Texto: O Clima das Cruzadas e a Produção Alimentar no Egito sob os Sultões Mamelucos (Século VII da Hégira / XIII da Era Comum)

Bruno Tadeu Salles[1]

 

No dia 28 de novembro de 2013, Sanjay Subrahmanyam (2017), em uma aula inaugural proferida no Collège de France, chamou atenção para a necessidade da passagem de uma História assimétrica para uma História simétrica. A diferença entre as duas ganhava contornos na crítica ao conjunto da obra de Fernand Braudel. Especificamente, Subrahmanyam criticava que “sua história sobre o Mediterrâneo, por mais que fosse ampla em sua proposta, era marcada por um olhar unidirecional, eurocêntrico. Esse olhar estreito sobre um cenário imenso, era marcado pelo peso decisivo da escolha de fontes europeias e, por vezes, cristãs” (SUBRAHMANYAM, 2017, p. 222). Propor uma história simétrica, ampla, em termos temporais e geográficos, demanda atenção à pluralidade de perspectivas. Tal iniciativa tem como intento fundamental a não redução do estudo da experiência do passado a um mero acessório dos nacionalismos ocidentais. Percebemos essa necessidade, principalmente, através das abordagens sobre o tema das Cruzadas. O peso decisivo da escolha das fontes latinas e o consequente espaço desproporcional dado aos Francos/Cruzados ganham nitidez na frequência e na forma que o termo Cruzadas aparece em diversos textos de medievalistas estrangeiros e brasileiros. As Cruzadas são consideradas apenas de um único ponto de vista, onde o protagonismo europeu se destaca e reforça o discurso nacionalista e colonialista do século XIX.

Evidentemente, haja vista a presença do termo no título deste ensaio, nossa análise, contida no parágrafo inicial, seria uma contradição, um tiro no pé. A expressão da crítica que propomos, através do olhar rigoroso de Subramanyan, provocaria o estranhamento do leitor ou da leitora. Embora a perplexidade seja legítima, o título deseja ser a manifestação resumida de nosso movimento historiográfico que parte do “clima” das Cruzadas para uma abordagem mais detida e exclusiva sobre a experiência histórica do Sultanato Mameluco, no período em que tinham os Francos como vizinhos. A experiência mameluca é uma das mais fascinantes da História Islâmica. Originários dos povos turcos das estepes Qipchaqs, na região dos mares Negro e Cáspio, eram capturados ou entregues como escravos ainda na infância. Esses meninos, levados para as casernas da cidade do Cairo, se convertiam ao Islã e recebiam treinamento como guerreiros de elite. Alguns apresentavam habilidades literárias, como Baybars al-Mansūrī. Posteriormente, eram libertados e incorporados como soldados e oficiais na estrutura militar. Em 648/1250, os Mamelucos tomaram o poder no Egito, estabelecendo um Sultanato que duraria até 923/1517, quando foram conquistados pelos Turcos Otomanos. Os Mamelucos legaram um rico aparato cronístico, que nos informa sobre os diversos desafios de governo enfrentados por sultões como Baybars e Qalāwūn.

Falar em uma História simétrica diz respeito a dois propósitos. Primeiramente, intenta-se ampliar os corpora, lançando um olhar generoso a uma produção escrita mameluca. Esta produção, a propósito, tem sido cada vez mais acessível aos historiadores e às historiadoras, fomentada por traduções publicadas em espanhol, francês e inglês. Em segundo lugar, a relação das pessoas com o meio ambiente deve ser vista, igualmente, na condição de uma parte imprescindível da simetria. O clima e as relações dos seres humanos com o meio-ambiente sustentariam o estudo das sociedades passadas. Destaca-se a preocupação contemporânea quanto ao impacto da ação humana, frequentemente desastrosa e danosa, sobre o planeta Terra. De maneira específica, a atenção e a preocupação do presente se projetam positivamente no nosso estudo do passado, em um esforço legítimo de examinar o tema do clima e da produção alimentar no Egito mameluco.

