Texto: Um Caso de Amor Vil: O nacionalismo de direita e a Idade Média[1]

Andrew B. Elliott, Independent Scholar
Trad. por Luiz Guerra

 

A Idade Média há muito serve como um tesouro conveniente para o nacionalismo e o racismo de direita.

Comecemos olhando apenas para o século XX. A ascensão e proliferação do fascismo em toda a Europa na década de 1930 foi sustentada por um uso e apropriação surpreendentemente persistentes da história e imagética medievais – o que os estudiosos chamam de “medievalismo”. Em sua tese de doutorado, Flora Ward descreveu como Francisco Franco, ditador da Espanha de 1939 a 1975, contou com a memória do passado medieval espanhol para sustentar e legitimar seu governo. Da mesma forma, em um volume recente da revista Studies in Medievalism, Pedro Martins mostrou como o português António Sardinha se baseou em fantasias medievalistas de honra e nobreza como forma de contornar os ideais iluministas de razão e republicanismo.

A candidata francesa de extrema-direita Marine Le Pen em um comício em frente a uma estátua de Joana d’Arc.

Jean-Marie Le Pen, ex-líder do partido francês de extrema-direita Frente Nacional, fez uma série de afirmações indicando que a “real” identidade francesa só seria válida se pudesse traçar suas raízes até o rei dos francos do século V, Clovis. Sua filha, Marine Le Pen, continua seu legado marchando anualmente até a estátua de Joana D’Arc para homenagear a identidade francesa “adequada” (que para ela significa branca, europeia e cristã). No que está se tornando uma tradição familiar, sua sobrinha, Marion, também já foi comparada à santa, em uma tentativa de reivindicar a história medieval como propriedade exclusiva da extrema direita.

Todavia, o exemplo mais infame, de longe, é o uso do passado medieval por Hitler para promover um nacionalismo histórico nostálgico. Alegadamente, de acordo com Uli Linke (p. 198), Hitler inclusive tentou traçar sua própria genealogia através da mitologia nórdica até guerreiros germânicos, e mesmo até o próprio Odin.

Claro, não é apenas a direita que usa o passado dessa maneira. Tommaso di Carpegna Falconieri, em seu excelente livro Medioevo Militante[2], descreve como a Idade Média foi ressuscitada em apoio a uma surpreendente variedade de posições políticas. No entanto, é a extrema direita quem frequentemente acha mais adequado fazer uso disso como uma forma de esconder teorias raciais pseudocientíficas sob o disfarce de ostensiva legitimidade histórica.

O truque, tanto para Hitler quanto para seus sucessores, era empregar a Idade Média como um modo aparentemente benigno de nostalgia. Em um clima tenso de depressão econômica, desinformação generalizada, orgulho nacional ferido e racismo naturalizado, cada movimento sucessivo promoveu um retorno ao passado. O passado que eles invocavam era uma identidade nacional supostamente compartilhada – compartilhada por aqueles que consideravam racialmente “puros” – que permitia um uso nostálgico do passado. Tais ideias são projetadas para se tornarem ideologias extremistas mais palatáveis, mais populares e mais inclusivas. Eles não rejeitam outras raças, dizem eles, eles celebram sua própria herança (na realidade, rejeitando o ‘Outro’ não-branco).

Tais apropriações da Idade Média foram um enorme sucesso. Elas foram tão bem-sucedidas, de fato, que a sombra do nacional-socialismo lançaria um vulto sobre medievalismos políticos semelhantes (pelo menos na política dominante) durante grande parte do restante do século XX. Mesmo assim, Louise D’Arcens e Clare Monagle recentemente identificaram um “retorno” do medievalismo na política moderna. Elas apontam as maneiras pelas quais o passado medieval voltou ao discurso aparentemente dominante. Ele está presente nas bocas de John Howard na Austrália, Stephen Harper no Canadá, David Cameron no Reino Unido, Marine Le Pen na França e Donald Trump nos Estados Unidos.

Por que está de volta e por que agora?

Em seu livro Neomedievalism, Neoconservatism, and the War on Terror, Bruce Holsinger oferece uma parte da resposta. Holsinger descreve como a lógica da guerra contra o terror reintroduziu uma série de medievalismos no discurso pós-11 de setembro. Seguindo essa lógica, é fácil ver como as acusações de que a Al Qaeda (e posteriormente o EI[3]) são “medievais” introduzem uma divisão rígida entre o Ocidente “moderno” e “evoluído” e o Oriente “primitivo” e “bárbaro”. Isso infunde a doutrina Bush (“ou você está conosco ou contra nós”) com conotações imperialistas e orientalistas (como John Ganim persuasivamente argumenta em seu livro Medievalism and Orientalism).

