Cláudia Regina Bovo (Laboratório de Estudos Medievais/UFTM)[2]
A Idade Média, período histórico tradicionalmente estabelecido entre os séculos V e XV, traz consigo uma série de referências e inúmeras interpretações que escamoteiam o fato de se tratarem de construções historiográficas e apropriações contemporâneas que ajudam a definir o lugar e a relevância atual dos estudos desta temporalidade. Tanto os profissionais da história, quanto pessoas comuns tem algo a dizer sobre a Idade Média.
De referenciais lúdicos que envolvem o sobrenatural e suas manifestações, como dragões e poções mágicas, até as estatísticas mais precisas sobre as enfermidades que dizimaram milhares de vidas, os conteúdos dos Estudos Medievais difundiram-se, cristalizando ora uma referência negativa, ora de virtuosa, ora exótica às experiências históricas preservadas para posteridade. Tanto é assim, que muitas pessoas usam o adjetivo “medieval” para se referir, seja na política, na economia ou mesmo na cultura, aos elementos julgados negativos, atrasados da sua experiência atual.
Para muitos intelectuais e estudiosos, essa popularidade da Idade Média pode soar prejudicial à aprendizagem histórica, uma vez que ela não revela a complexidade das sociedades que se desenvolveram nesse período histórico. Mas como ignorar que é essa popularidade o que dá vivacidade aos estudos medievais? Como deixar de lado que esse interesse, mesmo que desprovido de instrumentos teóricos adequados, é o que justifica o fomento aos estudos e a contínua busca pelo seu ensino institucionalizado? Se a História ainda tem como objetivo dar sentido às experiências dos homens no tempo, como os medievalistas poderão ignorar o interesse público atual nos seus objetos de investigação? Indo mais fundo, como os medievalistas se isentarão de debater as apropriações da Idade Média?
Orientados pelos trabalhos de Hayden White em Meta-História (1973) e em The Practical Past (2014), assim como pela trilogia de Teoria da História de Jörn Rüsen – Razão Histórica (2001), Reconstrução do passado (2007) e História Viva (2007), partimos do pressuposto que a Idade Média enquanto periodização histórica, enquanto uma fatia do tempo que categoriza um conjunto sociedades que partilhavam princípios de organização e fundamento parecidos, pode ser ela mesmo tida como um medievalismo. Ou seja, o próprio conceito de Idade Média em si, bem como suas múltiplas significações, podem ser considerados um medievalismo: uma construção conceitual alógena, cuja origem está alijada das sociedades e culturas que a inspiraram enquanto temporalidade histórica.
Colocamos nessa bagagem de múltiplas interpretações, sejam elas históricas profissionais ou populares, a mesma condição: ambos estão produzindo medievalismos, ou seja, ambas interpretações se apropriam da Idade Média, apesar de darem finalidades distintas a este uso da interpretação histórico-temporal. Nesse sentido, reconhecendo teoricamente que a Idade Média não existe atualmente enquanto experiência histórica per se , mas enquanto categoria heurística encarnada pela significação humana póstuma, qual o seu papel na orientação histórica dos jovens hoje? Esta é a questão que nos mobiliza para este debate sobre Medievalismo e Educação Histórica.
Num mundo coberto por múltiplos meios de conseguir informações e interagir socialmente como é o nosso, hegemonicamente marcado pelas relações virtuais da internet 4.0, a autoridade do discurso histórico-científico não está dada a priori. Diante de um cenário em que a escola tem perdido relevância perante as múltiplas formas de se conseguir informação, em que historiadores são rejeitados enquanto principais agentes do gerenciamento da memória social e a escrita da história científica é questionada por outras meios de informação e referência ao passado, é preciso potencializar o ensino da História na mobilização da desnaturalização das apropriações históricas e dos seus constantes usos sociais, políticos e culturais.
Dimensionar a circulação dos medievalismos e neomedievalismos é tarefa necessária para os processos de educação histórica empreendidos no espaço educacional, local onde tradicionalmente um mundo de experiências históricas, memórias e narrativas históricas estão em diálogo e, por vezes, em confronto, sendo que a grande maioria dessas narrativas se encontra distante de um padrão de construção balizado pela chamada história científica.
Hoje, os espaços escolares talvez sejam os únicos em que há contato direto entre a ciência histórica – estes múltiplos saberes históricos escolares e acadêmicos produzidos sob critérios teóricos e metodológicos vindo da organização disciplinar – e os chamados passados práticos – este conjunto de expressões da experiência histórica que pode ou não estar organizado numa narrativa explicativa dos processos históricos.