O clima pode ser definido como um sistema bem complexo, “de múltiplas interações entre atmosfera, hidrosfera, solo, flora, fauna e, evidentemente, as ações e reações humanas” (PREISER-KAPELLER, 2013, p.2). Para o estudo do clima em períodos antigos, como aquele do Egito durante as Cruzadas, a (o) medievalista utiliza os arquivos sociais e os arquivos naturais. Se os primeiros congregam a produção humana – registros escritos, imagens, esculturas, etc. – os segundos nos fornecem dados a partir dos depósitos de gelo do Ártico, dos anéis de crescimento das árvores, dos sedimentos de lagos e sua disposição em camadas a partir de cortes verticais. A presença de polem de plantas domésticas nessas camadas, em comparação com o polem de plantas silvestres, fornece pistas sobre a forma de ocupação de um lugar e como o espaço natural foi transformado pela atividade humana. Finalmente, o exame dos anéis de crescimento das árvores centenárias, como algumas espécies encontradas no norte do continente americano, pode apontar períodos de crescimento lento ou acelerado e a influência de determinadas condições ambientais em determinada etapa de vida da árvore. Rastros advindos dos arquivos naturais, coletados em diversas partes do planeta, sugeririam tendencias climáticas a nível continental ou global em determinado período da história.

Tendo em vista esses dois tipos de arquivos, sociais e naturais, perguntamos: como se caracterizava o clima, no Oriente Médio e, de forma restrita, no Egito, durante o período das Cruzadas? O que as pessoas viram e sentiram naquele momento da história? Não há um consenso entre as pesquisas, mas considera-se que mudanças climáticas, ocorridas entre meados do século IV/X e final do V/XI, impactaram fortemente o Levante. Houve um aquecimento no Ocidente que favoreceu o aproveitamento de terras até então pouco trabalhadas, proporcionando o aumento da produção alimentar, com consequente aumento da população. Esse aumento teria significado, para a nobreza, a multiplicação dos herdeiros e uma maior concorrência pelo patrimônio familiar. Desse modo, no final do século V/XI, especificamente em 488/1095, quando o Papa, Urbano II (1042-1099), chamou as pessoas para participar da expedição rumo à Terra Santa, ele encontrou um terreno europeu igualmente fértil. Conquanto o aumento populacional e a disponibilidade de recursos, por si só, não expliquem as Cruzadas, eles são parte significativa do estímulo que levou à tomada de Jerusalém em 493/1099.

Se olhamos a partir de uma outra posição, indo para o Leste, para as estepes asiáticas, os arquivos sociais e naturais nos mostrarão o impulso de acentuada mobilidade. Frentes frias rigorosas, sobretudo no século V/XI, teriam atingido as estepes, as regiões a leste do mar Cáspio, bem como as áreas dos atuais Irã e Iraque. Nestes lugares, as populações nômades turcas seriam as mais atingidas, pois o frio destruía as pastagens e dificultava a manutenção dos rebanhos, especialmente, de animais de grande porte como camelos e dromedários (Mapa 01). Essas populações, em busca de novas pastagens, se deslocariam para o sul, exercendo pressão sobre núcleos urbanos sedentários. Bagdá, Mosul e as demais cidades a oeste conheceriam as grandes consequências desse movimento. Nestes lugares, a população sedentária também seria assolada pelo clima adverso. Há relatos do congelamento do rio Eufrates e de outros cursos d’água.  Nessas condições, por sua vez, fome e revoltas enfraqueceriam ou desafiariam o poder político da região: o Califado Abássida de Bagdá. As áreas vizinhas da Mesopotâmia – a Síria, a Palestina e o Egito – também enfrentariam problemas climáticos, caraterizados pelo decréscimo do nível de chuvas e por períodos de seca acentuados. O regime de chuvas era essencial para a produção alimentar da Palestina e da Síria, mantendo a produção das fazendas secas e abastecendo os reservatórios.

 

Mapa 01. As Conquistas dos Turcos Seljúcidas (432-491/1040-1097). (In: DENOIX & RENEL, 2022, p.85)

 

Frentes frias nas estepes asiáticas e na Mesopotâmia, secas na Palestina, na Síria e no Egito, de fato, o clima no Oriente Médio e na Ásia Central era e ainda é muito complexo. Sistemas que interligam alta e baixa pressão atimosférica – como a Oscilação do Atlântico Norte, medida entre a Islândia e os Açores, a oeste; os ares da Sibéria a leste e os ciclones antitropicais, vindos do sul em direção do Egito – se conjugam com outros fluxos de variação climática do hemisfério sul, como o El Niño-Southern-Oscillation (ENSO) (PREISER-KAPELLER, 2013, p.4). Desse modo, o Oriente Médio se caracteriza predominantemente por zonas áridas e semiáridas, cujo clima mediterrânico, em áreas restritas, proporciona um relativo equilíbrio próximo ao litoral (Mapa 02). Culturas como a cana de açúcar e o algodão, introduzidas pelos árabes, no século IV/X, serão significativas no litoral da Síria até o século XI/XVII. Porém, no Egito e na região a Leste da cordilheira do Antilibano, que corta um traço paralelo ao litoral mediterrânico, o clima árido e semiárido fazia das secas problemas bem agudos (Mapa 02). O solo, nestas condições, se torna propício à salinização, ampliando as dificuldades para plantios como o trigo. Não obstante, a cevada apresentaria uma maior resistência à salinização do solo. Nas áreas de fazendas úmidas, como as situadas próximas dos rios Tigre, Eufrates e Nilo, se os canais de irrigação não são mantidos e preservados, o índice de salinidade do solo poderia aumentar, impactando a produção de alimentos por décadas ou séculos. Tempestades de areia, terremotos, inundações, além das frentes frias e dos períodos de seca secas, eram obstáculos à produção alimentar, seja através da agricultura ou da transumância.

