Jorge Gabriel Rodrigues de Oliveira[1]
Para historiografia francófona de viés mais tradicional, capitaneada por Le Goff e Schmitt, o monaquismo teria sua origem nos religiosos cristãos coptas praticantes da fuga mundi, ou seja, do isolamento ascético, nos desertos orientais mais ou menos figurados nas primeiras hagiografias. A origem etimológica do próprio termo “monge” remonta ao termo grego (monachós) que significa “só”, “solitário”, “sozinho”, (BAILLY, 2000) e seus derivados.
Segundo a linhagem destes autores, existe uma distinção entre o que se entende por monge e eremita, uma vez que os monges viveriam sua solidão em grupos, daí a forma cenobítica do monaquismo e, pontualmente, da anacorética, ao passo que a forma eremítica, portanto dos eremitas, exigiria a prática da solidão mais radical a partir de um isolamento de fato em locais ermos.
Assim essa historiografia, em resumo, entende que o movimento dos chamados padres do deserto, ou dos monges, foi reflexo do processo de politização por qual passou o cristianismo pelos idos da quarta centúria de nossa era, considerando eventos como o da conversão do imperador Constantino (312), do Concílio de Niceia I (325), quando cada vez mais as estruturas hierárquico-administrativas de uma instituição ainda bastante fluída e fragmentada que convencionou-se chamar de Igreja, passava por um processo de contaminação por estas estruturas romanas (LITTLE, 2002).
Podemos perceber ecos dessa historiografia, de certo modo, na própria historiografia auriverde, quando esbarramos com conceitos propostos por Le Goff acerca do bosque europeu como análogo ao deserto oriental (FRANCO JR., 2009), ou mesmo o centralismo das fontes hagiográficas para o estudo do monaquismo oriental e ocidental (FILHO, 2009) (AMARAL, 2009; 2013), bem como por outras partes do globo, até mesmo na Irlanda de Brown (2009), com a proeminência de figuras clássicas para o monaquismo, como Antão do Deserto (251-356) ou Santo Antão como quer a sua hagiografia e a tal Igreja.
Por aqui, no final dos já distantes anos 90 do século passado, Edmar Checon produziu um pequeno texto em consequência do VIII Encontro Regional de História da ANPUH-RS acerca do que chamou de “competição monástica” (CHECON, 1998), que existiria entre Antão do Deserto e Paulo de Tebas (227-341), ou melhor, entre seus hagiógrafos, Atanásio de Alexandria (?-373) e Jerônimo de Estridão (?-420). Checon evidenciou uma certa rusga que envolvia os hagiógrafos na tentativa de serem os arautos daquele que teria sido o monge cristão pioneiro no Oriente e, portanto, a fonte da chamada vida monástica, a qual todos os demais religiosos cristãos solitários até os confins da Europa passaram a imitar, e como consequência aproveitar da fama de seus personagens.
Sendo assim, de maneira bastante sintética, o que se pode extrair desta linhagem historiográfica stricto sensu no que concerne ao monaquismo originário, se fundamenta no papel da fuga mundi promotora do isolamento ascético dos monges, bem como de uma aversão aos valores políticos mundanos, ou romanos conforme o caso, ancorado nos exemplos de figuras espiritual e moralmente proeminentes, por sua vez hagiografadas por outras figuras politicamente proeminentes dentro e fora daquela estrutura chamada Igreja.
Se considerarmos tantos cuidados, métodos, teorias, entre outros que o cientificismo e o academicismo nos impõem enquanto pesquisadores historiógrafos, podemos facilmente entender o abismo que existe entre a interpretação puramente historiográfica do monaquismo originário, como a acima mencionada, e a interpretação de uma historiografia de viés marcadamente religioso, que a priori, não tem mesmo algumas preocupações e cuidados que nós temos, pois esta exerce uma função diferente daquela e também não escamoteia sua intenção e função antes de tudo evangelizadora. Entretanto, ao lançarmos alguma luz sobre esta historiografia “incensária” nos surpreendemos, como segue.
