Felipe Augusto Ribeiro[1]
Recentemente, ao longo dos debates sobre a nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC), historiadores brasileiros opinaram que a “Idade Média” é uma temporalidade estrangeira, que não pertence à história do Brasil[2]. Conquanto alguns estudiosos aleguem que os portugueses trouxeram para o nosso país ideias, mentalidades, costumes, instituições e práticas medievais[3], ainda parece haver uma opinião generalizada de que o Medievo não deve ser ensinado ou pesquisado em solo nacional, com recursos brasileiros, porque isso seria desperdiçar tempo e dinheiro investindo num patrimônio, memória e história alheia.
Que “Idade Média” e “História Medieval” são categorias heurísticas eurocentradas, não há dúvidas. Este campo da História, de fato, foi criado, emergiu e se consolidou como uma área de estudos sobre a Europa. Até hoje discutimos a validade desses rótulos historiográficos para pensar as histórias de outros continentes; ainda nos perguntamos: Ásia, África, Oceania e Américas experimentaram uma Idade Média que possamos estudar empregando o instrumental epistêmico, teórico, metodológico e técnico que compõe a História Medieval[4]?
Porém, também é possível observar que, mesmo sem pertencer, prioritariamente, à nossa história nacional, a Idade Média está presente no Brasil, em vários lugares, de vários modos. Numerosos analistas têm destacado o emprego de imagens e ideias vinculadas à Idade Média na constituição de “comunidades de sentido [ou de linguagem]” no Brasil, muitas delas com conotação política. À guisa de ilustração, evoco algumas imagens que se tornaram bastante conhecidas recentemente: em protestos que tomaram as ruas do país nos últimos anos, diversos homens têm comparecido trajando fantasias que remetem às supostas indumentárias dos cavaleiros medievais; tem sido recorrente a associação dos embates políticos brasileiros com o ideário das cruzadas cristãs realizadas nos séculos XII e XIII, no Oriente Médio. Outro exemplo é a apropriação de valores considerados “geneticamente medievais”, como família e cristianismo, por movimentos conservadores como o Tradição, Família e Propriedade (TFP)[5]. Em suma, conteúdos da Idade Média, ainda que ela seja uma “história do outro”, estão tão presentes no nosso país que são capazes de influenciar as nossas eleições, pautar nossa agenda política e orientar as nossas ações de governo.
A notícia de brasileiros vestindo emulações de indumentárias medievais europeias, enquanto hasteiam a bandeira verde-e-amarela e lutam por pautas candentes na política nacional, funde aquilo que, nos debates acadêmicos, nós separamos: a Idade Média e a história do Brasil. E não se trata de mera roupagem: o que está em jogo, nas ilustrações acima, é a instrumentalização de valores considerados medievais para a atuação na realidade brasileira contemporânea. Enquanto os acadêmicos parecem desacreditar que a História Medieval não nos diz respeito, os brasileiros efetivamente a trazem para o Brasil hodierno e a aplicam nas questões mais pragmáticas do nosso dia a dia. A Idade Média não só está concretamente entre nós como é, por vezes, convidada a interferir na nossa história.
As imagens da medievalidade não têm aparecido nos debates públicos brasileiros vinculados apenas a movimentos que se identificam como conservadores. Interlocutores de outros agrupamentos políticos também mobilizam ideias e representações atribuídas à Idade Média; contudo, eles o fazem com outra conotação, o tom crítico: evocam, ainda, um velho imaginário da “Idade das Trevas”, como se observa numa famosa série de tirinhas publicadas pelo chargista Dahmer.
Para entender essa série de apropriações, é preciso perguntar: o que os brasileiros julgam ter sido a Idade Média? Quais são esses valores que eles reputam como tipicamente medievais? Se a História Medieval é a “história do outro”, por que os brasileiros se apegam tanto a ela? E como eles operam tal apropriação, através de que veículos e mecanismos?
Felizmente, vários pesquisadores brasileiros têm atentado para o fenômeno e feito investigações sobre ele[6]. Analisando os discursos de quem empunha, com atos ou palavras, “valores medievais” no Brasil, percebem-se alguns padrões. Os valores evocados estão articulados em torno de quatro grandes eixos: para os brasileiros, a Idade Média teria sido um período beligerante e violento; cristão e, portanto, avesso a qualquer outra forma de religiosidade; de hegemonia racial branca; de dominação masculina, viril, misógina e heteronormativa. Assim se torna possível compreender a recorrência do estereótipo de “cavaleiro medieval”, apontado acima: ele encarna todos os traços supracitados numa figura só. Por isso o cavaleiro se configura como uma das imagens centrais para se lembrar a Idade Média, seja de forma laudatória, como no caso da Lux Brasil, seja de forma crítica, como nas tirinhas de Dahmer[7].