 

Mapa 02. Cultivo de Grãos e Zonas Climáticas no Mediterrâneo Oriental. (In: RAPHAEL, 2013, p. 36)

 

Nossa caracterização do espaço natural do Levante do tempo das Cruzadas teve como base três historiadores cujas análises se mostram bem plausíveis. Ronnie Hellenblum, Sarah Kate Raphael e Johannes Preiser-Kapeller. De fato, temos uma imagem bem dramática do período. Contudo, a autora e os autores não inferem que o clima severo no Levante fosse o problema determinante. A questão fundamental, principalmente segundo Ellenblum, dizia respeito à previsibilidade e à memória quanto às escassezes passadas. Em outras palavras, a capacidade dos poderes e das comunidades em se preparar e responder aos desafios das secas e das más colheitas. Em tempos de desorganização do Estado, responsável principal pelas atividades de irrigação e manutenção dos canais, o abandono da terra favorecia a queda da produtividade e/ou a ocupação do território pelas comunidades nômades e seu aproveitamento como área de pastagem.

Estamos inclinados a afirmar que a agricultura seja uma atividade de risco. A falta de previsibilidade dos tempos de seca e de sua duração, associada à incapacidade de certos governos em responder às crises provocadas pelo clima adverso, convertem a afirmativa anterior em algo bem plausível para o Levante entre os séculos V/XI e VII/XIII. O regime de cheia do rio Nilo e, consequentemente, a sua capacidade de produção alimentar dependiam das monções do leste africano, apresentando certa independência quanto ao clima mediterrânico. Assim como nos tempos faraônicos, os grãos egípcios eram, no período mameluco, transportados para a Palestina e a Síria em tempos de escassez. Certa previsibilidade das colheitas poderia ser apontada a partir do nilômetro, cujo recurso era bem antigo. Entre o século I AEC e o século VII/XIII, como dissemos, as fontes se remetem ao progressivo assoreamento do Nilo ou ao acúmulo de sedimentos no leito que demandava um nível cada vez mais elevado de cheia para proporcionar uma boa atividade agrícola. Secas, como as que afetaram o regime de cheia do Nilo em 662/1263 e 693/1293, levariam à escassez alimentar, tal como aponta Sarah Kate Raphael (2013, p.22). Nesses tempos adversos, a fome e a peste afligiam as populações sedentárias e intensificavam as hostilidades com as comunidades nômades. Por outro lado, no mesmo período, as crônicas contam sobre os esforços empreendidos pelos sultões para o aproveitamento de terras na região do Delta do Nilo.

O primeiro passo, rumo à instrumentalização do clima e do ambiente para produção alimentar, no Egito, se remetia à escavação e manutenção de canais, cuja potencialidade era regulada a partir de diques e rodas d’água que ampliavam as áreas agricultáveis em diferentes curvas de nível do solo (SATO, 1972, p.82). A questão inicial, para os sultões mamelucos do Egito, no que tange ao abastecimento da população e do exército, era a maximização do uso da água do Nilo. Nessas condições, colheitas de verão como arroz, algodão e cana de açúcar eram possíveis. A agricultura exigia uma coordenação dos trabalhadores rurais e o reconhecimento dos direitos de água de cada povoação. Acesso e controle de diques, levantamento de bancos de terra, abertura e fechamento de canais, regulação de rodas d’água e planejamento do fluxo hidráulico seguiam um uso costumeiro em concordância com o amīr ou aquele que exercia o controle sobre a terra[2]. Era importante evitar que as disputas não se tornassem um problema para o aproveitamento da água e para a produção alimentar.

