusive no sítio do ministério da saúde e com os números acumulados de ocorrências, exatamente conforme realizado até o último dia 04 de junho”.
Em nota divulgada pela assessoria do STF, no dia 9/6/2020, sobre a decisão liminar, o ministro Moraes declarou: “A Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, consagrou expressamente o princípio da publicidade como um dos vetores imprescindíveis à Administração Pública, conferindo-lhe absoluta prioridade na gestão administrativa e garantindo pleno acesso às informações a toda a Sociedade.”
Ainda conforme a nota, o ministro observou que “A hipótese dos autos, não apresenta qualquer excepcionalidade que autorize o afastamento da publicidade e da transparência. Os dados vinham sendo fornecidos e publicizados, desde o início da pandemia até o último dia 4 de junho de 2020, permitindo, dessa forma, as análises e projeções comparativas necessárias para auxiliar as autoridades públicas na tomada de decisões e permitir à população em geral o pleno conhecimento da situação de pandemia vivenciada no território nacional”.
Ao se manifestar na ação, a Advocacia Geral da União, órgão que representa judicialmente a União, pediu a revogação da medida cautelar a partir dos argumentos de que o STF não poderia atuar como legislador positivo e de que: “A base informativa do Ministério da Saúde sobre a pandemia da Covid-19 compreende diferentes plataformas, dentre as quais o Painel Coronavírus. Em recente processo de aperfeiçoamento, essa base passou a enfatizar uma metodologia regionalizada de apresentação de informações, em que o cômputo do número de óbitos será realizado segundo a data da ocorrência – do falecimento dos pacientes – e não do registro formal desse evento pelas autoridades sanitárias. Nova forma de cômputo permitirá o conhecimento mais preciso do percurso epidemiológico e da dinâmica de contaminação da Covid-19, A plataforma contará com atualização em tempo real dos dados epidemiológicos, permitindo a visualização dos dados históricos já acumulados”.
O julgamento no colegiado.
Em 23 de novembro de 2020, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) fecharam questão em torno da forma de divulgação dos dados relativos aos casos e óbitos decorrentes da pandemia de Covid-19. A decisão foi publicada em um acordão, que é uma manifestação de um órgão judicial colegiado que revela uma posição jurídica, baseada em argumentos sobre a aplicação de determinado direito a uma situação de fato e específica. Neste acordão os ministros determinaram que o Ministério da Saúde deveria manter a divulgação diária dos dados epidemiológicos relativos à pandemia (Covid-19) e que o Governo do Distrito Federal (DF) deveria se abster de usar nova metodologia de contabilidade e voltar a utilizar a divulgação na forma como estava sendo feita até 18 de agosto de 2020.
No mesmo acordão, os ministros ainda determinaram que o Ministério da Saúde deveria publicar em seu site os dados relativos à pandemia, inclusive, com os números de ocorrências acumulados, tal qual era feito até o dia 4 de junho de 2020.
Em voto, na sessão que analisou a medida cautelar, o relator ministro Alexandre Moraes salientou que “dentro da ideia de bem-estar, deve ser salientada como uma das principais finalidades do Estado a efetividade de políticas públicas destinadas à saúde, inclusive a obrigação constitucional do sistema único de saúde – SUS de executar as ações de vigilância epidemiológica, entre elas o fornecimento de todas as informações necessárias para o planejamento e combate à pandemia causada pela COVID-19”.
Após ressaltar a emergência sanitária causada pela pandemia, que naquela época havia causado 155 mil mortes, o ministro Moraes indicou que o País poderia sofrer consequências desastrosas caso não fossem “adotadas medidas de efetividade internacionalmente reconhecidas, entre elas, coleta, análise, armazenamento e divulgação de relevantes dados epidemiológicos necessários, tanto ao planejamento do poder público para tomada de decisões e encaminhamento de políticas públicas, quanto do pleno acesso da população para efetivo conhecimento da situação vivenciada no País”.
Logo em seguida cita o princípio da publicidade e transparência como prioridade na gestão administrativa e pondera que isso significa que o Estado tem obrigação de fornecer informações necessárias e essenciais à sociedade. E argumenta que são notórios os fatos apresentados pelos autores de que as alterações realizadas pelo Ministério da Saúde e pelo Governo do Distrito Federal no formato e conteúdo da divulgação dos dados relacionados à pandemia (COVID-19), dificultaram a obtenção de dados essenciais para a compreensão da pandemia e, ainda, para a elaboração de análises e projeções comparativas necessárias para a tomada de decisão das autoridades públicas.