Para Colombás, monge da Ordem de São Bento, em sua história do monacato primitivo, no decorrer do tempo os próprios monges traçaram diversas causas para sua própria origem, entretanto, todas tomavam como base aspectos profundamente bíblico-religiosos. Esses monges acreditavam ser herdeiros do povo de Israel e fazer parte de uma “história da salvação”, na qual os textos vetero e neotestamentários se relacionavam diretamente (COLOMBÁS, 2004). Tomavam os ascetas e profetas judeus dos textos bíblicos como seus predecessores, por conta da renúncia do mundo, portanto que a origem primordial de seu comportamento estaria na Bíblia, bem como apontado por Amaral (2009). Também viam Adão antes do pecado, quando mantinha contato direto com a divindade segundo a narrativa, como a semente de sua árvore genealógica, como também evidenciou Brown (2009). Além disso, o autor recupera a proposta ultrapassada de Weingarten da origem do monaquismo nos (katochói), que eram membros de um grupo de ascetas reclusos do templo de Sérapis em Alexandria junto ao Egito (COLOMBÁS, 2004).
Para Bueno as origens do monaquismo não possuem uma relação bíblica tão direta quanto para Colombás, porém não deixam de fazer parte do âmbito religioso. O autor afirma que um dos fatores que explicam este fenômeno seria o misticismo ardente dos primeiros monges egípcios, bem como seu suposto gosto pela ascese, que explicaria o modo “heroico” como o povo copta suportava os sofrimentos impostos tanto pela vida mundana quanto pela monástica (BUENO, 2003). O autor afirma também que aquelas pessoas possuíam uma visão natural do sobrenatural, uma vez que estariam impregnadas de fé, piedade e de um sentimento vivo da divindade.
De todo modo é possível evidenciar o seguinte: a historiografia exerceu alguma influência sobre a produção marcadamente religiosa ou é notório o cheiro de incenso na historiografia ex-officio, por assim dizer. Em ambos os casos sobressaem os mesmos elementos, ainda que a partir de perspectivas e com intenções distintas. Tanto numa quanto noutra é evidente o papel da fuga mundi, do ascetismo fervoroso, da proposta de um novo modus vivendi e a posição de destaque das hagiografias e enaltecimento de seus personagens principais.
Essa aproximação do modo de enxergar a questão monástica pela historiografia e pela historiografia evangelizadora talvez ocorra por conta do elemento acima mencionado, da proeminência do uso basilar de documentação hagiográfica para as análises historiográficas. Não que inexistam técnicas, procedimentos, metodologias e seriedade adequadas para o tratamento deste tipo de documentação. Muito pelo contrário. Aqui mesmo no Brasil basta examinar a atuação de Andréia Frazão da Silva e Leila Rodrigues à frente do PEM-UFRJ que fica evidente a eficiência e seriedade no trato deste tipo de documentação, bem como através da vastíssima produção realizada ao longo de décadas de dedicação ao tema das hagiografias por parte de Silva (2008a; 2008b). Porém, nem todos os historiadores são Frazões da Silva e nem Rodrigues.
Este mesmo que aqui escreve estas linhas deve ser inserido no bojo desta discussão, uma vez que em sua Dissertação de mestrado (OLIVEIRA, 2016), além da utilização de um diferenciado corpus documental para resolver o cerne da questão em voga naquele momento, tomou como basilares as hagiografias de Antão do Deserto e de Paulo de Tebas de Atanásio e Jerônimo e acabou (re)visitando e (re)produzindo também os tais lugares-comuns da historiografia e com algum aroma de incenso, aqui evidenciados.
É evidente que tal reflexão não se encerra nesses parcos apontamentos, contudo existem atualmente no Brasil e fora também, trabalhos cujo tema monástico aparece a partir de outras perspectivas, seja com a utilização basilar de hagiografias ou não. No primeiro caso, podemos mencionar a pesquisa de Borgongino na busca pelos demônios etíopes a partir de uma instigante discussão racial em âmbito monástico (BORGONGINO, 2021). Ainda por aqui, Calvo que, sem negligenciar as hagiografias, confere maior vulto para atas conciliares, principalmente de Éfeso II (2019); e ambos direta ou indiretamente fazem parte da linhagem das já mencionadas Frazão da Silva e Rodrigues.