Durante o período mameluco, aqueles que mantinham iqtā’ exerciam controle sobre as comunidades, sobre a terra e os direitos à água. A iqtā’ era um benefício, uma concessão de direitos que poderia incidir sobre a produção da terra e era entregue como remuneração a serviços militares. A partir de sua iqtā’, um amīr ou oficial deveria manter seus subordinados e prestar seus serviços ao Sultanato. Combatentes de nível inferior recebiam apenas uma espécie de soldo. No Egito, esse sistema foi introduzido no século XII por Saladino. Desse modo, o detentor desse benefício (muqta’) se preocuparia em manter os campos produtivos, de modo a sustentar sua força militar. Um exemplo dessa concessão foi o Mameluco Baybars al-Mansūrī, que, após o término de seu treinamento militar e consequente manumissão (c. 664-667/1265-1268), ascendeu na hierarquia militar, se tornando um jundī (soldado) e, posteriormente, um amīr, recebendo uma iqtā’ (c. 671\672 – 1272\1273). Apesar dos esforços coordenados das comunidades e seus oficiais, empreendimentos públicos de irrigação e regulamentação da produção alimentar demandavam a atenção dos sultões.

Entre 663/1264 e 682/1283, somos informados de, pelo menos, 15 trabalhos de irrigação empreendidos por iniciativa dos sultões Baybars (c.620-676/1223-1277) e Qalāwūn (c.619-689/1222-1290). Tivemos acesso à crônica de Ibn ‘Abd al-Zāhir (620-693/1223-1293) que relata sobre os trabalhos de Qalāwūn, em al-Buhayra, no Delta do Nilo, entre 5 e 18 de abril de 682/1283 (5 Muharram e 18 Muharram). O cronista apresenta os esforços como um grande evento, o que nos leva a pensar nos trabalhos públicos realizados durante a época faraônica. A organização dos esforços e a mobilização das pessoas se conjugam com a presença de notáveis, como o governante de Hamāh. Em grande medida, os sultões do Egito eram os herdeiros dos Faraós. O aproveitamento das terras improdutivas, que estavam servindo como pastagens para os Beduínos, se mostrava complicado pelas dificuldades de abertura e manutenção dos canais antes da época da cheia do Nilo. O trabalho, aparentemente, só poderia ser realizado pela mobilização de muitas pessoas, no caso, com o suporte do exército do próprio Sultão:

Ele continuou a considerar as questões das terras de al-Buhayra. Como durante a era precedente, elas têm sido a cesta de pães e a fonte de provisões do Egito. Mas estes lugares, que não foram irrigados, decaíram e um solo improdutivo tomou a região. De fato, eles se tornaram pasto para o Beduíno, para seus quadrupedes, e caiu em desuso. Ele foi informado desta narrativa, no lugar conhecido como al-Tīriyya, de que [al-Buhayra] tinha se tornado obscura e assoreada com o passar do tempo e nem proprietário ou terratenente podia fazer algo para trabalhar aí. Sempre que alguém trabalhava, para abrir o canal, não terminava em um ano. Assim, o Nilo enchia e a tarefa não era concluída, ao que se seguia que o barro se depositava no canal e todo esforço era em vão.
Ele demandou para os governadores dos lados de Bahrī, próximos do Nilo, para disponibilizar homens, trabalhadores e bois. Ele prometeu a eles que iria, em pessoa, com seus exércitos. Então ele o fez, acompanhado por al-Malik al-Mansūr, o governante de Hamāh, como mencionado há pouco, os reis, seus filhos, todos os emires e cortesãos, as tropas e os exércitos. Ele partiu em 5 Muharram [5 de abril de 1283] e chegou, no lugar, na quinta feira [8 de abril de 1283]. Neste tempo, ele pessoalmente tomou parte nos trabalhos com a própria montaria. Ele dividiu o trabalho entre todo o povo, por medida (qasaba), e cada emir e comandante se reuniu com seu grupo e seus mamelucos. Alguns deles até contrataram pessoas para terminar rapidamente, demonstrando interesse e iniciativa (IBN ‘ABD AL-ZĀHIR, 2020, p.65-66).