Existem, já há algum tempo, vias teóricas bastante consolidadas para o estudo das recepções e usos do passado pelas sociedades modernas e contemporâneas. Gostaria de destacar uma delas: a via dos (neo)medievalismos. Trata-se de um conceito cuja definição ainda está sendo discutida (MAYER, 2010), mas, grosso modo, pode-se dizer que o medievalismo é um fenômeno que consiste na prática pós-medieval da investigação, recuperação, conservação e reprodução de variados aspectos das diversas culturas medievais (como a trovadoresca, a cortesã, a cavaleiresca, a viking etc.); ele não está necessariamente restrito ao âmbito acadêmico e pode congregar leigos, curiosos e admiradores das “medievalidades”. Mesmo assim, os praticantes dos medievalismos costumam almejar algum nível de autenticidade histórica e buscam lastrear suas experiências nas publicações trazidas à luz pelos medievalistas acadêmicos (KAUFMAN, 2010). Já o neomedievalismo não se preocupa com a veracidade histórica, pois compreende que ela é construída no próprio ato de narrar o passado (TOSWELL, 2010; KLINE, 2016); ele está, hoje, intimamente ligado às mídias digitais, que permitem uma amplificação, uma disseminação inédita de suas práticas (COOTE, 2010; MOBERLY & MOBERLY, 2010). Em suma, se o medievalismo procura reconstruir, de alguma maneira, o passado medieval, o neomedievalismo se contenta em se apropriar dele, de forma livre e criativa, para dar significado às suas ações no presente mais imediato. Todavia, tais práticas têm sido avaliadas como perigosas, pois têm municiado a elaboração de discursos de ódio (falas e atos de racismo e xenofobia, de misoginia, homofobia, transfobia e afins) e de ideologias supremacistas que rejeitam sujeitos marginalizados nas sociedades atuais (WALTER, 2020).
Como se pode notar, muitos autores que se debruçam sobre o tema o fazem há, pelo menos, uma década, e, escrevendo para um público anglófono, discutem-no com os olhos voltados para um panorama que é global. Não obstante eu esteja, neste brevíssimo ensaio, enfocando o quadro brasileiro, o fato é que os (neo)medievalismos compõem um fenômeno planetário. Eles sugerem que o debate sobre a quem concerne e pertence a História Medieval – se apenas aos europeus ou a todos os povos que com eles, em algum momento de suas trajetórias históricas, tiveram contato – não aflige apenas nós, brasileiros, mas também os estadunidenses e latino-americanos. Imaginários e representações[8] são, afinal, commodities exportáveis que, num mundo globalizado, não respeitam fronteiras nacionais nem estão preocupados com coerência histórica ou ideológica. Onde quer que seja possível – e toda vez que for possível – identificar problemas que possam ser encarados à luz do que se imagina ter sido a Idade Média, lá estará ela, pronta para ser empunhada, na qualidade de crítica mordaz, ou na condição de bandeira gloriosa. Em uma mesma sociedade podem-se encontrar, em franca disputa, aqueles que amam e aqueles que odeiam a Idade Média – ou, mais precisamente, o que imaginam (ou pensam saber) dela.
Usar a História Medieval não é uma questão de conhecimento, mas de postura: para amá-la ou odiá-la não é preciso saber mais ou menos sobre ela; basta, tão-somente, ser capaz de imputar a ela o que se deseja. Assim, não é uma melhora educacional – um aperfeiçoamento do Ensino de História – que irá impedir essas apropriações; elas são, aliás, parte inerente do saber histórico. Imaginar, representar, apropriar, interpretar, ressignificar: a história é feita de tudo isso. A questão, enfim, é compreender o que está por trás de cada ato de manipulação da história, e foi exatamente esse singelo exercício que tentei fazer aqui.