Ver líderes mundiais de pé sob o teto da ONU chamando culturas inteiras (e, por extensão, o Islã) de “medievais” é chocante. Isso é apenas um pouco atenuado pela medida em que insultar algo o chamando de “medieval” foi normalizado por sua repetição na discussão política. Em meu próximo livro, Medievalism, Politics and Mass Media[4], descrevo esse fenômeno como “medievalismo banal”. O termo descreve o uso repetitivo de medievalismos sem nenhuma intenção de indicar o passado real, mas que, no entanto, obtém seu poder de sua reconhecibilidade e repetição.

Uma segunda razão para o retorno da Idade Média no discurso político pode ser encontrada na ascensão dos blogs e das redes sociais. Isso tem gerado uma proliferação de conteúdo gerado pelos usuários, permitindo que um número impressionante de pessoas participe de discussões políticas online. As barreiras de entrada reduzidas são, por si só, louváveis (são os meios pelos quais consigo escrever e publicar este artigo). Mas uma das consequências marginais da chamada “Web 2.0” é que o uso da Idade Média não precisa mais ser referenciado[5]. Podemos falar de “cruzadas” como se houvesse apenas uma. Podemos afirmar ser, ou encontrar, o Rei Arthur. Podemos falar de Robin Hood ou Joana d’Arc simplesmente apontando para suas páginas na Wikipedia, que têm curadoria do público, para o público. Em uma era de pós-verdade, o desafio à autoridade nos permite fazer com que o passado signifique o que quisermos. As declarações são verificadas posteriormente, em vez de pesquisadas anteriormente.

Nesse clima, a Idade Média tornou-se um terreno particularmente fértil para os tipos de teorias raciais pseudocientíficas adotadas por blogs supremacistas brancos e grupos nacionalistas de extrema-direita. Nos EUA, por exemplo, o site neonazista Stormfront [Nota do editor: é nossa política nunca citar links para sites como o Stormfront. Eles não merecem o tráfego.] ilustra as maneiras pelas quais um passado medieval pseudo-histórico pode ser retrabalhado em uma fantasia racista de pureza de sangue e nacionalismo exclusivo. Sua propaganda inclui um “livro” chocante chamado “Uma História da Raça Branca”. Na verdade, não se trata de um livro, mas sim um PDF para download, semelhante ao “livro” do terrorista de Oslo Anders Behring Breivik, tanto em qualidade quanto em conteúdo. Sua característica mais saliente, no entanto, é que ele se classifica como talvez o mais notório uso indevido da história pela extrema-direita de hoje. Em sua ‘história’, o Stormfront literalmente reescreve toda a história da humanidade para sugerir uma supremacia geneticamente predeterminada da raça branca supostamente pura. Eles começam descartando tanto a evolução quanto o criacionismo como “teorias” igualmente implausíveis, depois se voltam para “evidências arqueológicas” (nenhuma evidência é realmente oferecida) que “provam” que o Homo Sapiens (que, eles afirmam sem evidências, são ancestrais apenas dos europeus brancos do Norte) sobreviveram milagrosamente a uma era glacial. Seu fantasioso Homo Sapiens então “apareceu do Norte e varreu a Europa, destruindo fisicamente o homem de Neandertal”. Eles então reescrevem a Idade Média. Em sua Idade Média fantasiosa, a resistência à expansão islâmica por parte dos exércitos europeus brancos foi provocada simplesmente por causa da supremacia natural da raça branca.

Não podemos enfatizar o bastante: esta “história” não é apenas cientificamente ilógica e completamente infundada; é historicamente ridícula. No entanto, por mais absurdas que sejam, afirmações como essas se encaixam perfeitamente na distorção da história da direita em geral, e da Idade Média em particular. Além disso, eles extraem seu poder não de sua base factual, mas de suas semelhanças com outras fontes neonazistas ou de direita.

Isso ilustra uma lição para o mundo supostamente “pós-verdade”. Essa lição não vem da história, da teoria da mídia ou do jornalismo. Vem da propaganda: a verdade vem do reconhecimento, da repetição e da não contradição. A extrema direita não está explorando a verdade, está construindo uma marca.