 

William Tucker (1999, p.113) afirmou que os Mamelucos não estavam bem preparados para lidar com momentos de crise. Em outras palavras, não haveria iniciativas ou políticas específicas para tempos de escassez ou distúrbio ambiental. As respostas viriam muito mais das populações afetadas do que por “preocupações políticas de governo”. E outras palavras, “Embora Lapidus e Allouche se refiram, em tempos ruins, às provisões de grãos suplementares dos sultões mamelucos, de fato, a evidência não mostra que houvesse um mecanismo regular institucional ou racionalizado para comida suplementar” (TUCKER, 1999, p.122).  Talvez, Tucker estivesse pensando mais aos moldes dos Estados contemporâneos, o que se converte em uma comparação injusta. A nível da produção alimentar, tal como documentado por Ibn ‘Abd al-Zāhir, a participação do Sultanato nas obras de irrigação era um evento público significativo e necessário. A mobilização de grande número de pessoas, para o aproveitamento de terras até então abandonadas e utilizadas como pastagem, só seria possível graças ao poder central do Cairo.

Podemos chegar ao consenso de que as respostas às crises só podiam ser efetivas e as providências tomadas de forma relativamente eficaz se houvesse uma disposição mínima prévia para lidar com a escassez e suas consequências. A memória do exemplo de José do Egito e a forma como lidou com os anos de escassez, nos tempos faraônicos, eram conhecidos. Embora os tempos de abundância pudessem fazer esquecer os tempos de carestia, sultões como Baybars e Qalāwūn tomaram medidas no que tange a grandes obras públicas para a irrigação das terras egípcias. Além disso, duas ordens de preocupação estavam no horizonte mameluco. Primeiramente, estabelecer acordos com os nômades e regular o acesso à água eram questões cruciais para a sobrevivência de comunidades nômades e sedentárias no Levante. Em segundo lugar, era decisivo assegurar o fluxo de grãos e a regulamentação de venda, de modo a evitar o acúmulo das comodities por parte das camadas mais ricas da população. Em tempos de escassez, a retenção dos grãos disponíveis aumentava o preço ainda mais e piorava a situação das camadas mais pobres.

No trecho que se remete às obras de abertura dos canais das terras de al-Buhayra, o cronista destaca que os nômades estavam utilizando a área como pastagem. De fato, em outros escritos da época, o bom convívio com populações itinerantes era um fator importante em um ambiente desafiador como aquele do Levante. Ibn ‘Abd al-Zāhir nos dá novas pistas da importância de estabelecer compromissos com os nômades, de modo a alcançar um bom aproveitamento dos recursos hídricos e alimentares. Em 660/1261, diante de uma escassez alimentar e da falta de pastagens disponíveis, que afetavam a região de Alepo em decorrência do avanço Mongol, Baybars ordenou que grãos fossem distribuídos aos Beduínos da região. Em 662/1263, nas proximidades da fortaleza de Karak, as comunidades nômades estavam utilizando a água dos poços e dando de beber a seus cavalos. Temendo que os reservatórios fossem esgotados e a população local sofresse com a sede, Baybars proibiu que os Beduínos utilizassem os recursos e confiou a eles, em seguida, a responsabilidade de guarda dos territórios ao norte de Hejāz (RAPHAEL, 2013, 51-52). As comunidades nômades eram importantes, pois forneciam de carne para as feiras e mercados. Soma-se a isso o fato de poderem garantir a segurança de mercadores e peregrinos nas rotas que conectavam a Península Arábica (Hejāz) à Palestina e à Síria.

Outras medidas, como a fixação dos preços de determinados produtos ou a distribuição dos pobres entre os oficiais e notáveis também foram tomadas por Baybars entre 662/1263 e 663/1264. Distribuir os pobres era uma forma de assegurar que seu sustento fosse uma responsabilidade partilhada entre os poderosos. Finalmente, as fortalezas tomadas dos Ayyúbidas e dos Cruzados se convertiam em lugares importantes de acomodação de grãos. Como Sarah Kate Raphael observou (2013, p.64), uma grande quantidade de suprimento de grãos era transportada de Fustāt e do Cairo, dois importantíssimos granários egípcios, para a Síria, Gaza, Safad e a cidade de Damasco, além de outras localidades. Esses recursos seriam decisivos não apenas para manter as guarnições e abastecer o exército mameluco diante da ameaça mongol, mas também para socorrer as populações em tempos de carestia. As secas que assolaram o Levante entre 695/1295 e 696/1296, de fato, demandaram o transporte dos grãos das fortalezadas para as cidades. Novamente, nesse período, a distribuição dos pobres entre os ricos foi uma iniciativa realizada para conter as consequências danosas dos tempos de escassez.