Mesmo que as pesquisas ainda estejam em andamento, algumas conclusões parciais já são possíveis. Note-se: independente dos conteúdos e formas como é percebido e trabalhado, o Medievo tem sido uma das principais chaves de leitura da realidade atual, sobretudo quando se trata de interpretar os seus problemas. Há dois pontos em comum entre os setores sociais e políticos ditos progressistas e aqueles identificados como conservadores: em primeiro lugar, em ambos há o sentimento de que há uma crise no mundo contemporâneo da qual o Brasil, é claro, faz parte; em segundo lugar, ambos sustentam a postura de recorrer à Idade Média como contraprova explicativa que permite entender essa crise e agir contra ela. O que muda entre os dois espectros é a sensibilidade acerca desse objeto espelhado que é o Medievo: para críticos como Dahmer os problemas que configuram a crise são o obscurantismo e a violência, aspectos que ele reconhece na Idade Média, por isso chama o Brasil de “medieval”; já para os jovens que protestam vestidos de cavaleiros, o problema da atualidade é o esquecimento de uma moral que se pode remontar ao mesmo período. De um lado, pois, temos uma valoração negativa da temporalidade, ainda entendida como “Idade das Trevas”; de outro, temos uma valoração positiva, que entende tal Idade como uma época romântica e pura – aos menos para os valores pelos quais se preza: o Cristianismo, a masculinidade, a bravura e a branquitude.
Referências
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[1] Doutor em História e Culturas Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor adjunto do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Coordenador do Laboratório de Estudos Medievais (LEME), núcleo UFPE. Currículo: http://lattes.cnpq.br/5461158925668835.
[2] Tais debates ficaram registrados, entre os medievalistas, em alguns artigos, como os de Igor Salomão Teixeira (2016), Douglas Mota Xavier de Lima (2019) e Renan Marques Birro (2020).
[3] Essa visão sobre uma “medievalidade residual” presente no Brasil se faz ver, sobremaneira, em algumas análises acerca do funcionamento da monarquia portuguesa que colonizou nosso país. Corrupta, essa monarquia ainda funcionaria, conforme a leitura de alguns autores, como um “Antigo Regime”, isto é, uma compreensão feudalizante do mundo. Para tanto, ver, entre outros, BORGES, Eduardo José Santos. O Antigo Regime no Brasil Colonial. São Paulo: Alameda, 2017.
[4] Um exemplo dessa reflexão é o artigo de Otávio Luiz Vieira Pinto (2019), cujo trabalho tem consistido em interrogar a validade desse rótulo historiográfico para as sociedades do continente africano.
[5] Para uma do neomedievalismo praticado pela TFP, ver João Guilherm Lisbôa Rangel (2021).
[6] Só para citar um exemplo: Luiz Felipe Anchieta Guerra (2021; 2022).
[7] A centralidade da figura cavaleiresca também tem sido alvo de muitas análises minuciosas, como a de Carlile Lanzier Junior (2021) e, no exterior, Tommaso di Carpegna Falconieri (2019).
[8] Para não deixar o leitor em dúvida, ofereço uma curta definição do que entendo por imaginário e por representação. Imaginário é um conjunto de imagens que funciona como um sistema de coordenadas cuja função é permitir aos indivíduos situarem-se no mundo (BACZKO, 1985). Ele se aproxima da ideologia, entendida como “o conjunto das linguagens políticas de uma sociedade, isto é, o conjunto das posições teóricas que se organizam numa formação histórica concreta em dado momento de sua história e que esboçam a totalidade das possibilidades e sua finitude” (ANSART, 1978: 16). Com efeito, o imaginário, ao contrário do que se convencionou pensar, nunca está apartado da realidade empírica da vida humana: ele estabelece com a concretude do mundo vivido uma relação de intensas e recíprocas trocas (LAPLANTINE & TRINDADE, 1996: 28). Por fim, podemos considerar que as imagens e ideias são representações, isto é, recursos linguísticos que presentificam ou trazem à tona objetos, sentimentos e valores ausentes, distantes, estabelecendo (ou restabelecendo) a coisa ausente e o seu signo/símbolo, permitindo que seu significado volte a ter efeito na realidade presente (GINZBURG, 2001; FALCON, 2000).
Publicado em 20 de Junho de 2022.
Como citar: RIBEIRO. Felipe Augusto. Brasil (Neo)Medieval: Idiossincrasias de um uso do passado. Blog do POIEMA. Pelotas: 20 jun. 2022. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/poiema/texto-brasil-neomedieval-idiossincrasias-de-um-uso-do-passado/. Acesso em: data em que você acessou o artigo.