A Idade Média na Bolha da Extrema Direita

Mas, por que a Idade Média em particular é tão suscetível a esse tipo de abuso? Uma resposta pode ser difícil para alguns estudiosos aceitarem, pois significa que temos que arcar com parte da responsabilidade. Os pesquisadores elaboram currículos que privilegiam indevidamente o registro escrito e os restos materiais da Idade Média europeia. Correndo o risco de simplificar demais, a abundância de vestígios materiais e culturais de uma Idade Média europeia em grande parte branca leva a um foco desproporcional na história medieval europeia branca. Isso leva à percepção (muitas vezes involuntária) de que, simplesmente, a história branca é toda a história que já existiu.

O ponto até o qual esse superfoco nos cristãos brancos domina a memória do passado pode até ser encontrado em uma piada corriqueira no filme Robin Hood: Men in Tights, 1993 de Mel Brooks. Em uma cena, Robin (Cary Elwes) recruta Ahchoo (Dave Chappelle) como o único membro negro de seu bando de Merry Men. Ao ouvir seu nome, o servo de Robin, Blinkin, responde: “Um judeu? Aqui?”

VÍDEO

A piada só funciona se você acreditar que, de alguma forma, os judeus não existiam na Idade Média européia. Obviamente, isso é comprovadamente falso, mas ganha credibilidade, mesmo assim, dada a predominância de escritores brancos nos currículos de história medieval em todo o mundo.

Outra parte da resposta, de maneira igualmente simplista, é que o passado medieval oferece ideias particularmente úteis precisamente por causa da frequência com que a Idade Média é invocada fora da investigação histórica. Blogs sobre os vikings (como o do cantor de metal norueguês Varg Vikernes, com seu pomposo blog “Ancestral Cult”[Culto Ancestral]) estão entupidos de referências a linhagens supostamente puras que remontam aos nórdicos e vikings. Elas são genealogicamente e geneticamente sem sentido, e carregam paralelos alarmantes com a tentativa de genealogia de Hitler com Odin. Outros blogs, como o do ‘Traditional Britain Group’ [Grupo da Grã-Bretanha Tradicional], o ‘English Defense League‘ [Liga de Defesa Inglesa] ou ‘Boudica BPI‘ no Reino Unido usam tropos comuns do medievalismo para construir uma herança para si mesmos, dentro de uma história branca imaginária e excludente. O Partido Nacional Britânico (BNP), de extrema-direita, administra um acampamento regular de verão chamado “Camp Excalibur”, que celebra a herança branca da Grã-Bretanha.

Um anúncio da Liga de Defesa Inglesa de extrema-direita utilizando imagens de cruzados para promover sua agenda anti-muçulmana. Sim, eles escreveram errado “defending” [defender].

Os vários blogs sobre esses tópicos existem dentro de uma ‘bolha de filtro antijihad’ de sua própria criação. Nesta bolha, figuras de extrema direita como Pamela Geller, Robert Spencer, Fjordman, Bat Ye’or, Geert Wilders e Anders Breivik usam o medievalismo para apoiar suas teorias de identidade racial sem encontrar vozes opostas ou contradições. Nenhuma nota de rodapé/referência é necessária: eles precisam apenas de links para outros blogueiros em sua comunidade. Ao unir uma comunidade imaginária de seguidores com ideias semelhantes, o circuito fechado dessas redes reforça sua paranoia e exclui quaisquer pontos de vista opostos. Uma vez que uma pessoa se conecta a esses grupos on-line, a circularidade auto-referencial dessas redes oferece o que parece ser uma alternativa genuína e poderosa à mídia convencional ou à erudição convencional. Tal circularidade leva grupos de extrema-direita a boicotar a grande mídia, chamando-a de tendenciosa, ou mais recentemente “fake news”, e os leva a atacar a “academia liberal”[6]. Eles, portanto, superprivilegiam histórias postadas por membros de suas próprias comunidades e silenciam quaisquer verdades inconvenientes. Reconhecimento, repetição e não contradição.