O ministro ainda citou a Resolução 01 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, aprovada em 10 de abril de 2020, que declarou como direito fundamental o acesso às informações públicas relacionadas à emergência gerada pela Covid-19.
O voto do relator foi seguido por unanimidade pelos demais ministros.
Após tempos difíceis, o Brasil tem novas perspectivas sobre o comando do agora Presidente Lula, este terá inúmeros desafios frente ao cenário catastrófico deixado pelo seu antecessor.
Para Ventura (2023) a saúde pública brasileira foi recentemente descrita por especialistas como “terra arrasada”. Lula trará a oportunidade para o país reconstruir seu sistema público de saúde (SUS) e retomar a liderança na saúde global.
Outro desafio importante foi o efeito devastador da covid-19 no Brasil, com quase 700.000 mortes e mais de 36 milhões de casos relatados desde o início de 2020. A resposta federal insuficiente incluiu recomendações oficiais de tratamentos ineficazes.
A pesquisadora Dra. Nísia Trindade Lima, primeira mulher à frente do Ministério da Saúde do Brasil e ex-presidente imediata da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), terá na sua gestão o imenso desafio de reconstruir o SUS. A fundação é uma das mais importantes instituições de pesquisa brasileiras, pioneira na cooperação internacional em saúde e fabricante de vacinas consagrada para o sistema nacional. Trindade teve o papel decisivo na garantia do acesso às vacinas contra a covid-19.
O momento do retorno do Brasil não poderia ser mais apropriado, já que a Organização Mundial da Saúde está atualmente negociando a reforma do Regulamento Sanitário Internacional e do tratado pandêmico, é a oportunidade que o país tem de retomar a visibilidade positiva, com o sério cuidado da saúde das pessoas, por meio de programas e campanhas com dados e notícias comprovadas e combatendo a fake news no SUS.
Referências
ABREU, Pedro. ADPF 690: uma análise da decisão que determinou a divulgação de dados do Covid-19. Jus.com.br, 2020. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/82975/adpf-690-uma-analise-da-decisao-que-determinou-a-divulgacao-de-dados-do-covid-19> Acesso em: 20 de mar. de 2023.
BOTTÓS, A. M. Pandemia da COVID-19 e seu impacto na saúde: A influência dos meios de comunicação e o uso indevido de medicamentos não prescritos. 2021. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Odontologia, Universidade Estadual Paulista, Araçatuba, 2021.
CALIL, G. G. A negação da pandemia: reflexões sobre a estratégia bolsonarista. Revista Serviço Social e Sociedade. (140) • Jan-Apr 2021
GARCIA, Gustavo. ‘Acabou matéria do Jornal Nacional’, diz Bolsonaro sobre atrasos na divulgação de mortos por coronavírus. G1, 2020, Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/05/dados-do-coronavirus-bolsonaro-defende-excluir-de-balanco-numero-de-mortos-de-dias-anteriores.ghtml> Acesso em: 20 de mar. de 2023.
MANDETTA, Luiz Henrique. Um paciente chamado Brasil: os bastidores da luta contra o coronavírus. Rio de Janeiro: Objetiva, 2020.
MINISTÉRIO DA SAÚDE DEVE RESTABELECER DIVULGAÇÃO INTEGRAL DE DADOS SOBRE COVID-19. Supremo Tribunal Federal, 2020. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=445071&ori=1> Acesso em: 20 de mar. de 2023.
STF – medida cautelar na arguição no descumprimento de preceito fundamental: MC ADPF 690 Distrito Federal n° 77.2020.1.00.0000 Disponivel em <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stf/862891242> Acesso em 10 de maio de 2023.
VENTURA, Deisy. After testing times, Brazil is back. BMJ-British Medical Journal, v. 380, p. p48, 2023.
VIEGAS. L. L. Ventura. D. de F. L. Ventura. M.: A proposta de convenção internacional sobre a resposta às pandemias: em defesa de um tratado de direitos humanos para o campo da saúde global. CADERNO DE SAÚDE PÚBLICA 2022; 38 (1).