No hemisfério norte, a área de estudos também vem sendo oxigenada por autores como Blanke (2023), Ghica (2019), Wipszycka (2013), Choat (2002), que abordam o tema a partir de pontos de vista diversos, como o econômico, arqueológico, da cultura material, papirológico, etimológico, entre outros. É nesse meio que finalmente podemos encontrar o monge Isaac e a vaca, que mostram uma outra face do monaquismo originário copta, muito mais ordinária que extraordinária, mais natural que sobrenatural, diferente da mostrada pelas idealizações e figurações hagiográficas.
O termo aparece empregado com o sentido religioso cristão que conhecemos desde os anos 323-324 em papiros coptas. Esse dado merece algum relevo, porque o termo não apareceu empregado em fontes de tipologia religiosa, mas em contratos, petições, autorizações e cartas, enquanto a hagiografia de Antão do Deserto produzida por Atanásio de Alexandria data de c.360 e a de Paulo de Tebas por Jerônimo de Estridão ainda mais tarde, também da segunda metade do IV século.
Segundo Choat (2002) foi encontrado em Hathor no Egito um papiro de c.323 no qual o termo apareceu num contrato de venda de uma casa nas montanhas para o monge Eusébio . De outro modo, em Karanis no Egito, desta vez com mais certeza do ano 324 foi encontrado o papiro contendo a petição do monge Isaac , solicitando ajuda a um camponês amigo envolvido num desentendimento. Além disso, existe uma autorização do ano 334, uma carta de 335 e outras documentações de datação incerta, mas que ao que parece são todas anteriores ao ano de 360, da redação da Vida de Antão. Chama atenção a tipologia e conteúdo da documentação demasiadamente mundana e do cotidiano local, bastante diferenciada das idealizações hagiográficas, como podemos perceber no caso do desentendimento em que o monge Isaac se envolveu, como segue.
Segundo o documento, o diácono Antonino e o monge Isaac auxiliaram Isidoro , que estava sendo espancado por alguns sujeitos, após ter conduzido uma vaca que não lhe pertencia, mas que havia destruído sua plantação (provavelmente pisoteado ou comido), porém o ruminante leiteiro pertencia a um dos espancadores que pensou estar sendo roubado por Isidoro e por esta razão a intervenção violenta. Entretanto, ao que parece, tudo não passou de uma armação do proprietário da vaca que almejava tomar as terras de Isidoro e pôs em prática um artifício para tentar matá-lo e tomar posse de sua terra como modo de reparação para o suposto crime cometido do roubo da vaca.
Decerto que os primeiros aparecimentos do termo no sentido religioso que se entende hoje, alvo das pesquisas historiográficas apontadas aqui, se distanciam daquela estrutura (bastante resumida) apresentada no início deste texto, na qual ilustra aqueles primeiros monges como praticantes inveterados da fuga mundi, ascetismo e solidão em forma cenobítica, anacorética ou eremítica, bem como quase como figuras “heróicas” demasiadamente enaltecidas, não atoa alçadas à santidade.
Por fim, uma historiografia que pretende entender de forma mais ampla o monaquismo, mas que se fundamenta de maneira basilar nas hagiografias, não dando muita atenção para outros tipos de documentação como cartas, atas conciliares, as próprias regras, as aqui apresentadas, entre outras, assume o risco de se encerrar nos limites impostos pelo próprio caráter da documentação, ser cooptado por seus demônios, ficar maravilhado com os milagres e produzir trabalhos com aroma de incenso.
Referências:
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[1] Doutorando pelo PPHR-UFRRJ e colaborador externo do PEM-UERJ. (prof.msc.gabriel@gmail.com) http://lattes.cnpq.br/4025325231991093
Publicado em 27 de junho de 2023.
Como citar: OLIVEIRA, Jorge Gabriel Rodrigues de. Blog do Poiema. Pelotas, 27 jun 2023. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/texto-o-monge-isaac-e-a-vaca-entre-antao-do-deserto-e-paulo-de-tebas-outras-abordagens-para-o-monaquismo-copta/ . Acessado em: data em que você acessou o artigo.