A ideia ensejada pela teoria da história de Jörn Rüsen é que a aprendizagem histórica esteja primeiramente comprometida em minimizar nos aprendizes “a pressão impositiva do achar, desejar, esperar e temer” (RÜSEN, 2007, p. 119). Estes aprendizes usam a sua própria experiência do tempo como referência para a reflexão, mas ela não passa disso, de ser mais uma entre tantas outras referências que, postas em diálogo, permitem-lhes cognitivamente equilibrar “a história como dado objetivo nas circunstâncias da vida atual e a histórica como constructo subjetivo da orientação prática movida pelos interesses” (RÜSEN, 2007, p. 119, p. 120).
Esses modos de interpretar a nossa experiência social balizados pelo tempo, seja da lembrança do ontem, da vivência do agora ou da expectativa pelo amanhã é comum a todos nós. Todos temos consciência histórica, mas alguns de nós, por uma aquisição de saberes científicos, desenvolvemos, sobretudo a partir da formação escolar e profissional, ações de interpretação e orientação no tempo pautadas não apenas pelas nossas experiências, mas pelo potencial interpretativo vindo da sua desnaturalização.
Este deveria ser o compromisso da formação histórica escolar: apresentar aspectos dessas inúmeras consciências históricas em circulação e pelo exercício da contextualização, da problematização e da desnaturalização do vivido, reconstruir as estruturas do pensamento histórico.
Ainda sob a orientação de Rüsen (2001; 2007), é possível identificar em termos cognitivos as três operações necessárias à aprendizagem histórica, são elas: a experiência, a interpretação e a orientação. A educação histórica é aqui apresentada como um procedimento cognitivo que ajuda a desnaturalizar as experiências históricas.
Particularmente, os processos de educação histórica das chamadas temporalidades recuadas como a Idade Média, impactam na mobilização de saberes diversos para orientação no tempo e para as consciências históricas contemporâneas. Isso porque no caso brasileiro que não tem uma origem medieval pautada pela historiografia profissional, mas tem essa origem mobilizada pela história pública que circula no país, especialmente nos berços de forte presença neopentecostal, é preciso reconhecer nesses espaços narrativos vulgares lugares legítimos de se empreender a operação historiográfica.
Há uma enorme demanda por informações sobre a Idade Média no Brasil. Esta, porém, geralmente aparece associada ao imperativo de que se veja confirmada uma Idade Média encantada, vivida como parte de um subterfúgio, onde habita o passado imaginado que se torna objeto de rejeição ao contemporâneo progressista ou objeto de desejo por aqueles obcecados pela busca das origens de qualquer coisa. Enquanto não -lugar histórico, na Idade Média cabe tudo.
Às vezes a “Idade das Trevas” e a “Idade de Ouro” se misturam para conferir “realismo” às fantasias que, baseadas na ampliação de estereótipos, em nada contribuem para o processo de interpretação e orientação históricos. Para os que chegam à escola ou à universidade, motivados pelo desejo de conhecer a Idade Média, talvez o choque primário necessário seja justamente desconstruir a alegoria da Idade Média que habita o contemporâneo. É justamente no prazer da dúvida bem formulada onde pode residir o fascínio da educação histórica. Com relação à Idade Média é preciso perguntar sempre: “o que nos escapa do presente que põe a perder o passado?” (BOVO; ALMEIDA, 2019, p. 235 )
Despertado através da provocação do estranhamento identificado na diferença extrema entre o nosso modo de vida atual e aquele apresentado pelos tempos muito recuados, essa alteridade extrema é que deve ser enfatizada enquanto fascínio congênito àqueles que querem conhecer, construir e desnaturalizar a Idade Média. A discussão da alteridade medieval coloca em foco outras formas de ser de sociedades agrárias, da experiência religiosa, da relação com a riqueza e com a violência além, da experiência com ritmos diferentes de mudança.
Ao observar um mundo que não existe mais através dos processos históricos muito recuados, os estudantes podem ser estimulados a aperfeiçoar a competência de interpretação do mundo e de si próprios, superando as demandas da subjetividade primária presentes no seu modo de ver, sentir, racionalizar o vivido, tornando-os aptos a suplantar a si mesmos enquanto única instância de legitimação dos modos de se viver.
REFERÊNCIAS
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WHITE, Hayden. The Practical Past. Evanston: Northwestern University Press, 2014.
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[1]*As reflexões sintetizadas aqui tomaram corpo durante a mesa redonda Medievalism and Teaching, realizada na I Conferência Internacional Global Medievalism, organizada pelo grupo de estudos de História Medieval da Unimontes – GEHM, em Abril de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8cnYVA03vwI
[2] Doutora em História Cultural pela Unicamp (2012). http://lattes.cnpq.br/1578501704102722
Publicado em 06 de Junho de 2022.
Como citar: BOVO, Claudia Regina. Medievalismos e Educação Histórica. Blog do POIEMA. Pelotas: 06 jun. 2022. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/texto-medievalismos-e-educacao-historica/. Acesso em: data em que você acessou o artigo.