FONTE: Carta Educação
Por Dimalice Nunes, em 29 de fevereiro de 2016.
A inserção de temas sobre história e cultura afro-brasileiras voltou à pauta com o debate sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que entre as propostas elimina tópicos como História Antiga, Medieval e Moderna para priorizar a História do Brasil, das Américas e da África. No entanto, a discussão das relações étnico-raciais na escola e a inclusão desses temas vêm muito antes da BNCC. Em 2003, entrava em vigor a Lei 10.639, que obriga a inserção, nos currículos de escolas públicas e particulares, da história e cultura africana e indígena. Passada mais de uma década, a realidade está longe do que prevê a lei.
Amilcar Araujo Pereira, doutor em História e professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenou uma pesquisa sobre a implementação da Lei 10.639 durante mais de quatro anos. Ele acredita que o fundamento eurocêntrico da educação brasileira é um dos principais entraves para que a lei seja cumprida. “É muito difícil mudar essa realidade, que é histórica. Muitas gerações foram formadas a partir dessa educação eurocêntrica. Leva tempo e é preciso esforço político para transformar essa realidade”, afirma.
Outro ponto fundamental levantado por Pereira é a questão racial em si. “O racismo é um elemento estruturante das desigualdades, inclusive nas desigualdades evidentes nos currículos e nas práticas educativas”, afirma. “Acredito que a aplicação da Lei 10.639, onde ela se dá, tem contribuído para a luta contra o racismo, desnaturalizando sentimentos de superioridade e de inferioridade e apresentando conhecimentos e contribuições produzidos por todos os grupos populacionais que formaram a sociedade”, acredita o especialista.
O racismo é ponto central da discussão para Leonardo Borges da Cruz. Ele é doutor em Sociologia e pesquisador em relações raciais, além de lecionar no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) e colaborar com o projeto ENEMEX, plataforma de apoio para preparação de alunos para o Enem. Segundo o professor, é inerente ao comportamento brasileiro lidar com o racismo de forma naturalizada, como se experiências próprias ou de pessoas próximas reduzissem a importância da questão.
Para ele, isso se revela na dificuldade dos brasileiros identificarem práticas e predisposições racistas. “Essa pretensão contribui para desqualificar dispositivos legais, na medida em que a temática não sai do senso comum e da reprodução de preconceitos e discursos ideológicos.”
Além disso, aponta Cruz, pouquíssimas instituições de Ensino Superior ofereciam à época da lei formação com disciplinas na área – o que está mudando lentamente. Outro ponto é a já conhecida desvalorização do profissional da educação. “Na maioria das redes de ensino os docentes não recebem mais do que uns trocados e um aperto de mão para se atualizarem em suas áreas pesquisas. Assim, dificilmente são estimulados à inovação”, critica. A falta de preparação dos docentes é barreira mencionada também por Pereira: “Há muito a ser feito ainda, mas não há como negar o avanço obtido em muitas universidades, especialmente nas públicas. Ainda está muito longe do ideal, mas acredito que estamos avançando.”
Se as faltas de incentivo para a especialização e todas as dificuldades inerentes à docência são conhecidas, as iniciativas individuais dão o tom na inserção da cultura e história afro-brasileira nas escolas. Pereira afirma que em suas pesquisas constatou que há bastante interesse do professor em mudar essa realidade. “Precisamos combater o racismo, produzir mais conhecimentos sobre história e culturas negra e indígena, disponibilizar mais espaços de formação inicial e continuada para essas temáticas, mas sempre lidando com dificuldades de infraestrutura e recursos, tanto nas escolas quanto nas universidades”, observa. Apesar dos obstáculos, ele acredita, estamos diante de um caminho sem volta.
Já Cruz vê que o interesse não é sempre evidente, mas aparece em diversos casos individuais. “Com alguma exposição ao tema feita por especialistas, muitos docentes vencem a resistência e se interessam”. Há ainda, na sua opinião, a questão dos gestores em educação, muitas vezes reprodutores do senso comum de que a questão racial no Brasil não é prioritária. “Noto que as aulas existem, com raras exceções, nas escolas em que há algum docente empenhado no tema. Geralmente são especialistas na temática racial ou interessados em busca de orientação.”
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Integrantes do jongo (dança de roda de origem africana) de Mangaratiba (RJ) se preparam para uma apresentação
Para atender à demanda a Fundação Vale realizou, há dois anos, em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Secretaria Municipal de Educação de Mangaratiba, um curso de extensão universitária sobre a temática étnico-racial voltado para a formação de professores. Os encontros, que contaram com a contribuição de profissionais que são referência nacional no estudo e na pesquisa em educação das relações étnico-raciais, forneceram subsídios a professores e gestores para a aplicação efetiva da lei, como forma de estimular a prática docente nos princípios da pluralidade e do respeito às diferenças. Participaram da capacitação 45 diretores escolares de Mangaratiba, o que contempla toda a rede de ensino municipal.
Da experiência nasceu a publicação Educação das relações étnico-raciais no Brasil: trabalhando com histórias e culturas africanas e afro-brasileiras nas salas de aula. A publicação traz conteúdos sobre as histórias da África e da presença dos negros no Brasil, além de discutir a educação e as relações étnico-raciais no cotidiano escolar. O material oferece também indicações bibliográficas e exemplos práticos de atividades que podem ser desenvolvidas em sala de aula.
Andreia Prestes, especialista em educação da Fundação Vale, concorda que a não aplicação da lei e a ausência da história afro-brasileira no currículo tem a ver com o racismo. “O preconceito racial persiste e não trabalhar história da cultura afro-brasileira e indígena em sala de aula é um reflexo, porque o professor não vê importância. Mas existe também um movimento forte para que a lei seja aplicada”, ressalta.
Andreia conta que em 2012 a Fundação Vale começou a pesquisar questões da educação que poderiam ser abordadas em suas ações e descobriu que não existiam muitas instituições que trabalhavam para o fortalecimento da Lei 10.639. Daí nasceu a experiência piloto em Mangaratiba.
Atualmente a Fundação Vale segue abordando o tema dentro do projeto Roda de Conversa, que prevê a entrega de uma maleta com 12 livros infantis às escolas. Percebendo a carência de títulos que abordassem história e cultura afro-brasileira e indígena, o projeto passou a incluir publicações do gênero ao acervo doado e levar às escolas públicas escritores representativos do tema, como Daniel Munduruku, indígena referência na autoria de livros infantis indígenas, e Sonia Rosa, que trata da cultura africana. De 2013 a 2015 mais de 30 municípios foram contemplados.
O tema segue no radar da Fundação. Maria Alice Santos, gerente de Educação da Fundação Vale afirma que apoiar as secretarias de educação no fortalecimento de leis que tornam obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena é uma das formas de contribuir para o desenvolvimento dos territórios. “Aplicar essas leis é fundamental para que a diversidade da população brasileira seja representada e para que a escola seja, de fato, um ambiente positivo de construção de identidades”, conclui.