Compreender o clima das Cruzadas, utilizando os arquivos naturais, é um passo importante para os estudos medievais. Contudo, a relação entre as ocorrências climáticas e o sofrimento humano não deve se observada de forma muito direta ou imediata. É preciso examinar, também, os arquivos sociais. Instrumentalizando esses arquivos, ponderamos as respostas, as posições e as formas como as comunidades e os poderes interpretaram as adversidades e os momentos de crise. Em um meio-ambiente complexo e desafiador, as respostas e iniciativas do Sultanato Mameluco se faziam presentes e apontavam diversos níveis de articulação entre poderes e comunidades diante dos desafios do Nilo. Portanto, a ampliação das pesquisas sobre as questões ambientais levantinas medievais e as publicações de fontes islâmicas explicitam uma diversidade histórica significativa. Proporciona-se um olhar plural sobre as experiências humanas em sua relação com a natureza. Desse modo, seremos capazes de realizar uma História que não seja meramente opositiva ou redutora, mas que se apresente, sim, como ampla e simétrica.

Referências:

CHALYAN-DAFFNER, Kristine. Natural Disasters in Mamlūk Egypt (1250-1517): perceptions, interpretations, and human responses. (PhD Thesis submitted to the Philosophical Faculty Department of Languages and Cultures of the Near East for degree of Doctor of Philosophy). Heidelberg: Ruperto Carola Heidelberg University / Cluster of e Excellence Asia and Europe in a Global Context, 2013.

CHAPOUTOT-REMADI, Mounira. Une Grand Crise à la Fin du XIIIe Siècle en Egypt. In: JESHO, no. 24, 1983, p. 217-245.

DENOIX, Sylvie (dir.) & RENEL, Hélène (dir.). Atlas des Mondes Musulmans Médiévaux. Paris: CNRS Editions, 2022

ELLENBLUM, Ronnie. The Collapse of the Eastern Mediterranean: climate change and the decline of the East (950-1072). Cambridge: Cambridge University Press, 2012.

IBN ‘ABD AL-ZAHIR. Tashrif al-Ayyam Wa-L-‘Usur Fi Sirat Al-Malik Al-Mansur. In: COOK, David (transl.). Chronicles of Qalāwūn and his Son Al-Ashraf Khalil. Abingdon: Routledge, 2020.

MAZOR, Amir. The Early Experience of the Mamluk in the First Period of the Mamluk Sultanate (1250-1282). In: AMITAI, Reuven & CLUSE, Christoph. Slavery and the Slave Trade in the Eastern Mediterranean (c.1000-1500 CE). Turnhout: Brepols, 2017, p. 213-234.

PREISER-KAPELLER, J. A Climate for Crusades? Weather, climate, and armed pilgrimage to the Holy Land (11th-14th century). Pre-print, German version to be published in: Karfunkel – Zeitschrift für erlebbare Geschichte. Combat-Sonderheft 10, 2013 (in print; Communicating Science to the Public), p.1-11.

RAPHAEL, Sarah Kate. Climate and Political Climate: environmental disasters in the Medieval Levant. Leiden: Brill, 2013.

SATO, Tsugitaka. Irrigation in Rural Egypt from the 12th to the 14th centuries: especially in case of the irrigation in Fayyūm Province. In: Orient, vol.8, 1972, p.81-92.

SUBRAHMANYAM, Sanjay. Em Busca das Origens da História Global: aula inaugural proferida no Collège de France em 28 de novembro de 2013. In: Estudos Históricos. Vol. 30, n. 60, 2017, p. 219-240.

TUCKER, William. Environmental Hazards, Natural Disasters, Economic Loss, and Mortality in Mamluk Syria. In: MSR, no. 3, p.109-128.

[1] Doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais / Professor de História Medieval da Universidade Federal de Ouro Preto (bruno.salles@ufop.edu.br). Lattes: http://lattes.cnpq.br/5145308229098035

[2] A utilização das técnicas tradicionais de irrigação no Egito, como as rodas d’água, podem ser conferidas e ficam mais nítidas para o (a) leitor(a) a partir do seguinte vídeo:  https://www.youtube.com/watch?v=uQ9yRcywfGg


Publicado em 07 de março de 2023.

 

Como citar: SALLES, Bruno Tadeu.  O Clima das Cruzadas e a Produção Alimentar no Egito sob os Sultões Mamelucos (Século VII da Hégira / XIII da Era Comum). Blog do POIEMA. Pelotas: 07 mar. 2023. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/texto-o-clima-das-cruzadas-e-a-producao-alimentar-no-egito-sob-os-sultoes-mamelucos-seculo-vii-da-hegira-xiii-da-era-comum/. Acesso em: data em que você acessou o artigo.