O procedimento metodológico da entrevista de manejo cartográfico, assume um aspecto qualitativo, se aproxima de uma conversa, em que há um roteiro de perguntas flexíveis e adaptáveis a cada situação. O processo da entrevista não se restringe a perguntas e respostas, extrapola também o campo da percepção, do ambiente inserido, e da apreensão de todas as forças coletivas envolvidas. “A entrevista visa não à fala sobre a experiência, e sim à experiência na fala” (TEDESCO, SADE, CALIMAN; 2014, p.100).
No segundo volume do livro Pistas do método da cartografia, Silvia Tedesco, Cristian Sade e Luciana Caliman se dedicam a esclarecer alguns apontamentos sobre o procedimento da entrevista, mas logo de início afirmam que “não existe entrevista cartográfica, mas manejo cartográfico de entrevista” (2014, p.93). O interesse da cartografia está em pesquisar a experiência, os processos e as dinâmicas dos encontros e atravessamentos. Sendo assim, a entrevista é um instrumento útil para capturar a essência dos acontecimentos. Desde a acolhida do entrevistado, até o compartilhamento de experiências de vida, conteúdo e expressões na fala.
A aplicação da entrevista das cidades-gêmeas se dividiu em duas frentes de abordagem, a primeira está relacionada ao acaso e acolhimento inesperado do
entrevistado (morador ou turista) que, preferencialmente, se encontra no espaço público na linha de fronteira, inserido no contexto das próprias inquietações do pesquisador. A segunda frente de abordagem envolve uma preparação prévia, um agendamento antecipado que escolhe alguns entrevistados mediante sua relação intelectual, profissional com as cidades, tanto gestores (prefeitos, vereadores, secretários) como técnicos (arquitetos, engenheiros) ou pesquisadores (professores, historiadores) que de certa forma são responsáveis e conhecem as transformações no espaço público binacional.
Anterior a abordagem, o pesquisador estrutura um roteiro de perguntas “gatilho” que são construídas mediante a eixos temáticos, mas sem a obrigação de qualquer ordem ou precisão de que todas sejam respondidas. Diferente da entrevista convencional, ou mesmo questionário, a entrevista de manejo cartográfico não está fixa as perguntas, mas deseja observar o desenrolar do diálogo e permitir a fluidez em que outras perguntas podem saltar. Para isso as perguntas precisam ser mais abrangentes, indo na contramão de palavras de ordem ou que limitam muito o campo das respostas. Evitando perguntas muito diretas e simplistas, como “o que é?”, “concorda, ou não?”, e dar preferência as perguntas abertas a complexidade e aos desdobramentos possíveis, que vão em busca da experiência para formular como resposta, “como?”.
O primeiro eixo temático das perguntas se refere a fronteira Brasil-Uruguay: (a) como é estar na Fronteira? Como é conviver (morador) ou transitar (turista) nessa Fronteira? (b) como você se sente ao atravessar a fronteira? (c) em que circunstâncias você utiliza a outra cidade de fronteira? (d) qual a tua experiência com as aduanas e a presença militar? O segundo eixo se refere ao espaço/lugar público da fronteira: (e) como você avalia os espaços públicos (ruas, praças, ponte), em especial aqueles próximos à linha de fronteira? (f) como você se sente ao usar o espaço público, as ruas, praças e pontes, que são pertencentes aos dois países ao mesmo tempo? O terceiro eixo é direcionado as autoridades, técnicos e pesquisadores e se detém ao conhecimento político das questões de fronteira: (g) qual a responsabilidade dos órgãos públicos quanto ao espaço público comum na linha de fronteira? De quem é a responsabilidade? (h) quanto aos canteiros centrais e às ruas (fronteiras secas) ou a ponte (fronteiras molhadas), como funciona a manutenção e prestações de serviço público nesses locais? Vale ressaltar que todas estas perguntas também foram traduzidas para o espanhol para facilitar a compreensão das questões, visto que por ser uma cidade de fronteira encontramos o uso tanto das línguas oficiais o português e o espanhol, quanto do portunhol.
Na entrevista ao acaso o entrevistador precisa primeiro da permissão e disponibilidade do entrevistado, a abordagem inicia em uma apresentação da pesquisa, o objetivo a que se propõe e, quando consentido, inicia-se a conversa amparada por um gravador. No caso da entrevista programada, a primeira apresentação é mais breve, visto que anteriormente já estava esclarecido a intenção da entrevista. Quanto a duração há uma grande variação, mas normalmente o tempo da entrevista programada é mais longo, visto que há uma preparação e destinação do tempo dedicado para a entrevista. Ao passo que a entrevista no espaço público depende da pressa e compromissos do entrevistado. Além do roteiro de perguntas e o gravador, um outro instrumento é o termo de consentimento, uma carta em que o entrevistado assina pós-conversa confirmando que concedeu a entrevista de forma voluntária de acordo normas éticas destinadas à pesquisa envolvendo seres humanos, da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) referente ao Grupo III no item 6.5 Planejamento Urbano e Regional. Permitindo então que o pesquisador utilize os relatos da entrevista como fonte documental de pesquisa.
A última etapa, momento em que o trabalho de pesquisa se encontra, consiste na transcrição e análise de cada entrevista. Fase que exige muita dedicação e prudência do pesquisador para evitar falhas de interpretação, ou indução e antecipação de respostas. Quando se toma um distanciamento e retorna a ouvir a entrevista com mais calma, em outro momento é interessante observar outras correlações e minúcias que se apresentam como novas pistas.
Ouvir as vozes da fronteira, vozes que muitas vezes não são escutadas, mas que resistem e que compõem o lugar do entre, pode ser considerado um ato político, ético e estético na apreensão desse território. A inovação obtida está justamente na captura da experiência de quem vive a fronteira através da fronteira, desviando de uma perspectiva individual e temporária de um visitante estrangeiro. Experiência da ebulição, que despertou tanto desconforto, angústia, insegurança, como motivação, encanto, emoção, afectando e transformando o viajante-pesquisador.
A entrevista de manejo cartográfico demostrou ser um potente elemento para a composição de mapas cartográficos. Na próxima etapa, almeja-se desvendar algumas pistas que possam contribuir para o entendimento da complexidade do lugar público na fronteira.
*Texto retirado do resumo expandido: A ENTREVISTA DE MANEJO CARTOGRÁFICO: APREENSÃO DE UM TERRITÓRIO DE FRONTEIRA, produzido pelos autores dessa pesquisa publicado nos Anais do XXVII CIC/UFPEL.
Referências:
TEDESCO, Silvia Helena; SADE, Cristian; CALIMAN, Luciana Vieira. A entrevista na pesquisa cartográfica: a experiência do dizer. In.: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; TEDESCO, Silvia (Orgs.). Pistas do Método da Cartografia: A experiência da pesquisa e o plano comum. Vol. 2. Porto Alegre: Sulina, 2014, p. 92-127.