Ao mesmo tempo, precisamente quando precisamos de jornalismo sólido e alfabetização midiática, o consumo de notícias em geral mudou para fontes online em vez de jornais, rádio ou televisão. Um relatório surpreendente do Pew Research Center estimou que, em 2014, 30% dos adultos estadunidenses obtiveram suas notícias totalmente ou principalmente através do Facebook. O problema vem com a auto-referencialidade da internet, que serve para demolir os garantes tradicionalmente imparciais de autoridade e confiabilidade. Como o CEO da Upworthy, Eli Pariser, argumenta em seu livro The Filter Bubble: What The Internet Is Hiding From You, “para a maioria de nós agora, a diferença de autoridade entre uma postagem de blog e um artigo no New Yorker é muito menor do que se poderia pensar ”.

Possuindo o passado

No contexto dessas bolhas de filtros auto-referenciais, a Idade Média da extrema direita parece estar enraizada em uma celebração inclusiva do passado, unindo uma nação na celebração do patrimônio. Mas, em vez disso, olhando abaixo da superfície, o uso indevido do passado forma uma estratégia poderosa enraizada em uma rejeição perigosamente exclusiva de qualquer um considerado “Outro”. Ao colocar em dúvida os especialistas que estudam a Idade Média, sua seleção online do passado permite que eles evitem acusações de racismo adotando um modo aparentemente comemorativo de medievalismo. Em suas tentativas de se dissociar de organizações abertamente fascistas ou neonazistas, essas redes se congregam em torno da Idade Média como um passado compartilhado e um ponto de contato. A Idade Média, neste contexto, é forçadamente conscrita para apoiar seu racismo e injurias anti-muçulmanas.

Juntando essas ideias, torna-se óbvio que a normalização de termos como “medieval”, para significar bárbaro ou primitivo, se encaixa perfeitamente no manual da direita. A insistência de grupos de extrema direita de que o Islã é “medieval” implica sutilmente que a religião é fundamentalmente incompatível com a modernidade. À luz disso, suas estratégias de mídia de círculo fechado oferecem a esses grupos uma plataforma perigosa para reescrever o passado.

Neste cenário on-line instável, a Idade Média fornece um terreno fértil para uma gama impressionante de ideologias. No contexto do chamado ambiente social da “pós-verdade” diante de nós, em meio à crescente desconfiança sobre especialistas e intelectuais, a rejeição da autoridade significa a perda de qualquer capacidade de falar razoavelmente sobre a validade das interpretações do passado. A Idade Média pode significar o que nós — o que eles — quisermos que signifiquem. O debate, portanto, não é sobre o passado, mas sobre quem possui e controla esse passado. É por esta razão, então, que é tão importante que sites como o The Public Medievalist e outros possam desempenhar um papel na discussão online, em fóruns públicos, sobre questões complexas como raça, gênero, religião e identidade cultural. E os acadêmicos devem assumir tanta responsabilidade quanto qualquer outra pessoa para promover a inclusão em seus currículos.

Bruce Holsinger sugere – com forte ironia – “somos todos medievalistas agora”. Os medievalistas e as pessoas interessadas na Idade Média real devem trabalhar para garantir que o medieval não acabe significando o que um ideólogo específico decidir que deve, mas, em vez disso, reflita todas as evidências, particularmente todas as nuances e complexidades históricas. São essas nuances e complexidades que tornam a história verdadeira e significativa.

Como Nicolas Sarkozy lamentou no ‘cabo-de-guerra’ sobre Joana d’Arc nas eleições presidenciais de 2007, “Joana d’Arc é a França [e não um símbolo de exclusão racial] Como deixamos a extrema direita confiscá-la por tanto tempo?”

[1] Texto originalmente publicado em: https://publicmedievalist.com/vile-love-affair/ (14/02/2017) e traduzido aqui por Luiz Guerra com autorização do autor Andrew Elliott.

[2] Livro sem tradução para o português, mas possui uma edição em inglês.

[3] Estado Islâmico

[4] Livro já foi lançado, referenciar

[5] Footnoted, no original. “Rodapezado”, no sentido de fornecer informações adicionais sobre algo.

[6] Importante notar que liberal em inglês, principalmente nesse contexto se refere ao oposto de conservador e não ao liberalismo econômico. Portanto se refere aqui a grupos principalmente de centro esquerda e esquerda.


Publicado em 03 de outubro de 2023.

 

Como Citar: ELLIOT, Andrew B. Um Caso de Amor Vil: O nacionalismo de direita e a Idade Média. (trad. Luiz Guerra). Blog do POIEMA. Pelotas 03 out 2023. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/texto-um-caso-de-amor-vil-o-nacionalismo-de-direita-e-a-idade-media1/ Acesso em: data em que você acessou o artigo.